No Dia Internacional contra a LGBTfobia, vítimas de preconceito pedem respeito; veja relatos
Conheça histórias de pessoas que, como o ex-BBB Gil, também sofrem ataques constantemente por serem quem são
Na última sexta-feira (14), vazou na internet áudio atribuído a um dos conselheiros do Sport Club do Recife, Flávio Koury, afirmando que a presença do ex-bbb pernambucano e doutorando em economia Gilberto Nogueira, o Gil do Vigor, na Ilha do Retiro, sede do clube, seria uma “desmoralização” à história do Sport. O caso de homofobia repercutiu fortemente no País e reacendeu debates sobre preconceito contra pessoas em razão de suas orientações sexuais e identidades de gênero.
Nesta segunda-feira (17), Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, o Diário do Nordeste compartilha histórias de pessoas que, como Gil, também sofrem ataques constantemente por serem quem são, e de pessoas que, simplesmente, decidem unir forças para lutar contra isso.
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Segurança para torcer
Culturalmente heteronormativos, clubes e torcidas de futebol tendem a não proporcionar segurança ou sensação de pertencimento a quem é lésbica, gay, bissexual, transexual, queer, intersexo, asexual ou se entenda em outras variações de identidade e gênero (LGBTQIA+).
Por isso, foi criado o Vozão Pride, um movimento de pessoas LGBTQIA+, torcedoras do Ceará Sporting Club, que querem representatividade nos estádios e segurança para torcer.
“Ir a estádios com amigos LGBTs sempre foi complicado. Olhares, xingamentos, ameaças”, relata Ana Beatriz Morais Monteiro, cofundadora do Vozão Pride. Segundo ela, a insegurança fez com que vários amigos perdessem a vontade de assistir aos jogos da arquibancada. Além disso, ela diz que ver jogadores LGBTQIA+ tanto do Ceará quanto de outros times sendo repudiados por torcedores é outro fator que desestimula. “Uma das maiores dificuldades é ser respeitado”, afirma.
Beatriz conta que o Vozão Pride não nasceu como um movimento, mas como uma página comum “de humor e informações”. A condição foi mudada quando os fundadores compreenderam que poderiam utilizar o canal para ir além.
Percebemos a necessidade de sermos algo sério, porque LGBTs não ‘tinham vez’ no mundo do futebol. Criamos o movimento para falar de pautas, mostrar para a torcida que vamos, sim, ao estádio e que queremos ser respeitados e reconhecidos. Vimos que deveríamos estar na luta por isso. Claro que sem perder o bom humor, mas, também, sendo sérios quando precisamos ser”.
Para além do futebol
A assessora parlamentar e estudante de serviço social Maria Isabel Rocha de Castro, 27, conhecida como Mabel, torce pelo Fortaleza Esporte Clube desde que se entende por gente. Ela se assumiu travesti em 2018. Porém, antes disso, conta que sofria LGBTfobia no estádio somente por ser “um rapaz gay”.
“Depois da transição fui quatro vezes pro estádio e em nenhuma delas sofri ataque LGBTfóbico. Sofri na internet, quando emitia minha opinião e falava do jogo. Porque as pessoas acham que a gente não entende de futebol. Então, quando eu falava alguma coisa, ‘cornetava’ jogador, achavam que eu não podia e vinham me atacar. Partindo do pressuposto de que, por eu ser travesti, não podia torcer pelo Fortaleza. Bem doidos”, relata a assessora.
Integrante do Resistência Tricolor, a torcida antifascista do Fortaleza, Heitor Bantim, 24, conta que o grupo foi criado para dar visibilidade a bandeiras consideradas tabus no futebol como a elitização do esporte, o machismo, o racismo, o feminicídio e a LGBTfobia. Esta última, segundo o torcedor, “é a mais complicada de se atingir algum tipo de paz, vide o que aconteceu recentemente [com Gil do Vigor]”. E assume: “A gente sabe, por exemplo, que se você levar uma bandeira LGBT pro estádio, é muito provável que essa pessoa apanhe”.
Contudo, com ações sistemáticas, posicionamentos e pressões nos momentos certos, o grupo tem se empenhado em criar um ambiente seguro para torcedores LGBTQIA+. Se sentindo acolhida por eles, Mabel também acabou tomando para si o papel de atuar pela causa dentro da torcida. Ensina:
Dentro do futebol, assim como dentro da religião, das estruturas que alimentam a moral da sociedade, é difícil lançar esses debates, interromper um ciclo opressor. Seja da LGBTfobia, do feminicídio, do machismo, de qualquer outra coisa. Porque é para além do futebol, do estádio, da torcida. Se a torcida expressa uma canção machista ou LGBTfóbica é porque a cidade é machista e LGBTfóbica. A torcida não é um monstro. Pelo contrário, a gente pode utilizar a torcida como um meio de difundir que a gente existe, a gente está viva e a gente torce pelos nossos times”.
Acolhimento
Acolher quem sofre homofobia é parte fundamental do combate ao preconceito. Não só no sentido figurado, de aceitação e prestação de solidariedade, por exemplo, como, também, no sentido literal, de proporcionar casa e comida a quem, por ousar ser quem é, acaba segregado.
Em 2017, a funkeira Lara Nicole, 24, conhecida como Nik Hot, recebeu em sua casa uma visita inesperada. “Uma travesti que não conhecíamos conseguiu nosso endereço, não sei de que forma. Pediu ajuda porque foi demitida e o dono da casa em que ela estava morando de aluguel estava expulsando ela, pois as contas estavam atrasadas. Ela perguntou se poderia dormir uma noite lá em casa. Fiquei espantada porque era uma pessoa que não conhecíamos, mas, se não fosse na minha casa, ela iria dormir na rua, porque ninguém iria dar um teto para uma travesti dormir. A sociedade marginaliza muito a imagem da travesti”, relembra.
A partir desse primeiro acolhimento, que durou três meses, Nik passou a abrigar amigos e amigos de amigos que as famílias expulsavam por serem quem eram. “Não tínhamos pretensão de nos transformar numa ONG, era tudo pela vontade de ajudar e pela empatia, pois sabíamos que poderíamos ser nós naquela situação. Porque as pessoas que acolhemos são como nós”, entende a funkeira, mencionando Davi Lima, quem a acompanhava à época e quem, dali a um tempo, a ajudaria a construir a Casa Transformar.
“Deus não julga, não discrimina, não exclui”
Em seu próprio processo de aceitação, Nik enfrentou uma série de medos. Dentre eles, o de também ser excluída da família.
Quando me reconheci uma pessoa LGBT, foi um processo bem lento. Pelo fato de ter uma família muito religiosa, existia todo aquele fundamentalismo que não trata bem as pessoas LGBTs. Digo a religião, mas me refiro às pessoas, pois sabemos que Deus não julga, não discrimina, não exclui. As pessoas, infelizmente, passam a mensagem Dele errada”.
Assumidamente travesti desde 2018, ela conta que tem, hoje, uma relação “muito bacana” com a família. “Minha família me apoia e apoia a Casa Transformar, também. Minha mãe mora próximo, sempre está lá, e minhas irmãs, também”, relata Nik. Atualmente, a casa abriga quatro pessoas. O projeto é mantido por doações e está com duas vagas disponíveis para abrigo. Interessados podem entrar em contato pelo Instagram da ONG ou pelo WhatsApp (85) 98126-8410.