Skincare infantil: os riscos da adultização das crianças no mercado da beleza
Movimento intitulado "Sephora Kids" tem preocupado especialistas do mundo todo
Redes sociais como o Tiktok e o Instagram viraram verdadeiras vitrines virtuais de cosméticos e produtos de beleza a se perder de vista. O que antes era voltado para um nicho mais específico e considerado o "playground" da mulher adulta, nos últimos anos, o skincare tem crescido de forma alarmante entre público infantil.
Maquiagens pesadas, máscaras de tratamento, cremes e até produtos anti-idade. Meninas gastando horas em frente ao espelho para seguir passos de skincare enquanto participam de trends e falam sobre prevenção do envelhecimento são relatos comuns nas redes, reforçando a adultização e a pressão estética presente cada vez mais cedo entre esse público.
Seja em filas quilométricas nas prateleiras de lojas físicas ou mesmo on-line, um movimento intitulado "Sephora Kids", em referência à gigante do ramo da beleza, tem preocupado especialistas do mundo todo.
Acompanhando a tendência com cautela, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu que, a partir deste mês de setembro, as empresas de cosmético são obrigadas a notificar sobre os efeitos adversos de seus produtos.
"É um erro pensar que um cosmético é inofensivo. Cosméticos têm riscos, e todos nós temos uma pele diferente, o que serve para um pode não servir para o outro. Quando se trata de crianças, o risco é muito maior”, explica Tamara Gonçalves*, cientista e professora de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Riscos do skincare infantil
Artigos científicos já alertaram para um aumento crescente de dermatites de contato e acne pelo uso indiscriminado de maquiagem, gerando processos inflamatórios na pele de crianças e adolescentes.
"A pele fica mais sensível, acneica, então precisa usar mais produtos para esconder, entrando nesse ciclo sem fim. Existem cosméticos para uso específico de crianças, como shampoos, condicionadores e até linha de maquiagem, mas a Anvisa é muito clara, é para uso pontual, não para uso diário", afirma a especialista.
Problemas de pele
Por terem a pele mais sensível e mais suscetível à absorção dos produtos, as crianças estão mais vulneráveis aos seguintes riscos:
- Dermatites de contato;
- Acne;
- Alergias;
- Vermelhidão;
- Manchas;
- Oleosidade;
- Maior sensibilidade;
- Efeito rebote desencadeado pelo uso incorreto de cosméticos.
A orientação é sempre se guiar pelo rótulo do produto, que deve conter o selo de dermatologicamente testado, comprovando que item passou por testes de segurança e é indicado para pele infantil.
As empresas estão aproveitando essa trend para alavancar as vendas e faturar ainda mais. O Brasil é o mercado número um de consumo de maquiagens infantis do mundo, junto com os Estados Unidos, e não há nada na ciência que comprove o uso de cosméticos em crianças para prevenção do envelhecimento precoce
Diferenças da pele adulta para a pele infantil
Segundo artigo da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), a pele infantil ainda não está totalmente desenvolvida, o que aumenta a vulnerabilidade a doenças cutâneas.
"Existe maior chance de perda de água e maior capacidade de absorção de substâncias pela pele, além de menor atividade de glândulas sebáceas e imaturidade imunológica. Assim, é essencial preservar as características da barreira cutânea, incluindo sua permeabilidade e seu pH, já que as alterações nessas características podem levar ao desenvolvimento de dermatites atópica e de contato”, diz a médica dermatologista Elisa Fontenelle em publicação da SBD.
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Impactos psicológicos
Além de aspectos físicos, que podem comprometer a autoestima, como acne e dermatite, esses produtos também desencadeiam impactos psicológicos e afetam a saúde mental de crianças e adolescentes.
“As crianças ainda não têm amadurecimento para se blindar dessa pressão estética, o que gera ansiedade. Essas trends alimentam a insegurança e a baixa autoestima delas. Nas redes sociais, elas buscam esse pertencimento e esse padrão de perfeição, muitas vezes impossível de chegar”, reflete a professora Tamara Gonçalves.
Estudos de cientistas australianos revelaram que apenas 8 minutos de uso diário do TikTok já são suficientes para abalar a autoestima de um usuário. Para as crianças, esse efeito é ainda maior.
A docente cita ainda o impacto dos influenciadores digitais para esse cenário de adultização infantil no mercado da beleza e o que está por trás desse incentivo ao uso excessivo de cosméticos.
“Os produtos mais viralizados entre as crianças de 8 a 12 anos contêm riscos à saúde, com ingredientes já comprovadamente maléficos, e, ainda assim, estão entre os mais vendidos. É importante termos esse cuidado porque o mercado está vendendo, os influenciadores estão divulgando, mas eles não estão vendendo saúde, estão vendendo produtos com objetivo de lucro”, pondera.
Conforme a dermatologista Elisa Fontenelle, é necessário limitar a maquiagem a ocasiões especiais e só a partir dos 5 anos, de forma alguma fazendo parte da rotina diária e sempre sob supervisão de um adulto. O compartilhamento também deve ser evitado para prevenir contaminações.
Puberdade precoce
Além de itens de maquiagem e skincare, outros produtos como esmaltes e alisadores de cabelo que contêm formol também são motivo de preocupação dos especialistas por estarem associados à puberdade precoce e até ao câncer infantil.
“O esmalte tem substâncias que são toxicas, como o formaldeído (formol) e os ftalatos, que agem como disruptores endócrinos, substâncias químicas que interferem no sistema hormonal do corpo e podem causar a puberdade precoce”, alerta Tamara.
Entre os efeitos mais adversos, estão
- Odor forte nas axilas a partir dos 6 anos;
- Crescimento precoce de mamilos;
- Menstruação antecipada;
- Desregulação hormonal.
“Imagina uma menina menstruando com 8 anos por conta do uso desses produtos? Hoje, é alarmante a puberdade precoce em meninas e meninos, e as causas estão diretamente ligadas a essas substâncias presentes nos cosméticos”, enfatiza a docente.
O que realmente pode?
Embora não seja novidade que a indústria já oferece produtos específicos para o público infantil, principalmente itens de banho como sabonete, shampoo e condicionador, é preciso ter atenção ao modo de uso e observar os rótulos.
Especialistas alertam ainda para compras na internet, especialmente compras de mercado internacional, que não passam pela fiscalização da Anvisa. Por isso, a recomendação é comprar os produtos infantis em loja física para certificar que realmente houve um controle de inspeção sobre os itens.
“Algumas instruções aos pais são importantes, como não encostar os produtos no couro cabeludo da criança, apenas no fio capilar, porque a nossa pele, principalmente do couro cabeludo, é sensível e absorve muito os nutrientes”, indica Tamara Gonçalves.
Sobre o uso de produtos voltados ao combate do envelhecimento precoce da pele, a cientista é enfática ao dizer que essa não deveria ser uma preocupação de crianças e adolescentes. Ela aproveita para listar hábitos que, comprovadamente, são eficazes para a saúde e bem-estar infantil.
“Vejo criança dizendo que precisa preservar o colágeno. Esse pensamento não deveria passar pela cabeça dela e nem ser incentivado pelos pais. Depois dos 30 anos, você começa a pensar nisso. Crianças que poderiam estar brincando ou estudando, mas estão ali fazendo um passo a passo de cuidados com a pele”, afirma.
“Se quiser preservar o colágeno desde cedo, basta fazer o básico bem feito, uma alimentação saudável, atividade física, tomar sol com cuidado, ter uma boa noite de sono e comer menos açúcar, que esse sim é inflamatório e prejudicial em qualquer idade”, conclui a cientista.
Quando procurar um dermatologista?
A SBD alerta que consultar um dermatologista é a melhor forma de garantir que as necessidades específicas de cada criança sejam atendidas de forma segura e eficaz. A entidade destaca ainda que a dermatologia pediátrica é competência da formação do dermatologista, sendo este o profissional mais adequado para cuidar da pele infantil.
“Não existe uma regra rígida sobre quando começar as consultas dermatológicas. O ideal é que essas visitas sejam feitas conforme a necessidade, especialmente se houver condições específicas ou para orientações gerais”, recomenda Elisa Fontenelle em artigo da SBD.
*Tamara Gonçalves é farmacêutica, cientista, professora e coordenadora do projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC): "Centro de Estudos sobre os efeitos adversos de cosméticos". Na execução desse projeto, os participantes visitam uma vez por mês uma escola pública do Ceará para levar informações de base científica sobre os riscos de cosméticos e os possíveis efeitos adversos (acne cosmética, descamação, vermelhidão, dermatite de contato, erupções, coceiras, ardor, entre outras)