TCE identifica irregularidades em contratos de R$ 83 milhões em prefeituras do Ceará; veja lista
Mais de R$ 600 mil foram devolvidos por empresas contratadas com indícios de superfaturamento
Após quatro meses de inspeções in loco em administrações públicas, o Tribunal de Contas do Ceará (TCE) identificou irregularidades em contratos de mais de R$ 83 milhões em obras de sete prefeituras cearenses.
Entre os achados, há contratações sem teto de gastos definido, indícios de superfaturamento, utilização de materiais de má qualidade, pagamento por serviços não executados e empresas com mão de obra sem vínculo empregatício com trabalhadores. As informações foram obtidas em primeira mão pelo Diário do Nordeste.
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As irregularidades foram detectadas em contratações milionárias feitas pelos municípios de Boa Viagem, Caucaia, Eusébio, Itatira, Jijoca de Jericoacoara, Novo Oriente e Quiterianópolis. Na maioria das cidades, a Corte determinou suspensão dos contratos ainda vigentes e privação de novos. Todas as vistorias foram feitas em obras que já deveriam estar em andamento ou concluídas.
As inspeções foram realizadas entre maio e setembro de 2022 em obras contratadas pelas cidades, entre 2021 e 2022, por meio do Sistema de Registro de Preços (SRP) – modalidade que licita compras e serviços de manutenção de prédios públicos, em que os preços já estão expressos em tabelas da Secretaria de Infraestrutura do Ceará (Seinfra) e do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi).
Pelo SRP, as gestões podem contratar serviços rotineiros, como pintura de paredes, substituição de portas, consertos em telhados, por exemplo. Os valores de todos os custos (mão de obra, materiais e equipamentos) já estão discriminados nas tabelas.
Todavia, serviços de engenharia caracterizados como obras ou reformas não podem ser licitados pelo sistema, porque precisam de um projeto técnico que contenha desenhos, orçamentos, memoriais, cronogramas e demais especificações.
Legislação confrontada
De acordo com o secretário de Controle Externo do TCE, Carlos Nascimento, todas as sete prefeituras investigadas estavam utilizando o SRP irregularmente para contratar grandes obras de engenharia sem especificar teto de gastos, apresentar projetos e cronograma. A empresa que apresentava maiores descontos nos preços dos produtos e serviços solicitados vencia a licitação, sem ampla concorrência.
No entanto, licitações pelo SRP devem ser lançadas apenas para a aquisição de produtos e serviços simples para reparos em prédios públicos, como pintura de paredes, instalação de lâmpadas, serviços de jardinagem etc.
Segundo Carlos Nascimento, os contratos irregulares podem ser interpretados como uma tentativa das gestões burlarem a legislação, já que elas adquiriam, via SRP, serviços milionários para serem prestados durante o ano como se fossem reparos. Na realidade, as contratações eram destinadas a grandes obras, como construção de escola, posto de saúde, recuperação de estradas, impactando na fiscalização.
"Um pagamento de um serviço que eu não consigo verificar a execução é algo muito comum nessa forma de contratação. Se você for pelo viés da transparência, vai ficar muito claro que eventualmente algumas dessas prefeituras até fizeram o serviço, mas eu não consigo comprovar quais foram os serviços que foram feitos. Se ela fez uma escola, por exemplo, pode até estar bem feita, mas eu não consigo comprovar quais foram os itens pagos para se fazer aquela escola porque eu vou ter uma lista de serviços contratados que não necessariamente representam a construção de uma escola"
"Para qualquer cidadão e para os órgãos de controle, causa uma cegueira mesmo, porque eu não tenho certeza se aqueles serviços foram feitos para a construção de uma escola. E, mesmo que eles tenham sido feitos, imagine que aquela escola foi construída com serviços pagos por uma tabela que foi licitada e que tem uma grande probabilidade de (os serviços) terem sido contratados por preços mais caros, mesmo com descontos, porque eu não tive uma concorrência, eu não tive uma competição pela obra de uma escola", complementa.
A reportagem entrou em contato com a Associação dos Municípios do Ceará (Aprece) para apurar sobre orientações ou assistência técnica que poderiam ser oferecidas às gestões alvos das irregularidades, mas não recebeu retorno.
Irregularidades nos municípios
Boa Viagem
No município de Boa Viagem, por exemplo, os técnicos do TCE identificaram, durante inspeção in loco, irregularidades na contratação de obras de ampliação de bueiros, reforma de escolas, postos de saúde e drenagem.
As intervenções custaram R$ 6.038.163,06 e continham indícios de superfaturamento, serviços prestados de forma inadequada e contratação indevida sem limites de valores especificados por serviço na licitação. Os projetos e orçamentos das obras foram incluídos posteriormente na licitação, "em afronta à lei", conforme aponta relatório da Corte.
Além disso, a empresa licitada pela secretaria de Infraestrutura do município recebeu mais de R$ 200 mil, devido a um erro na aplicação do percentual de Benefícios e Despesas Indiretas (BDI).
Em resposta à Corte, a prefeitura informou que solicitou à equipe técnica de engenharia manifestação acerca dos apontamentos feitos pelo TCE, bem como reconheceu a aplicação equivocada dos BDIs, o que gerou um pagamento maior do que o devido à empresa que prestou os serviços. A gestão acrescentou, ainda, que o valor divergente seria de R$ 204.915,01, tendo sido ressarcido aos cofres do erário de forma atualizada (R$ 221.663,88) pela prestadora de serviço.
As correções técnicas nos serviços prestados também foram feitas, conforme a administração. Diante disso, o TCE determinou apenas que a prefeitura se abstivesse de autorizar novas obras pelo SRP, sem sanções mais graves devido ao empenho da gestão em solucionar as irregularidades.
Caucaia
Em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), os técnicos do Tribunal inspecionaram obras em cinco escolas da cidade entre agosto e setembro de 2022, contratadas por meio do SRP. Segundo o TCE, a licitação pela modalidade por si só confrontava a legislação, já que contemplava obras de ampliação, e não reparos.
Além disso, os serviços foram contratados por R$ 21.064.102,61, mas aumentaram para R$ 50.498.524,09 – 139% a mais do que o previsto inicialmente. Conforme o relatório da Corte, ainda que a contratação pelo SRP estivesse regular, o valor dos aditivos impostos já burlaria a Lei de Licitações. Pela regra do Sistema de Registro de Preços, os contratos podem aumentar, por meio de aditivos, em até 50% do valor orçado.
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Até a data da inspeção, o município tinha pago R$ 34.346.956,70 pelas obras nos equipamentos. Ao TCE, o secretário de Infraestrutura de Caucaia, André Luiz Daher Vasconcelos, informou que o contrato tem natureza contínua, o que faz com que seu valor "inicialmente pactuado" seja renovado.
"Ou seja, para fins de conferência, seu valor sempre será o inicialmente pactuado aplicado durante o período de 60 meses, podendo ainda ser acrescido nos ditames da Lei, tomando como base o valor inicialmente pactuado, sem os acréscimos advindos das prorrogações", justificou o secretário conforme consta no relatório da inspeção.
Dessa forma, ele acrescentou que o valor global do contrato relativo ao período de 60 meses é de R$ 84.256.410,44, podendo ainda ser acrescido de até 50% (R$ 10.532.051,30) do valor inicialmente pactuado. Assim, o máximo que o contrato pode chegar é até R$ 94.788.461,74, conforme o titular da pasta.
Apesar das justificativas da defesa, a secretaria de Controle Externo do TCE propôs que o Tribunal determine que a prefeitura se abstenha de autorizar ou realizar novas obras por meio de adesão à ata do SRP, que não licite obras sem projeto básico, que as unidades gestoras se abstenham de realizar novos aditivos de acréscimo, entre outras medidas. A Corte ainda não julgou a ação.
Eusébio
Ainda na RMF, o TCE inspecionou contratos de 10 obras de recuperação e revitalização para modernizar espaços das secretarias de Educação, Saúde e Obras e Serviços Públicos da prefeitura de Eusébio. Na cidade, as intervenções foram orçadas em R$ 7.752.300,37 e firmadas pelo Sistema de Registro de Preços em 21 de outubro de 2021, com duração de 12 meses.
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Até a data da inspeção realizada pelos técnicos da Corte, em setembro de 2022, quase 11 meses após o início da contratação das obras, apenas um dos serviços estava em execução: o de recuperação do mercado público da cidade. Naquela ocasião, conforme informado por secretários da administração municipal, R$ 2.982.356,22 foram pagos pelos serviços – 38,4% do total do valor contratado.
Além do contrato irregular, os técnicos constaram que a gestão havia pago por serviços ainda não executados e por outros cumpridos em desconformidade com o contratado.
Em resposta ao Tribunal, o titular da Secretaria de Obras e Serviços Público de Eusébio, Ícaro Sampaio, informou que fez a estimativa do orçamento com base nas demandas das secretarias e que tinha noção dos serviços que seriam necessários, trançando, portanto, um plano de ação a ser cumprido no "menor espaço de tempo possível".
Ele ressaltou que os serviços demandados correspondiam aos autorizados pelo SRP, como manutenção de telhados, recuperação de instalações elétricas e hidráulicas, reboco, revestimento cerâmico, entre outros. O titular da pasta ainda complementou a reposta, alegando que as obras eram acompanhadas por profissionais habilitados, com a emissão de ART (Anotação de Responsabilidade Técnica).
Diante disso, a secretaria de Controle Externo do TCE ratificou o encaminhamento sugerido ao Tribunal com as recomendações para a prefeitura. No relatório, o órgão solicitou apenas a aplicação de uma advertência e orientações para que os gestores das pastas do município, em licitações de registro de preços, se abstenham de exigir comprovação técnica-operacional e profissional em serviços com complexidade incompatível com a modalidade.
Itatira
Em Itatira, no Interior do Estado, o TCE identificou irregularidades em contratações de serviços de manutenção e conservação de vias, passagens molhadas e prédios públicos vinculados à prefeitura da cidade. Os serviços foram orçados em R$ 12 milhões.
No relatório, os técnicos da Corte apontam inexistência de especificações "claras e objetivas sobre quais serviços de manutenção serão executados" pela gestão e a utilização de editais de municípios vizinhos como referência, mas com a aplicação de valores divergentes dos orçados por eles.
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Quando um município utiliza um edital de licitação de outro como "carona", os preços de referência dos itens e serviços contratados devem ser mantidos pela empresa vencedora da licitação no SRP, conforme explica o secretário de Controle Externo do TCE, Carlos Nascimento.
O órgão identificou também que as obras foram executadas e pagas sem que houvesse mão de obra com vínculo empregatício formalmente comprovado pela empresa contratada.
A prefeitura de Itatira, por sua vez, não respondeu aos questionamentos do TCE sobre os problemas identificados nas licitações do município. Assim, a Corte determinou a abertura de uma representação contra a administração para apurar as irregularidades apontadas.
A reportagem tentou entrar em contato com a prefeitura de Itatira, mas nenhum dos telefones disponibilizados no site do município foi atendido. E-mail enviado para a comunicação da gestão também não foi respondido até a publicação desta reportagem.
Jijoca de Jericoacoara
Em Jijoca de Jericoacoara, os profissionais da Corte inspecionaram serviços firmados pela prefeitura para atender demandas das secretarias de Agricultura e Abastecimento Hídrico, Educação, Saúde e Trabalho e Assistência Social. Os contratos foram celebrados em 2022, no valor de R$ 4.645.623,93.
Durante as vistorias, realizada em agosto de 2022, apenas uma das 13 obras contratadas estava em execução: a do CEI Amigos do Saber. Outras intervenções iniciadas, como a no CRAS do município, estavam paralisadas ou com falhas. Ainda assim, R$ 829.887,04 já tinham sido pagos.
Em resposta, a secretaria de Infraestrutura e Planejamento de Jijoca de Jericoacoara determinou a regularização dos serviços contratados – alguns, inclusive, já foram finalizados, enquanto outros estão sendo providenciados.
No documento, a secretaria de Controle Externo do TCE solicita que as secretarias citadas no relatório se abstenham de realizar novas obras incompatíveis com o SRP e sejam advertidas. O caso ainda não foi julgado pelo TCE.
Novo Oriente
Em Novo Oriente, no Interior do Ceará, as inspeções dos técnicos do TCE identificaram irregularidades em contratos de R$ 2.306.622,79 para "manutenção" de escolas dos municípios, via SRP. Todavia, os serviços não eram compatíveis com a modalidade.
Na ocasião, também foram verificados indícios de superfaturamento e, assim como em outros municípios, a contratação de empresa sem comprovação formal de vínculo empregatício com funcionários. O dano aos cofres do município foi orçado em R$ 409.877,63 pelos técnicos do TCE. O valor foi calculado com base no desconto pactuado, que não foi aplicado pela empresa, e nos serviços pagos e não realizados.
Após notificação da Corte, a prefeitura de Novo Oriente informou que a empresa contratada devolveu os R$ 409.877,63, enviando os comprovantes aos Tribunal. Na oportunidade, a gestão acrescentou que a prestadora de serviço justificou que a “falha” foi “sem dolo”.
Assim, o TCE determinou que a administração da cidade se abstenha de realizar novas obras via SRP, ou sem projetos básicos, e que somente liquide as despesas com a empresa contratada quando a prestadora comprovar as obrigações trabalhistas.
Quiterianópolis
Em Quiterianópolis, a vistoria do TCE identificou indícios de superfaturamento em obras de pinturas de portas, instalações de caixas de descargas, em construções de passagem molhadas e em escavações a céu aberto na cidade. O possível dano ao erário é de R$ 11.895,15.
Além disso, a empresa contratada não teria vínculo empregatício formal comprovado com trabalhadores que atuaram nas obras. Em resposta aos achados apontados no relatório, a gestão municipal disse que notificou a empresa para realizar os serviços que estavam com qualidades insatisfatórias e já teriam sido pagos. Na ação, anexou documento comprovando os reparos.
A prefeitura ressaltou, ainda, que houve um equívoco na digitação de valores do serviço para construção de passagem molhada e que os preços já foram corrigidos.
Todavia, a Corte determinou que a gestão comprove a regularização das seguintes pendências: ausência de instalação de seis caixas de descargas; incongruências no boletim de medição da construção de passagem molhada; e aplicação equivocada de percentuais dos BDIs contratados na ata de Registro de Preço.
Sanções
O secretário de Controle Externo do TCE explica que nem todos os processos oriundos da fiscalização in loco foram julgados, mas que alguns já renderam representações contra os agentes públicos devido às irregularidades. É o caso de Itatira, por exemplo, que não respondeu a Corte sobre os problemas apontados.
Nascimento salienta que as inspeções tiveram foco corretivo, inclusive contribuindo para identificação de repasses indevidos e o retorno da verba aos cofres públicos – mais de R$ 600 mil, se somados os valores restituídos pelas empresas contratadas em Boa Viagem (R$ 221.663,88) e Novo Oriente (R$ 409.877,63).
"Caso não tivesse existido essa fiscalização, teria ficado por isso mesmo", frisa.