Leitos, pré-natal e SAMU: riscos à saúde de gestantes e bebês são apontados em auditoria do TCE-CE
Levantamento realizado pela Corte avaliou a atenção materno-infantil no Ceará a partir do funcionamento de equipamentos de saúde em cidades polo da Rede Cegonha

As crianças de até 6 anos de idade não são as únicas impactadas pelas políticas públicas voltadas à Primeira Infância. Ou, pelo menos, não deveriam ser. Em 2024, mais de 105 mil recém-nascidos foram registrados no Ceará. O que significa mais de 105 mil gestantes — e, após o parto, mulheres puérperas — que também precisam ser cuidadas pela gestão pública.
No Ceará, no entanto, ainda existem problemas na rede de atenção materno-infantil na rede pública de Saúde. As maiores dificuldades encontradas tratam do pré-natal de médio e alto risco, as falhas na regulação de leitos para a transferência de mães e bebês e problemas com a demanda do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU.
A conclusão é de levantamento sobre o funcionamento da Rede Cegonha — hoje chamada de Rede Alyne — no estado feito pelo Tribunal de Contas do Ceará (TCE-CE). A fiscalização foi realizada durante os anos de 2023 e 2024 e teve relatório final inserido no processo que tramita na Corte em fevereiro de 2025.
Segundo o documento, ao estudo foi feito para "avaliação dos serviços prestados" para garantir "a efetividade das políticas públicas da saúde voltadas à atenção materno infantil, de forma contribuir para a melhoria contínua na oferta de cuidados à primeira infância, o cumprimento das metas de saúde estabelecidas e a otimização dos recursos públicos".
A fiscalização foi realizada em 32 equipamentos de Saúde do estado — 14 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 16 hospitais-maternidade e 3 policlínicas —, todos localizados em cidades-polo da Rede Cegonha no Ceará. Isso significa que, com exceção das UBS, as unidades atendem não só a população da cidade, como de localidades vizinhas.
Os municípios foram escolhidos com base em critérios "como índices de mortalidade materna e infantil, cobertura de leitos obstétricos e características socioeconômicas". Contudo, nem todos os equipamentos fiscalizados são de gestão municipal — alguns, são de responsabilidade do Governo do Ceará ou tem a gestão compartilhada.
O levantamento feito pelo TCE Ceará abrangeu desde a atenção pré-natal de gestantes — passando pelo acolhimento e acesso das mulheres aos serviços de saúde — até o atendimento ao puerpério das mães e a saúde do recém-nascido.
Apesar dos principais riscos serem relacionados à regulação de leitos, ao pré-natal de médio e alto risco e ao serviço ofertado pelo SAMU, foram identificados problemas específicos em algumas cidades.
Por exemplo, em municípios como Fortaleza, Caucaia, Eusébio e Aracati foram feito relatos de dificuldades de acesso a algumas unidades de saúde devido às facções criminosas — para diminuir o problema, "os gestores (das unidades de saúde) relataram a instalação de postos de saúde em unidades improvisadas para a realização do pré-natal", descreve o relatório final do TCE Ceará.
Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre as políticas públicas para Primeira Infância e a atuação de entes públicos para garantir a efetividade das iniciativas voltadas a crianças em seus primeiros anos de vida.
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De quem é a responsabilidade?
O Sistema Único de Saúde possui uma gestão compartilhada entre a União, os estados e os municípios, com cada um dos entes tendo diferentes responsabilidades para garantir o atendimento de qualidade à população.
O mesmo se aplica a atenção materno-infantil na rede pública de Saúde. A Rede Cegonha, por exemplo, foi estabelecida em 2011 pelo Ministério da Saúde para "garantir às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério".
Desde setembro de 2024, ela passou a ser denominada Rede Alyne, mas contendo os mesmos princípios e objetivos da Rede Cegonha — "agora também com foco voltado para a redução das desigualdades regionais e raciais e no enfrentamento ao racismo institucional".
Apesar dessa gestão compartilhada, os problemas identificados pelo TCE Ceará na atenção materno-infantil no estado são uma "questão mais estadual e municipal", explica o auditor de Controle Externo, Sérgio Mororó. Ele integrou a equipe técnica responsável pela auditoria realizada pelo Tribunal. Ele pontua que, por exemplo, o SAMU possui financiamento da União, mas que "o sistema logístico, a regulação e o transporte é o Estado que fica (responsável)".
Segundo o relatório final da fiscalização realizada pelo TCE Ceará, foram relatados diversos problemas com o serviço prestado pela SAMU, como:
- Falhas na agilidade do serviço prestado;
- Problemas de comunicação entre o SAMU e a Central de Regulação;
- Excesso de burocracia para acionamento dos serviços em situações de urgência;
- Problemas na cobertura ofertada pelo SAMU.
"Destaca-se a relevância do problema considerando a alta incidência das reclamações, bem como as consequências de caráter gravíssimo, em casos de situações de falha nos serviços de transporte sanitário de emergência, considerando as condições de saúde dos pacientes", pontua o documento.
O problema relacionado ao SAMU é reflexo de outro desafio identificado pela auditoria, aponta Mororó: as dificuldades para realizar o pré-natal de médio e, principalmente, de alto risco.
"Isso reflete na questão do SAMU, porque acaba tendo gestações que não identificou que era uma gestação de alto risco. E a gestante vai para a maternidade daquele município e, como não foi identificado de alto risco, você gera aquela necessidade acima do esperado e tem que acionar o SAMU", diz.
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Foram identificadas possíveis causas para esse problema, como: a carência de profissionais especializados; a distribuição desigual de serviços de saúde; e as barreiras geográficas e financeiras das gestantes. "A falta de acesso a esse tipo de pré-natal especializado resulta em diagnósticos tardios e na ausência de intervenções preventivas, aumentando a probabilidade de desfechos adversos", pontua o relatório final do TCE Ceará.
É importante lembrar que a mortalidade infantil no Ceará é de 11,72 para cada 1 mil nascidos vivos — a meta do Plano Estadual de Saúde 2024-2027 é reduzir a taxa para um dígito. Já a mortalidade materna é de 58,5 para cada 100 mil nascidos vivos.
"O pré-natal de alto risco é uma responsabilidade dividida entre estados e municípios", pontua Sérgio Mororó. O atendimento pode ser feito pelo Município — responsável pela contratação do médico para acompanhar as gestantes — ou dentro de unidades pertencentes aos Consórcios Públicos de Saúde que possuem financiamento tanto estadual como municipal.
"Por exemplo, na região do Litoral Leste e Jaguaribe, a gente percebeu a dificuldade de ter profissionais que atendessem o pré-natal de alto risco. Isso leva a uma fila de gestantes de alto risco, que chegam no final da gestação com quase nenhum exame de alto risco. Isso reflete nos indicadores", detalha o auditor.
Segundo dados de 2023, a Macrorregião do Litoral Leste e Vale do Jaguaribe possui o maior índice de mortalidade materna do Ceará, com 121,1 mortes por 100 mil nascidos vivos — o dobro da média estadual.
A dificuldade na contratação de profissionais para a atenção materno-infantil deve ser foco de uma nova fiscalização do TCE Ceará, segundo Mororó, a partir dos resultados encontrados neste levantamento. "O Tribunal vai investigar porque tem essa dificuldade. É culpa do Município? Do Estado? É o profissional que está em falta?", lista.
Estrutura 'adequada', mas problemas de 'alto impacto'
O levantamento feito pelo TCE Ceará fiscalizou 42 ações da rede de atenção a gestantes, recém-nascidos e puérperas no Ceará, divididos em sete categorias. "A rede de assistência materno-infantil possui um quantitativo adequado de unidades de atenção primária, secundária e terciária", destaca a conclusão do estudo.
Por exemplo, a totalidade das unidades foi considerada adequada ou parcialmente adequada em ações como:
- Atendimento inicial e triagem;
- Facilidade de acesso ao serviço;
- Qualidade do acolhimento e humanização do atendimento;
- Vinculação prévia das gestantes a uma maternidade específica;
- Captação precoce da gestante e qualificação da atenção no pré-natal;
- Frequência e regularidade das consultas de pré-natal;
- Realização de exames de rotina no pré-natal;
- Acompanhamento e orientações sobre nutrição, higiene e vacinas;
- Identificação e manejo de riscos (doenças preexistentes, complicações)
- Disponibilidade e distribuição de medicação necessária;
- Assistência às gestantes em situação de alta vulnerabilidade social;
- Qualificação do sistema e da gestão da informação relacionada ao pré-natal;
- Acolhimento ao recém-nascido (primeiros cuidados, amamentação);
- Orientações sobre cuidados com o bebê (amamentação, higiene);
- Disponibilidade de apoio para amamentação (consultoria em lactação);
- Realização de acolhimento com classificação de risco nos serviços obstétricos e neonatais;
- Acompanhamento da saúde materna (consulta de revisão pós-parto);
- Continuidade da assistência ao recém-nascido (vacinas, consultas);
- Orientação sobre planejamento familiar e contracepção.
Contudo, continua o relatório do TCE Ceará, os problemas identificados possuem "alto impacto nos indicadores de saúde do Estado que requerem soluções e/ou ações de controle específicas".
Entre os aspectos listados no levantamento do Tribunal, dois deles tiveram mais inadequações identificadas: a "Atenção ao parto e ao Nascimento" e a "Assistência hospitalar para gravidez de alto risco".
Um dos pontos foi a prevalência de partos cesarianos sob os normais, que foi considerado inadequado em 36% das unidades. A comunicação entre unidades de saúde foi considerada inadequada em 28% das unidades, por exemplo. O deslocamento das gestantes para consulta e local do parto também teve 14% de equipamentos considerados inadequados.
A mesma classificação foi dada para 28% das unidades de saúde quando se trata da disponibilidade de tecnologia e recursos avançados, como monitoramento fetal, UTI neonatal.
Em 43% delas, o encaminhamento ágil para centros especializados é inadequado. A infraestrutura e a suficiência de leitos obstétricos e neonatais foram consideradas inadequadas em 7% das unidades. Segundo o relatório, foi observado, por exemplo, a superlotação em alguns hospitais, enquanto em outros havia sobra de leitos.
A situação evidencia outro risco identificado entre os principais pelo TCE Ceará: a demora e falta de agilidade na regulação de leitos para transferência.
"A lentidão na regulação de leitos, muitas vezes associada à falta de leitos disponíveis em unidades de referência, impede que as mulheres recebam atendimento especializado no momento adequado. Essa demora pode levar ao agravamento do quadro clínico, aumentando o risco de óbito", cita o relatório final.
"A demora e falta de agilidade na regulação de leitos para transferência, é um dos fatores que mais contribui para a mortalidade materna e infantil por causas evitáveis", reforça o documento.
Compromisso da gestão pública
Lançado no início de abril, o Pacto Cearense pela Primeira Infância elenca diversos compromissos a serem assumidos no Ceará por diferentes órgãos. Entre elas, o aprimoramento da rede de atenção materno-infantil.
Signatário do Pacto Ceará, o Governo do Ceará se comprometeu a "promover ações e serviços que ampliem e melhorem a rede de saúde materno infantil com o objetivo de reduzir a mortalidade materna e infantil, em especial, a mortalidade neonatal".
O Diário do Nordeste indagou a Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa) se a pasta foi comunicada sobre os resultados encontrados pelo levantamento realizado pelo TCE Ceará e quais as medidas adotadas sobre o tema, principalmente quanto aos três principais problemas identificados pelo Tribunal. A Sesa se limitou a informar que "não foi notificada pelo Tribunal de Contas do Ceará".
A reportagem reforçou o questionamento sobre quais ações são feitas pelo Estado nas três áreas apontadas pelo TCE Ceará. Contudo, não houve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço continua aberto para manifestação.