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Marco temporal: quais os impactos da divergência entre STF e Congresso e o que pode fazer o Governo

Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam um cenário de "insegurança legal"

Escrito por Ingrid Campos , ingrid.campos@svm.com.br
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Legenda: Indígenas de todo o Brasil têm se mobilizado em defesa dos territórios tradicionais.
Foto: Agência Brasil

Paira um clima de incerteza sobre o marco temporal nas terras indígenas (TIs) com os entendimentos divergentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional em relação ao tema. O impasse, agora, está nas mãos do Planalto, que deve definir, neste mês ainda, o futuro desta discussão.

O imbróglio acontece porque, em setembro, a Corte declarou como inconstitucional a tese que restringe a demarcação de TIs  àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da nova Constituição Federal. 

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Uma semana depois, o Senado aprovou uma matéria com conteúdo diametralmente oposto, dando fim à tramitação no Congresso, que já durava cerca de 16 anos, e encaminhando a responsabilidade ao Planalto.

Diante desse cenário, cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pesar três possibilidades: sancionar o projeto e transformá-lo em lei, mantendo a inconsistência constitucional; vetá-lo parcialmente, derrubando pontos mais polêmicos, mas mantendo a insegurança legal; e vetá-lo integralmente, devolvendo a análise para o Congresso.

A Presidência da República tem um prazo de 15 dias úteis para tomar uma providência. Segundo a Casa Civil, o período começou a contar no último dia 29, ou seja, a data-limite é 20 de outubro.

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), já sinalizou que Lula deve deliberar da segunda forma: excluindo pontos como a possibilidade de plantação de transgênicos em terra indígena e contato com povos isolados. 

Caso um dos dois últimos casos se confirme, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já afirmou que vai pautar a apreciação dos vetos, já que é sua prerrogativa convocar sessões conjuntas entre Câmara dos Deputados e Casa Alta. 

Para rejeitá-los, deputados e senadores devem reunir maioria absoluta dos votos, ou seja, 257 do primeiro grupo e 41 do segundo. Caso não atinja esse quórum, as interdições de Lula são mantidas. 

De toda forma, o andamento das discussões não deve acompanhar a finalização do rito legislativo. Como a proposta foi aprovada após o Supremo formar entendimento sobre o assunto, pode haver nova judicialização, além da repercussão internacional. 

Indígenas brasileiros foram à Organização das Nações Unidas (ONU), no fim de setembro, para denunciar a "violação frontal aos direitos dos povos indígenas" pelo Congresso. A denúncia foi feita pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Conectas Direitos Humanos, que pediram, ainda, o veto integral a Lula.

Repercussão

Enquanto se aguarda um desdobramento sobre o marco temporal, mobilizações seguem de várias frentes. A bancada ruralista tenta contornar uma das críticas feitas à decisão do Congresso: aprovar uma mudança constitucional por Projeto de Lei.

Por isso, parlamentares da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) estão fazendo uma curadoria de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que tratam sobre o tema para se resguardarem. 

Do outro lado, o Ministério dos Povos Indígenas – sob Sônia Guajajara – formalizou uma relação de dez novas TIs cujos processos de demarcação estão prontos para ter andamento. A lista foi recebida pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, responsável pela portaria declaratória.

Depois disso, fica a cargo da Presidência da República a homologação das terras, etapa final da demanda indígena.

"(O andamento do processo visa) garantir a proteção dos direitos territoriais indígenas, frequentemente ameaçados por invasões e esbulhos, sendo medida apta também para dirimir conflitos fundiários de longa duração, que repercutem em violências e instabilidades, afetando drasticamente os povos indígenas no Brasil", diz Guajajara, no ofício.

Sônia Guajajara, povos indígenas
Legenda: Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas.
Foto: Leo Otero/Apib

O Ministério Público Federal (MPF) já havia se manifestado nesse sentido. Em maio, durante a aceleração do trâmite do projeto na Casa Baixa, Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, vinculada à Procuradoria-Geral da República (PGR), apontou a inconstitucionalidade da matéria em nota pública.

Além de ameaçar o direito dos indígenas ao próprio território, o órgão também destacou que mudanças no estatuto jurídico das terras indígenas por uma lei ordinária não são possíveis. Concluiu, ainda, que a ocupação de territórios tradicionais é defendida em cláusula pétrea, ou seja, nem uma PEC poderia alterá-la.

Na Justiça, há 226 processos sobre demarcação aguardando desfechos. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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STF x Congresso

Para além do mérito em si, a temática reforça as discussões sobre o embate entre os Poderes, dinâmica comum nos últimos anos. O caminho é quase sempre o mesmo: o STF inicia a análise de um tema polêmico e o Congresso começa a discutir a questão pouco tempo depois.

Assim, cria-se um cenário de disputa de entendimentos entre Judiciário e Legislativo em um curto período, confundindo atribuições e aprofundando os conflitos no cenário político brasileiro.

O marco temporal é um dos exemplos mais recentes dessa dinâmica. O projeto de 2007 aprovado pelo Congresso tramitou pouco a pouco e por uns bons anos em três comissões até 2021, quando o Supremo iniciou o julgamento sobre a tese.

De novembro daquele ano até abril de 2023, a proposta não teve nenhuma movimentação na Câmara, sua Casa de origem. Naquele mês, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber, marcou uma nova data para a retomada do julgamento. 

Em maio, os deputados aprovaram o texto por 283 a 155 votos. Seguiu para a Casa Alta, onde passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), recebendo o aval dos senadores em plenário na última quarta-feira (27).

O conteúdo recebeu o aval do senador cearense Eduardo Girão (Novo). Cid Gomes (PDT) e Augusta Brito (PT) votaram contra.

Para André Santos, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a postura “reativa” do Congresso em relação a temas discutidos no Supremo causa “uma insegurança institucional que cria uma insegurança legal”. 

Isso porque não há certeza de que as decisões do STF serão cumpridas, já que o Congresso se mobiliza para aprovar legislação que contraria o entendimento da Corte. 

Esse é um padrão que vem se repetindo recorrentemente nos últimos anos, em especial durante o Governo Bolsonaro (2019-2022). “Hoje, quem está mais propenso a dar a decisão final é o Congresso Nacional, que se empoderou nesse período”, afirma. 

“Sem juízo de valor, mas se a gente pegar o Governo Bolsonaro para cá, por conta da pandemia, a gente percebe que houve uma ausência de atuação do Poder Executivo em alguns casos, aí o Legislativo atuou. E quando houve ausência do Executivo e do Legislativo, o Judiciário atuou”, avalia, ainda. 

Ele cita os exemplos das decisões do Supremo que deram autonomia aos estados e municípios na aplicação de medidas de isolamento social, em 2020, e na aquisição de vacinas, em 2021.

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De certa forma, o STF esvaziou um poder que, até então, estava sob a União, mas que não era utilizado da maneira adequada naquele momento de crise econômica e sanitária. 

No fim, gestores locais ganharam mais autoridade sobre a gestão da pandemia, o que ajudou a arrefecer os efeitos devastadores da Covid-19. Essa autonomia acabou gerando críticas do então presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Sempre está tendo uma falha do Poder Legislativo em não legislar, e aí o Judiciário tem sido provocado. A gente usa muito o STF como referência porque é o que fica mais em destaque, mas o Tribunal Superior Eleitoral, o Tribunal Superior do Trabalho, o Superior Tribunal de Justiça têm sido acionados por ausência de legislação ou de decisão que devia ser tomada", destaca. 

Em contrapartida, o Congresso tem se utilizado de mecanismos legais para reafirmar sua função e atuar em relação a determinados temas. Além do marco temporal, são exemplos recentes a descriminalização do aborto e a liberação do casamento homoafetivo.

Por outro lado, a doutoranda e pesquisadora do programa Resocie (Repensando as Relações entre Sociedade e Estado) da Universidade de Brasília (UNB), Ana Vaz, pondera que nenhuma função é, de fato, lesada nessa dinâmica.

Apesar de uma ala mais conservadora acreditar numa “interferência” ou num “ativismo judiciário” nesses casos, a cientista política lembra que o STF julgou um caso específico, que pode abrir prerrogativa para que se entenda casos semelhantes da mesma forma, mas no fim, é um processo referente a uma única terra.

A ação em questão foi movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em defesa da Terra Indígena (TI) Ibirama, habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. Os limites são contestados pela Procuradoria do Estado de Santa Catarina.

“Se for para demarcar, o Legislativo não está perdendo o espaço de legislar. O Judiciário está dando um direcionamento específico: vai ter que acontecer uma regulamentação, se criar uma legislação pensando as atribuições da Funai, pensar no que vai ser feito desses outros processos demarcatórios. Entretanto, toda essa legislação deve acontecer sem esse limite do marco temporal”, pontua.

O que diz o projeto

Além de estabelecer o dia 5 de outubro de 1988 como norteador para o processo de demarcação, o projeto que passou no Congresso estabelece uma série de medidas que ultrapassam a questão territorial. 

Entre elas:

  • Exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas;
  • Celebração de contratos após aprovação da comunidade, da manutenção da posse da terra e da garantia de que as atividades realizadas gerem benefício para toda essa comunidade;
  • Autorização para exploração de garimpos e plantação de transgênicos nas TIs;
  • Possibilidade de contato com povos isolados;
  • Possibilidade de o governo tomar a terra ou destiná-la ao Programa Nacional de Reforma Agrária caso haja "alteração dos traços culturais" ou se a área perder o caráter "essencial" à comunidade indígena;
  • Previsão de indenização, pelo governo, à desocupação das terras e a validação de títulos de propriedade nas TIs. Esse trecho também é previsto na decisão do Supremo.
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