Marco Temporal: herdeiros de colonizadores querem continuar esbulho e genocídio de povos originários

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Pouco mais de uma semana após o Supremo Tribunal Federal considerar, por ampla maioria (nove votos a dois), inconstitucional a tese do marco temporal, o Senado Federal, com o voto de quarenta e três senadores, afrontando a decisão do Poder Judiciário, aprovou o projeto de lei 2903/23, que já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, impondo limite temporal para o reconhecimento do direito de posse sobre suas terras aos povos originários, às comunidades indígenas. Segundo o projeto aprovado, só poderão ser reconhecidas e demarcadas como terras indígenas aquelas que estavam na posse dos povos indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988, impondo um limite temporal para reconhecimento do direito dos indígenas as suas terras, o que não está previsto na Constituição, sendo, o projeto de lei, portanto, inconstitucional, como decidiu a Corte Suprema da Justiça brasileira, a Corte responsável pela salvaguarda da Constituição e que, portanto, ao contrário do que afirmam as bancadas ruralista e bolsonarista, que se uniram na aprovação da proposta, não há invasão por parte dos ministros do Supremo da prerrogativa de legislar do Parlamento, apenas estão exercendo sua prerrogativa de controle da constitucionalidade das leis.

Mas, o mais grave, é que o relator do projeto, o senador Marco Rogério da Silva Brito, do Partido Liberal, do estado de Rondônia, recusou todos os destaques apresentados pelos senadores que se opunham a aprovação da proposta, notadamente os destaques que visavam suprimir vários “jabutis” (ou seja adendos não relacionados diretamente ao tema principal do projeto) que ampliam o caráter lesivo do projeto em relação aos interesses dos povos indígenas.

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Os descendentes dos invasores e colonizadores portugueses, os homens e mulheres que se acham brancos (ou pelo menos os que assim se julgam), os defensores dos interesses do latifúndio, dos grileiros, dos desmatadores, dos garimpeiros, não se satisfizeram com o fato de que adotar um marco temporal para o reconhecimento dos direitos indígenas é sancionar e legalizar o esbulho e a violência que esses povos historicamente sofreram. É legalizar as invasões de terras indígenas perpetradas depois da promulgação da Constituição de 1988, é fazer das vítimas históricas os vilões. Mas avançaram ainda mais no projeto de inviabilizar a sobrevivência desses povos e legalizar os interesses econômicos em relação as riquezas e recursos pertencentes a esses territórios, ao acrescentar a proposta a permissão para que se faça a exploração econômica dos territórios ocupados pelas comunidades indígenas. A hipocrisia e a desfaçatez dos novos colonizadores se manifesta na ideia de que submeter essa exploração a permissão das comunidades representa alguma garantia de seus direitos, quando sabemos que uma vez permitida e legalizada a exploração, a permissão será conseguida por bem (através da corrupção e suborno das lideranças indígenas) ou por mal (através da violência, da eliminação assassina dos líderes que se opuserem a exploração de seus territórios).

Um dos argumentos hipócritas brandidos pelos defensores da matéria era que não estabelecer um marco temporal para a demarcação das terras indígenas era abrir brecha para um banho de sangue no campo e dar margem a uma total insegurança jurídica. Só que esses argumentos podem ser utilizados, justamente, para se contestar a tese do marco temporal e, ainda mais, um projeto de lei em que os “jabutis” praticamente acabaram com qualquer segurança jurídica quando se trata dos direitos indígenas e, claramente, abre margem para a matança desses povos, à medida que autoriza e dá passo a cobiça sobre as riquezas dos territórios indígenas e a ocupação de seus territórios por pessoas não indígenas. Todos os crimes perpetrados nos últimos anos nas terras Yanomamis, o genocídio a que estava condenado aquele povo pela presença do garimpo ilegal em suas terras mostra qual será o futuro dos povos originários com o garimpo legalizado, com a exploração legalizada de suas terras. Submeter as terras indígenas a lógica do mercado será o fim da existência dos modos de vida daqueles povos.

O projeto é totalmente apoiado numa visão colonialista, branca, uma visão etnocêntrica, que nega, em última instância, a própria existência desses povos e o direito que eles têm de adotar outras formas de existência, diferente do modo capitalista de existir. Não entra na cabeça burguesa e empresarial desses parlamentares que os indígenas possuem o direito de não quererem explorar a natureza como o branco explorou, processo que nos levou a situação em que estamos colocados. O projeto caminha na contramão da percepção de que foram os povos originários que conseguiram preservar o que temos de recursos naturais, caminha na direção de continuarmos tendo uma relação predatória com o meio ambiente, caminha na direção de inviabilizar a vida humana na terra ao submeter toda a sua superfície a lógica do capital.

Essa gente não se dá conta, com sua ambição e ganância capitalista, que se o capitalismo colonizar toda a terra, se ele chegar com sua lógica a última fronteira da terra, a vida no planeta, em pouco tempo, se tornará inviável.

Quando fazem discursos inflamados contra a Ministra Marina Silva, esses parlamentares apenas estão submetendo o futuro do planeta e da espécie aos seus interesses empresariais e até interesses ilegais imediatos, não possuindo a visão de futuro que ela representa, um futuro em que os povos originários possam continuar existindo, como outras formas e modelos de ser humanos, diferente do modelo neoliberal de humanidade que esses parlamentares vinculados ao agronegócio representam.

Mas a perversidade do projeto aprovado é ainda maior quando prevê, nada mais, nada menos, que a possibilidade de se reverter a demarcação já realizada de terras indígenas. A proposta do ministro do meio ambiente de Bolsonaro, Ricardo Sales, de deixar passar a boiada (metáfora que é autoexplicativa quando se trata de deixar passar os interesses de criadores de bois e seus representantes regiamente remunerados no Congresso Nacional) foi finalmente legalizada. Imagina o que acontecerá, num país em que grande parte da propriedade da terra é fruto de ilegalidades e violência, desde o período colonial, onde a invasão de terras indígenas, de terras pertencentes a comunidades quilombolas e tradicionais, a grilagem de terras públicas foram e são formas privilegiadas de expansão das propriedades, ao se legalizar a possibilidade de voltar atrás na demarcação das terras indígenas. É essa gente que vem cândida e, por vezes, indignadamente, falar em insegurança jurídica e banho de sangue no campo. Quais as consequências que se pode esperar da aprovação de um dispositivo que torna perenemente insegura a posse da terra indígena? Há alguma dúvida que se esse dispositivo não for vetado pelo Presidente da República (espera-se que ele vete o projeto inteiro por inconstitucionalidade, como já definido pelo STF, embora, com certeza, passará pelo constrangimento da derrubada do veto e outras chantagens vindas do chamado Centrão) teremos matanças e invasões de territórios indígenas para a posterior reivindicação jurídica de desdemarcação. Estaremos entregues a lógica colonial novamente, ao colonialismo mais desabrido, quando os ditos bandeirantes ou entradistas, os colonizadores, os civilizadores, limpavam a terra da presença indígena (com a matança, o adoecimento e a desagregação de suas formas de vida, de suas culturas, com a escravização ou a redução a servidão) para depois solicitar a posse delas ao rei de Portugal na forma de sesmarias. São os herdeiros dessa gente querendo continuar a “grande obra” de seus ancestrais, tal como decantada, por muito tempo, pela historiografia pátria.

Fica claro que quando esses parlamentares falam de insegurança jurídica, o que eles estão reivindicando é que se reconheça como direito o que foi resultado, em muitos casos, de práticas ilegais e criminosas. Eles estão defendendo que a justiça e o direito recubram apenas os interesses daqueles que se julgam brancos ou não indígenas. É um Parlamento indignado porque o poder Judiciário reconheceu os indígenas como sujeitos de direitos. É um Parlamento empenhado em retirar direitos dos mais vulneráveis, em devolver a condição da invisibilidade e da não existência, do ponto de vista do direito, certos sujeitos (como também tentam fazer com os homossexuais, os transexuais, as mulheres, os usuários de drogas). São os que se julgam brancos, mais uma vez, pondo em dúvida a condição de humanidade, de igualdade de direitos dos povos originários. A aprovação do projeto do marco temporal escancara para toda a sociedade que os parlamentares, em sua maioria, legislam pensando em seus próprios interesses e nos interesses daqueles que financiam suas campanhas e seus mandatos, já que os parlamentares que compõe a chamada bancada do agronegócio recebem subvenções permanentes durantes seus mandatos para votarem barbaridades como as que foram aprovadas nessa semana. Essa gente submete o futuro, não só dos povos indígenas, mas da própria espécie, do próprio planeta, a seus interesses privados, mesquinhos, empresariais, as suas ambições desmedidas.

Quando um Parlamento se levanta contra a Justiça, quando faz obstrução de votações para pressionar o órgão máximo do Judiciário a não cumprir o seu papel de interpretar e aplicar a lei máxima do país, quando em dois dias votam um projeto eivado de inconstitucionalidades, explicitando o autoritarismo, a violência, inclusive discursiva, com que atuam em suas vidas empresarias e particulares, descobrimos que estamos na vigência do Estado exceção, embora pareça o contrário. Um Parlamento que vota leis para retirar direitos em nome da segurança jurídica e que abre as portas para o esbulho e o genocídio final dos povos indígenas, em nome de evitar um banho de sangue no campo (o que sem perceber diz muito, já que não pode ter banho de sangue no campo, onde essa gente domina, mas pode ter na floresta, onde essa gente quer ter o domínio e ainda não possuem de todo), é um Parlamento que nega o espírito da República e da democracia, é um Parlamento que defende e reafirma privilégios de classe, de etnia, de raça, de gênero, é um Parlamento que se recusa a ver dados sujeitos como agentes políticos, como sujeitos humanos e plenos de direitos. Um Parlamento que privilegia o negócio em relação a vida e a existência de outros seres, cujo pecado é serem humanos de outra maneira, de serem alternativas a forma bárbara de humanidade que esses pretensos de civilizadores e colonizadores representam. A aprovação do marco temporal é um marco na história da infâmia nesse país.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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