Uma parte do país tomou conhecimento, nas últimas semanas, da situação de catástrofe humana em que estava vivendo o povo indígena Yanomami, motivada pela invasão das suas terras, já oficialmente demarcadas, por milhares de garimpeiros ilegais, que espantam ou matam os animais de caça, devido o ruído das máquinas e equipamentos, que contaminam os rios com mercúrio, levando a morte dos peixes, as fontes de alimento básicas para esse povo, se apropriam das roças que eles plantam, além de trazerem doenças como a malária e o sarampo e perpetrarem contra os indígenas todo tipo de violência, como o estupro das mulheres e o assassinato de lideranças.
Os garimpeiros, a maioria deles homens pobres, profundamente explorados, abastessem de ouro ilegal grandes empresas de valores e o tráfico internacional desse metal, burlando o fisco e dando enorme prejuízo ao país. O ouro serve ainda para a lavagem de dinheiro de outras práticas ilícitas na região, como a exploração ilegal de madeira e o tráfico de drogas. Com a conivência e incentivo do governo de Jair Bolsonaro e do governo do estado, o genocídio do povo Yanomami, podemos dizer, era uma política de Estado, deliberada e planejada.
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A entrevista do governador de Roraima, Antônio Denarium, para o jornal Folha de São Paulo explicita as concepções que estão na base das atitudes criminosas que se vêm praticando contra os Yanomami e contra todos os povos indígenas do país. Há um conjunto de formas de pensamento que servem de ponto de partida para todas essas atitudes genocidas, que visam, em último caso, o extermínio desses povos, que têm sua matriz no pensamento colonial. Quando o governador os considera um obstáculo ao desenvolvimento, ele está reverberando a visão colonialista de que essas gentes, essas culturas, seriam um obstáculo a civilização, afinal, como disse a autoridade máxima do estado, eles deveriam se aculturar, adotar a forma de vida dos brancos, deveriam sair do meio do mato, deixarem de “viver como bichos”.
Assim como no período colonial, a cobiça dos homens ditos brancos e civilizados em relação as riquezas que as terras indígenas guardariam é a justificativa para considerarem que eles são um obstáculo ao progresso do estado. Nas entrelinhas há um não dito explicitamente, mas que cotidianamente ainda hoje, e no período da conquista portuguesa, é e foi levado a prática: a morte desses “bichos” seria a forma de limpar essas terras da presença de tal obstáculo a civilização e ao progresso, a eliminação deles resolveria o problema, liberando as terras para a exploração capitalista.
Desde a década de noventa, quando apresentou um projeto de lei na Câmara dos Deputados, para proibir a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, as terras dos Yanomami, Jair Bolsonaro pugna pelo que nomeia de integração dos indígenas ao mundo civilizado e a entrega das áreas onde residem para os interesses empresariais de toda ordem, sejam legais ou ilícitos.
A visita oficial que fez, como presidente da República, a uma área contigua as terras dos yanomami, de onde partiam muitas das agressões que aquele povo vinha sofrendo - situações que foram denunciadas por lideranças e militantes da causa indígena e ambiental, alertas que foram solenemente ignorados por ele e por seus ministros, como Damares Alves e Ricardo Sales – deixa claro a ação deliberada do governo em desrespeitar a legislação que protege essas comunidades e desconhecer os direitos por eles conquistados. Jair Bolsonaro apenas deu curso a uma tese muito presente nas Forças Armadas brasileiras de que as reservas indígenas, notadamente aquelas localizadas nas fronteiras, como é o caso da terra yanomami, seriam uma ameaça a segurança nacional, abrindo margem para infiltração de interesses e personagens estrangeiros, além de contestarem o que seria a integridade da nação.
Essas teses, claramente de feição colonial, ganharam foros de paranoia num livro publicado pela Biblioteca do Exército, em 1995, de autoria do coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, intitulado “A farsa Yanomami”. Nele dizia que o povo yanomami era uma invenção da fotógrafa suíça, radicada no Brasil, Cláudia Andujar, que teria convencido vários grupos distintos e isolados a se ianomamizarem visando atender interesses estrangeiros, farsa que visaria se apropriar de uma ampla área do estado de Roraima, na fronteira do país com a Venezuela e retirá-la no controle do Estado brasileiro. Entre a tese da inexistência e a ação visando que ela se materialize é um passo.
A morte de cerca de 570 crianças entre os yanomami, nos últimos anos, é a maneira mais efetiva de condenar esse povo a destruição. A destruição de suas formas de vida, a depredação do entorno natural onde vivem e de onde retiram sua subsistência, a transmissão de doenças e a violência sanguinária aberta são, desde que os portugueses invadiram as terras em que habitavam, as formas de extermínio dos povos originários. Repete-se com os Yanomami o mesmo que ocorreu e ocorre com outros grupos indígenas ao longo da história brasileira.
As comunidades indígenas remanescentes são sobreviventes de um longo processo de genocídio, tiveram que resistir e se adaptarem aos limites e obstáculos constituídos pela forma de vida dos brancos, à sua cobiça assassina, aos inúmeros preconceitos nascidos das imagens negativas que a eles foram atribuídas desde os primeiros relatos coloniais.
Quando o governador de Roraima afirma que eles devem se aculturar, há na base de seu pensamento a ideia de que eles viveriam num estágio civilizatório inferior ao nosso. Conforme as teses evolucionistas eles viveriam na selvageria, levariam uma vida de “bichos”. Não se concebe que, na verdade, todas as comunidades originárias representam formas alternativas de civilização, formas distintas de ser e viver como humanos. Eles não são e nunca foram apenas bichos (porque bichos todos nós somos, o que esquece o senhor governador e, como tal, precisamos da natureza e do meio ambiente para viver), são formas distintas do humano, propostas diferentes de vida humana e é isso que incomoda a arrogância do saber colonial que se pretende o único caminho para sermos humanos.
Quem parece mais selvagem, os indígenas que respeitam a terra, os rios, as plantas, os animais ou milhares de homens que, em busca de enriquecer, de amealhar dinheiro, a tudo destrói e depreda, desrespeitando as distintas formas de aparecer do próprio humano, sendo capazes de matar crianças, de violentar mulheres, de roubar o que os indígenas plantam.
Quem é o bicho, aqueles que defendem as distintas formas de vida na terra, da qual dependemos, ou as autoridades que condenam povos inteiros aos extermínio, que fazem vista grossa para crianças esqueléticas, a morrer de fome e doenças, que são capazes de desviar remédios que combateriam as verminoses dos menores, ou líderes religiosos que se apropriam dos recursos que salvariam vidas humanas, ou os líderes políticos que advogam a não demarcação das terras que garantem a existência desses povos, que incentivam a exploração criminosa de suas terras, que não reconhecem sequer o direito deles aos direitos humanos, que lhes negam água potável e leitos para serem tratados de doenças, ou os militares que se vendem aos criminosos e acobertam suas atividades ilegais?
Não, essas pessoas sequer são bichos, porque os bichos não são capazes de tamanha crueldade e vilania, só dadas formas de ser humano, dada humanidade que não mereceria esse nome é capaz de perpetrar tais crimes contra a própria humanidade de outros.
A cabeça colonizada da maioria daqueles ditos civilizados acha que os indígenas são anacronismos, são seres que ficaram parados no tempo, que não são nossos contemporâneos.
Os povos originários não poderiam, por isso, darem enormes contribuições para a sociedade brasileira, eles seriam um peso para o país, seriam párias que atrapalham o progresso. Ao invés de serem vistos como alternativas civilizacionais, como modelos alternativos de existência, como estando ao nosso lado mostrando o sem sentido de vidas que se sacrificam, que tudo fazem - inclusive perpetrando todo tipo de crime -, em busca de ouro, de poder e riqueza.
Diante de nós, humanos subjetivamente construídos pelo capitalismo, que vemos no consumo, na propriedade, na posse de mercadorias, no trabalho para enriquecer outrem, nos objetos, o sentido de nossa própria existência, a vida de alguém que vira as costas para o ouro, para ter coisas, que se dedicam a uma forma de vida integrada com a natureza, uma forma de vida pontuada por rituais mágicos e religiosos, com um outro sentido de tempo e espaço, essas formas de vida podem parecer não só ultrapassadas e inadequadas, como, inclusive, ameaçadoras, pois elas testemunham o sem sentido de nossa forma de ser.
Para os fascistas, os indígenas são restos, são detritos de tempos e formas de vida que devem ser exterminados. Eles são incômodos, não apenas porque interrompem os negócios, não apenas porque lutam por suas terras e desconhecem fronteiras nacionais, não apenas porque, hoje, chegaram, inclusive, ao poder de Estado, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a finalmente dirigirem a entidade a eles dirigida, a Funai, mas porque com seus saberes, com suas formas de pensar, com seus valores, com seus hábitos (muitos deles corrompidos pela chamada civilização branca), com suas crenças, com seus estilos distintos de vida, eles significam outros projetos de humanidade, outras formas de relação dos humanos com o planeta, eles são o testemunho vivo do fracasso do modelo ocidental e cristão de civilização, capaz de gerar pessoas da espécie daquelas que são insensíveis a dor e a morte dos que sequer consideram como semelhantes, capaz de produzir essa gente perversa e cega pelo brilho do ouro e da grana, capazes de destruir formas seculares de vidas humanas e natural em nome do brilho fugaz da riqueza, da ganância de uma minoria que, em seu consumismo desbragado, vai inviabilizando a própria possibilidade de vida no planeta.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.