Ódio à arte: um traço da brutalização fascista das sensibilidades

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Vivemos no domingo passado, dia 08 de janeiro de 2023, uma das páginas mais lamentáveis e vergonhosas da história republicana brasileira. Conivência, inação, omissão, cumplicidade, imprevidência das autoridades constituídas permitiram que ocorresse a invasão, mais do que anunciada, das sedes dos três poderes da República, pelas hordas fascistas bolsonaristas. O vandalismo, a depredação, o achincalhe, o vilipêndio das casas dos três poderes, que são o tripé do Estado democrático de direito, deixa claro o desprezo, quando não o ódio autoritário, às instituições basilares do estado republicano e democrático. Os três prédios, semidestruídos pelos vândalos da extrema-direita, não são apenas prédios, eles simbolizam, materializam, são a presença dos três poderes, que compõem os fundamentos do Estado democrático e do funcionamento das instituições da República.

Além disso, eles são joias da arquitetura brasileira, foram desenhados por um dos maiores arquitetos de todos os tempos, o brasileiro Oscar Niemeyer, fazem parte do patrimônio artístico e arquitetônico do país. Tanto eles como todo o mobiliário, os objetos e obras de arte, que compõem os ambientes, criminosamente atacados pelos invasores golpistas, fazem parte do patrimônio do povo brasileiro, são propriedade pública, estando, inclusive, aberto a visitação daqueles que são os seus proprietários. O desprezo, quando não a proposital leniência, com a preservação do Palácio da Alvorada (coincidentemente o único poupado pelo ataque golpista), foi iniciada pelo próprio líder da horda de criminosos e depredadores, que agora se esconde, comodamente, em terras estrangeiras, enquanto açula seus seguidores a não darem trégua ao governo democrática e legalmente eleito pela maioria da população.

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Na semana que passou, a primeira-dama do país, Rosângela Lula da Silva, abriu as portas do palácio em que o presidente residiu para mostrar a situação em que foi deixado: vidros quebrados, infiltrações no teto, móveis rasgados, danificados e com manchas de gordura, tapetes rasgados, a obra Músicos, de Di Cavalcanti, desbotada pela exposição ao sol, muitas outras retiradas de seus locais, sem que se saiba qual o destino que tiveram. Uma delas, o quadro Orixás, da pintora Djanira, além de ter sido retirado do palácio a mando de Michele Bolsonaro, foi furado com o uso de uma caneta esferográfica (talvez com a famosa caneta bic). Uma imagem sacra, do século XIX, representando Santa Maria Madalena, foi encontrada com rachaduras e jogada no chão, talvez mais uma vítima da intolerância religiosa da ex-moradora do palácio.

Os lamentáveis episódios ocorridos em Brasília , domingo, foi algo que só teve certa semelhança com a tentativa das hordas integralistas, fascistas como os de ontem, os seus antepassados, de invadirem o Palácio do Catete, sendo contidos a bala pelas forças da ditadura varguista, coisa que o governo democrático que administra o país evitou de fazer, até porque foi clara a cumplicidade e a conivência da polícia militar do Distrito Federal, de seus comandantes e superiores com os assaltantes dos poderes da República. Policiais escoltando os invasores em marcha na direção da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, tirando fotos sorridentes e inativos diante dos eventos, apoiando verbalmente os invasores criminosos, são cenas fartamente registradas a exigir as providências administrativas e legais cabíveis. Um sargento da Marinha, um membro ativo das Forças Armados, se fotografou tendo o quebra-quebra dos palácios dos poderes da República como cenário, rindo ao lado da esposa, como se tivesse em um piquenique. Até o sobrinho de Bolsonaro, o responsável moral e intelectual por todo o acontecido, apelidado de Léo Índio, fez parte da invasão e depredação dos prédios públicos, deixando claro as digitais da família no episódio.

Mas o traço do ocorrido que me chamou especial atenção foi o ódio demonstrado pelos assaltantes em relação as obras de arte. Creio que esse é um elemento que merece atenção e análise. Assim como seu líder bronco e brutalizado, os vândalos bolsonaristas demonstraram especial desprezo pelas obras de arte, verdadeiras obras-primas presentes nos palácios dos três poderes. O museu do STF foi invadido e vandalizado, o quadro As Mulatas, de Di Cavalcanti, talvez como expressão do ódio racista de uma horda de gente que se considera branca, foi rasgado em seis lugares, o vitral Araguaia criado por Marianne Peretti destruído, a escultura A Bailarina de Victor Brecheret desaparecida, a escultura da deusa Têmis, símbolo da justiça, pichada com a frase “perdeu mané”, numa referência a uma resposta dada pelo ministro Luís Roberto Barroso diante da agressão de bolsonariatas nos EUA. Um relógio que foi recebido como presente, ainda pelo rei D. João VI, no século XIX, foi quebrado, além de tapetes e móveis destruídos e até urinados e defecados. Os próprios palácios, que são obras de arte, tiveram suas vidraças quebradas e várias de suas instalações avariadas.

Esse ódio as artes indicia a brutalização das sensibilidades que resulta de uma formação subjetiva fascista. Incapazes de entender ou sentir qualquer coisa diante daquelas obras, quando não as veem como manifestações de mentes deformadas, subversivas, heréticas ou demoníacas, as tomam como a encarnação do que deve ser destruído, como meros objetos sem nenhum valor, como parte de uma mobília que deve ser vandalizada. A invasão dos prédios, que simbolizam os três poderes, foi a explosão de raiva e ressentimento daqueles que não se conformam com a derrota eleitoral, que se revoltam que seus crimes venham sendo punidos pelo judiciário, foi a descarga da frustração autoritária com os fatos, com a realidade, com a história que não obedecem a seus desejos, as suas vontades, a suas fantasias e delírios, que contrariam seus interesses econômicos e políticos.

As obras de arte são atacadas porque humilham pessoas com baixa capacidade cognitiva, com escasso talento para a criação, para a invenção. Elas fazem parte de um mundo alheio, distante, de um mundo a que não têm acesso, mesmo que possuam dinheiro. Elas também simbolizavam os próprios poderes constituídos que eles queriam destruir e humilhar. O embotamento das sensibilidades é um traço marcante da educação autoritária, machista, misógina, homofóbica, racista, classista, capacitista, dada a uma boa parcela das classes médias e populares no país.

A presença, em grande número, de mulheres mostra que esses elementos não são exclusividade das subjetividades masculinas. Para muitos brasileiros e brasileiras o apreço pela arte está relacionado a uma sensibilidade vista como desvirilizante, como feminina, sendo associada, inclusive, a homossexualidade, quando não a marginalidade. A educação cristã, notadamente de cunho evangélico, leva a que se veja as imagens e esculturas como idolatria, notadamente se elas remetem às religiões de matriz africana ou imagens que possam ser associadas a sexualidade, ao erotismo, a sensualidade. O racismo leva a recusa de imagens que remetam ao passado e ao presente africano ou indígena da população brasileira.

Não é mera coincidência que todo o vandalismo aconteceu com a conivência e presença das forças de segurança. A formação dada as forças militares no país, inclusive às Forças Armadas, é uma educação voltada para o embrutecimento e para a insensibilização diante do outro, diante do mundo. Estar preparados para matar e morrer, implica numa formação fascistoide que torna muito militares em brutamontes, ligados apenas ao culto às armas, à violência e aos músculos. Para eles obra de arte é coisa de esquerdista, de comunista, de depravados, de vagabundos, que não tem em que se ocupar. Artistas são vistos como viciosos, quando não como criminosos, até que provem o contrário. A hostilidade mútua entre os artistas e as forças de segurança nasce da desconfiança, de maneiras preconceituosas e desinformadas de ver uns aos outros.

Há muito tempo os grupos de policiais que compõem os Policiais Anti-Fascistas vêm defendendo a necessária reformulação da formação das forças policiais no país. Durante a campanha eleitoral foi prometido, inclusive, a criação de uma Universidade da Segurança Pública, para humanizar e reformular a formação policial, muitas vezes baseada na tortura, na humilhação, na doutrinação contra os direitos humanos, na preparação dos policiais para serem máquinas de matar, formação que leva, muitos deles, ao adoecimento, à depressão, ao suicídio. Essa proposta precisa sair do papel, assim como toda a reformulação da formação dos militares das Forças Armadas brasileiras, que permanentemente se constituem em uma ameaça a democracia no país.

A formação subjetiva fascista consiste em criar uma espécie de carapaça de defesa, uma espécie de escudo de proteção frente ao mundo e as pessoas, fruto das violências e agressões físicas e simbólicas, dos abusos emocionais e carnais de que dadas pessoas são vítimas desde a infância. Pessoas que aprendem a ser agressivas, violentas, como mecanismo de defesa, como forma de sobreviveram num mundo de violações de direitos, que possuem a sensibilidade embotada, incapacitada para se abrir aos afetos, as afecções, inclusive estéticas. Pessoas que aprendem que o caráter erótico, sensível, afetivo, vibrátil de suas carnes é pecaminoso, é feio, é fragilizador, é feminizante, estão preparadas para reagirem com desprezo e até com hostilidade, medo e culpa diante de uma obra de arte, da qual não tem entendimento e diante da qual permanecem impassíveis ou a rejeitam, até com violência.

Os sujeitos fascistas temem seus desejos, temem tudo aquilo que não conseguem controlar, inclusive em si mesmos, dado o desejo de poder e controle de que são tomados. Eles temem e tremem diante das intensidades inconscientes que as obras de arte materializam. Para não se deixarem afetar, para não serem movidas e mobilizadas em suas emoções e sentimentos pelos percetos, pelos signos emitidos pelas obras de arte, se fecham, recusam e até destroem esses objetos ameaçadores. As obras de arte podem ser intensificadoras de dados mal-estares, de dados sofrimentos subjetivos e psíquicos, de dados incômodos, que fazem delas quase uma agressão, daí poderem serem vítimas de violência e mutilação. As obras de arte cristalizam vidas, vivências, desejos, pulsões, por isso podem ser quase que assassinadas por aqueles que se veem afetados pelo contato com suas peles, com suas linhas, com suas sonoridades. O bolsonarismo, como todo fascismo, se assenta no desejo de morte, da morte de tudo que encarna a vida, inclusive as obras de arte.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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