Transparência e poder: uma relação delicada e controversa

Legenda: Vidraças do Palácio do Planalto, sede do Executivo Nacional
Foto: Shutter

Em um dos chamados artigos numerados, escritos pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, nos anos vinte do século passado, para o jornal Diário de Pernambuco, surge uma daquelas imagens de suma inventividade e brilhantismo que fizeram a fama do autor de Casa Grande & Senzala. 

Nesse artigo, Gilberto Freyre defende a ideia de que o surgimento da luz elétrica teria sido um dos fatores decisivos para aquilo que ele nomeava de declínio da família patriarcal. Segundo ele, esse modelo de família extensa, centrada na figura masculina do patriarca, constituída por uma rede de parentes consanguíneos, de parentes por compadrio e de aderentes de todas as classes sociais, não havia resistido ao imperativo de viver às claras trazido pela emergência da iluminação elétrica. 

Para Freyre, as famílias patriarcais para sobreviverem necessitavam de zonas de sombra, de que muitos acontecimentos e práticas permanecessem em segredo: a infidelidade dos maridos e, às vezes, das próprias esposas, a origem nem sempre honrada da fortuna familiar, a proveniência racial de alguns clãs familiares (judaicos, muçulmanos, africanos, indígenas), as preferências sexuais consideradas exóticas (a homossexualidade, a zoofilia, a pedofilia, o incesto), até mesmo a perda progressiva da fortuna, passando-se a viver de aparências. 

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Além disso, para ele, enquanto a luz da lamparina, do lampião, da vela, agregava as pessoas, inclusive num mesmo cômodo da casa, a luz elétrica desagregou as famílias, à medida que agora não era necessário que todas as pessoas da casa confluíssem para um mesmo foco de luz, podendo cada uma se isolar em um espaço da casa, cada um podendo desfrutar de uma iluminação, de um foco de luminosidade individualizado, individualista. 

O conservador, inclusive do ponto de vista político, sociólogo de Apipucos advogava, pois, que a transparência, a busca de tudo ficar às claras, de tudo poder ser visto e dito, de tudo poder ser visualizado, fora fatal para o poder patriarcal, para o poder do pater família, fora decisivo para a dispersão do foco de autoridade que ele encarnava, para a individuação das relações e para o enfraquecimento das redes de solidariedade, homenagem e consanguinidade que eram os sustentáculos da estrutura de poder das famílias das elites senhoriais.

Quando, nos anos cinquenta do século passado, o arquiteto identificado com posições políticas de esquerda, o comunista Oscar Niemayer, projetou os palácios que abrigariam os três poderes da República no país, partiu, justamente, da concepção oposta. 

Para Niemayer, os poderes republicanos deveriam ser transparentes, deveriam ser plenamente visíveis e acessíveis para e a todo o povo brasileiro. Por isso fez questão que eles tivessem grande parte de suas estruturas constituídas por imensas vidraças, que eles tivessem apenas as estruturas de sustentação de concreto, que suas paredes fossem avessas ao segredo, aos conciliábulos feitos nas sombras, que elas deixassem visíveis para todo o povo os eventos que ocorriam em seu interior. 

A ideia era que o poder fosse passível de fiscalização, que suas práticas se dessem à luz do dia, que as autoridades fossem objeto de escrutínio constante por parte dos cidadãos. Como representantes do povo, como autoridades constitucionalmente constituídas, deveriam estar sob o olhar permanente dos cidadãos, deveriam poder ser observadas e acompanhadas em suas práticas.

A questão da transparência das ações dos governantes, das autoridades e dos servidores públicos, foi objeto de discussão e de tomada de medidas, no campo legislativo, nas últimas décadas, no país. No ano de 2009, a lei complementar número 131, de autoria do senador João Capiberibe, do Amapá, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 27 de maio do mesmo ano. 

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Quando ainda era prefeito da cidade de Macapá, João Capiberibe já se preocupava em informar aos munícipes sobre os recursos que eram arrecadados pela prefeitura e em que eles eram gastos. Ele mandou afixar um quadro em frente à prefeitura onde todo o fluxo de caixa de sua gestão era divulgado. 

Em 2002, como governador reeleito de seu estado, passou a utilizar a internet para tornar público o orçamento e a sua execução. Ele, ao chegar ao Senado, elaborou a que seria chamada de Lei da Transparência, que instituiu como principal recurso o chamado Portal da Transparência, onde todo cidadão que tiver interesse poderá acompanhar em que está sendo empregado, em que está sendo investido os recursos federais, inclusive aqueles que são transferidos para estados e municípios. 

Os meios de comunicação têm no Portal da Transparência uma ferramenta importante para o acompanhamento das ações de governo e ainda podem, mediante a evocação da lei, solicitar informações mais detalhadas ou específicas sobre determinadas iniciativas dos três poderes.

Nos últimos anos e nos últimos dias vimos, no entanto, como a relação entre transparência e poder é delicada e controversa. Graças aos mecanismos legais e institucionais criados para o combate a corrupção (Lei de Acesso à Informação, Portal da Transparência, instituto da delação premiada, a criação da Controladoria Geral da União) pelas gestões do Partido dos Trabalhadores, foi possível que a Operação Lava Jato perseguisse politicamente esse mesmo partido e vários de seus integrantes, culminando com a prisão ilegal do então ex-presidente Lula. 

Aquelas gestões que tinham primado pela transparência do poder, jamais censurando a atuação da imprensa, jamais se colocando contra a liberdade de expressão, mesmo sendo claramente vítimas da perseguição implacável e, por vezes, criminosa de dados órgãos de imprensa, viram a transparência voltar-se contra elas mesmas, viram seu poder minado e destruído a partir do uso parcial, indevido e ideologicamente premeditado desses mecanismos de transparência e controle da gestão pública.

O governo Bolsonaro se especializou em colocar documentos sob sigilo de cem anos, além de passar a recusar, sistematicamente, informações solicitadas pelos órgãos de imprensa, que se valiam da Lei de Acesso à Informação, Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. O Portal da Transparência deixou de ser atualizado e dados sistematicamente omitidos e até adulterados. 

Basta recordar que o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, foi demitido por divulgar os crescentes índices de desmatamento e queimadas na Amazônia. A transição para o novo governo foi dificultada pela falta de dados e registros das ações governamentais. 

Ora, a que está associada essa falta de transparência? O uso sistemático do sigilo nas ações de Estado tem que consequências? Sendo um governo de práticas e concepções autoritárias incontestes, sendo um governante que buscava acumular poder, se tornar um ditador, suas ações nos fazem pensar que a falta de transparência reforça o poder. 

A instituição do chamado “orçamento secreto”, que foi urdido pelo presidente da Câmara Federal Arthur Lira e pelas lideranças dos partidos do chamado Centrão, uma iniciativa completamente na contramão das ações que visaram a transparência no serviço público, fez com que o poder do Legislativo, notadamente daqueles que controlavam a execução desse orçamento paralelo, se ampliasse a ponto de colocar o poder Executivo sob seu controle. 

Esse fato é uma prova inconteste de que a transparência parece fragilizar os poderes, estando no sigilo, no segredo, nas sombras do silêncio a possibilidade de uma ampliação desmesurada dos poderes. 

A forma como as Forças Armadas, a forma como a caserna age no Brasil, se opondo a qualquer transparência em suas ações (o sigilo de cem anos imposto a sindicância interna do Exército que apurou a atuação do general da ativa Eduardo Pazuello em manifestações político-partidárias públicas, que sua condição funcional vetava, além de sua desastrosa atuação à frente do Ministério da Saúde durante a pandemia, deixa claro como os quarteis, no Brasil, no toleram transparência), se opondo a apuração dos crimes cometidos durante a ditadura, motivo de terem participado ativamente do golpe de 2016, mostra que o poder parece se fortalecer na preservação do segredo, do silêncio, no conciliábulo de bastidor, nas ações perpetradas nas sombras, inclusive da noite.

A forma como os palácios de vidro, concebidos por Niemayer, foram presas fáceis para os terroristas e golpistas do dia 8 de janeiro, também nos faz pensar que a transparência do poder, embora em tese possa ser desejada e defendida, se mostra problemática em dadas situações, até mesmo para a manutenção do próprio Estado republicano e democrático de direitos. Possivelmente, poucos arquitetos a serviço do poder, aconselhariam abrigar os poderes da República em palácios de vidro, em estruturas arquitetônicas tão frágeis a ataques de toda ordem. 

No caso de um enfrentamento armado, de uma guerra, mesmo no caso de um golpe de Estado, como foi o caso do dia 8 de janeiro último, os palácios que abrigam os poderes no Brasil são de fácil ataque e destruição.

O próprio descampado da Praça dos Três Poderes e da Esplanada dos Ministérios, ao mesmo tempo que permite uma reação rápida dos poderes da República a qualquer tentativa de tomada do poder por assaltantes armados, facilitando o movimento de tropas, de armas e equipamentos militares, o posicionamento de homens armados sobre os prédios dos Ministérios, que ladeiam o gramado da Esplanada, como ocorreu no domingo da posse presidencial, também favorece o acesso rápido e desimpedido as sedes dos poderes, se barreiras policiais e de segurança, se a ação armada não os impedir, o que ocorreu no dia 8, dada a conivência e participação de agentes militares e de segurança na tomada dos prédios dos três poderes.

Creio que o evento traumático vivido no dia 8 de janeiro põe em questão e nos leva a refletir sob as generosas e boas intenções do arquiteto de esquerda ao projetar palácios transparentes, palácios de vidro que simbolizariam a transparência de que as ações dos poderes constituídos deveriam se revestir. O revestimento de vidro simboliza duplamente a problemática e controversa relação entre poder e transparência, pois, por um lado indicia que os poderes devem agir sob o olhar vigilante da sociedade, devem ter suas ações acompanhadas e fiscalizadas pela cidadania, mas, por outro lado, indicia também a própria fragilidade de um poder que se desnuda, que se mostra, que atua à mercê do olhar perscrutador, inclusive, de seus inimigos, daqueles que o quer destruir. 

As vidraças estilhaças, as paredes de vidro facilmente destruídas pela horda bolsonarista, dá o que pensar sobre como o poder se torna frágil quando opta pela transparência de todas as suas ações, práticas e concepções. Se sabemos que o segredo é o apanágio das ditaduras, a transparência deveria ser a condição mesma da democracia, mas se aprendemos algo com o dia 8 de janeiro é que, talvez, a preservação da própria democracia, exija, em certos momentos o recurso ao sigilo, e ao segredo. 

Se os inimigos da democracia tramam nas sombras, nem sempre a forma de combatê-los é a transparência de todas as ações daqueles que a defendem.

Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor

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