Sideral: mudança de temporalidade, mudança de repertório temático no cinema nordestino

Legenda: Curta metragem Sideral é dirigido por Carlos Segundo
Foto: Miguel Sampaio/Divulgação

Como o título já indicia, o curta metragem Sideral, dirigido por Carlos Segundo, que tem feito uma carreira de sucesso nos festivais internacionais, arrebatando cerca de trinta prêmios, nos sessenta e seis certames de que fez parte, tendo sido selecionado para a programação do Festival de Cannes e sendo semifinalista para ser nominado para o Oscar, ao contrário da maioria das produções culturais a respeito do Nordeste, não tem o passado como a temporalidade abordada e em que se desenrola a trama.

A primeira novidade trazida por esse filme de apenas quinze minutos é que ele se passa em um futuro indefinido, quando, a partir da base de lançamento da Barreira do Inferno, localizada no município de Parnamirim, a 12 km da cidade do Natal, será lançada a primeira missão de um foguete brasileiro tripulado.

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O Nordeste comumente é uma região tratada pela produção cultural e artística como sendo um espaço em que até o futuro repete o passado, veja os casos da novela global Mar do Sertão e a minissérie da Netflix O Cangaceiro do Futuro, em que signos da modernidade, em que signos do contemporâneo e signos futuristas se misturam com velhas temáticas e imagens clichês, como se o tempo nessa região fosse uma espécie de moto-contínuo, em que todas as temporalidades seriam engolfadas e engolidas pelos passados, que sempre retornam.

Na verdade, Sideral é uma lufada de ar em meio a uma produção cultural e artística que conta com um repertório temático bastante limitado.

Saber usar criativamente o fato de que o Rio Grande do Norte tem uma base de lançamento de foguetes, assim como o estado do Maranhão conta com a base de Alcântara, não só leva a uma inovação temática na filmografia dita nordestina, como a abordagem de uma temporalidade pouco tratada nessa produção.

O lançamento do foguete tripulado leva a que, a vida dos próprios personagens da trama, a faxineira Marcela, o mecânico Marcos e seus dois filhos, também se volte para a busca de um outro tempo, de um futuro diferente do presente de pobreza e simplicidade em que vivem. Ao invés da ênfase na memória, na capacidade humana de relembrar, de sentir saudade, de querer o passado e o que se passou de volta, tão explorados na maioria dos artefatos culturais e artísticos ditos nordestinos, Sideral explora a capacidade humana de projetar-se à frente no tempo, de imaginar outras temporalidades e realidades, de sonhar, desejar e esperar um futuro diferente, de tentar visualizar no presente os devires de futuro que o habita.

O lançamento da missão tripulada é esse signo de futuridade que abre para aqueles que vivenciam o acontecimento a possibilidade, eles também, de imaginar um novo tempo para suas vidas. Ao contrário, por exemplo, dos personagens de Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos (1937), completamente incapazes de simular uma utopia, de formular um sonho, completamente aprisionados em um tempo cíclico e circular de secas, retiradas e retornos ao lugar de partida.

É assustador como a produção cultural, literária e artística nordestina repetem o mesmo repertório limitado de temas e personagens. Durante muito tempo, até mesmo as temáticas dos trabalhos acadêmicos, nas universidades, notadamente na área das humanidades, giravam em torno das quatro temáticas fundantes da identidade nordestina: as secas, com as retiradas; o coronelismo, com os coronéis, agregados e jagunços; o cangaço e seus coiteiros e os movimentos messiânicos, com seus beatos, beatas e eventos místicos. Agora a inovação é associar cangaceiro com matadores de aluguel ou com quadrilhas de assalto a bancos de pequenas cidades, é transformá-los em intrépidos pilotos de motocicletas que, ao sofrer uma pancada na cabeça, retorna a 1927 e descobre que tem a cara de um famoso fora da lei, passando a tirar vantagem disso. E a pretensão é que achemos engraçado isso, pois se trata de uma comédia.

O Nordeste e, por extensão os nordestinos, parecem estar condenados a sempre voltarem ao passado ou nele ficar aprisionado. Não apenas falta imaginação, criatividade, se apostando no lugar comum, de fácil identificação e recepção, como falta conhecimento histórico, falta repertório temático que advenha de outras memórias e outras histórias da região, notadamente aquelas ligadas as camadas populares, que não só produziram retirantes, cangaceiros e profetas.

As revoltas contra o domínio colonial português, notadamente aquelas protagonizadas pelos indígenas são muito pouco abordadas. O cinema se dedicou, no máximo, a explorar a epopeia do Quilombo dos Palmares, mas os vários episódios de resistência dos pretos contra a escravização foram pouco abordados por nossa produção cultural, a maioria dela assumindo o ponto de vista do colonizador e dos brancos. Quando a vida das camadas populares e afrodescendentes foi abordada, quase sempre, como fez Jorge Amado, foi assumindo a visão positiva da mestiçagem e idealizando, quando não folclorizando, a vida das populações pobres e ditas de cor (como se todo mundo não tivesse cor).

A violência, a crueza das relações raciais entre nós só teve registro nos poucos intelectuais negros e negras que conseguiram romper a barreira do racismo estrutural, tão presente numa região de população mestiça, como é o Nordeste, quanto numa região de populações que se julgam brancas, como a região Sul.

O silêncio acerca do fenômeno urbano, metropolitano, na produção cultural dita nordestina é chocante e inadmissível a essa altura do campeonato, quando a região abriga três das maiores metrópoles do país e as cidades com mais de 100 mil habitantes já são sessenta e uma. Mesmo quando se aborda as cidades, elas são remetidas para o passado, parecem paradas no tempo, se enfatiza o que elas pretensamente têm de regionalmente tradicional, singular ou autêntico, excluindo ou pouco mostrando o que nelas têm de contemporâneo, de global. É uma espécie de recusa de que até as nossas cidades estejam no tempo presente, que dirá que apontem para o futuro.

O filme Praia do Futuro, do cineasta cearense Karin Aïnouz, que explorou a própria antinomia e ambiguidade temporal presente no nome da praia da capital do Ceará, pois ao mesmo tempo que a praia remete para um tempo da natureza, para uma espécie de tempo repetitivo das ondas e marés, um tempo fadado a eternidade, ela é uma praia do futuro, temporalidade encarnada pelos próprios personagens da trama. Talvez por isso, o filme não foi visto como representativo de uma filmografia regional e teve uma recepção entre a frieza e a revolta preconceituosa pelo fato do personagem Donato, interpretado pelo ator Wagner Moura, que vinha de encarnar o fascista Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite, se envolver amorosa e sexualmente com o alemão Konrad.

Eu presenciei, em Natal, homens e mulheres furiosos saindo da sala de cinema, aos gritos, por causa da cena de sexo homossexual protagonizada pelos dois personagens (a reação da direita diante de Praia do Futuro e Tropa de Elite, assim como a reação das esquerdas, nas salas de cinema, diante do filme Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, prenunciavam o espraiamento das subjetividades fascistas que terminaram por resultar na intentona da infâmia, no dia 8 de janeiro último).

Temáticas como as ligas camponesas, que só mereceram documentários, assim como o próprio protagonismo feminino nas lutas pela terra e no movimento sindical no campo, em tempos de feminismo, ainda não mereceram a abordagem artística e cultural merecida. O próprio pioneirismo natalense na história aviação no Brasil, inclusive com a trágica morte do balonista Augusto Severo, prolongada pela criação da base aérea de Natal e a presença norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial, o chamado Trampolim da Vitória, que são os eventos que antecedem a criação da base de lançamento de foguetes na Barreira do Inferno e, portanto, que estariam na genealogia do evento que Sideral aborda, pouco são tratados. Esses fatos foram abordados apenas pelo espetáculo Jaci, do Grupo Carmim e por um espetáculo de Natal desse mesmo nome. O próprio fato do Rio

Grande do Norte ter sido pioneiro quanto ao voto feminino, ao ter a primeira prefeita eleita no país ou por ser o estado de maior número de mulheres eleitas governadoras, ainda não inspirou obras de arte. No Ceará, a ênfase na vida sertaneja, pouco abre espaço tanto para os vários fenômenos urbanos, como a própria vida das pessoas do mar. Os jangadeiros e pescadores, embora estejam muito presentes nas imagens folclóricas e como tema de produção artesanal, suas vidas cotidianas, suas memórias ainda merecem uma produção cultural e artística mais relevante.

Sideral deixa claro que podemos sair do lugar comum, dos clichês, do que já se espera.

Esse ano as escolas de samba de São Paulo apresentam enredos de temática nordestina (as escolas de samba Primeira da Cidade Líder, Dragões da Real e Mancha Verde), já podemos nos preparar para os chapéus de cangaceiros, as roupas de brim, que remetem ao couro, as espingardas, peixeiras e bacamartes, as alpargatas de couro, para os zabumbas, sanfonas e triângulos, para as chitas e os artesanatos de barro, de palha, de madeira, remetendo a secas, retiradas e retirantes com suas trouxas na cabeça.

O sucesso internacional de Sideral mostra que para nos projetarmos, inclusive, internacionalmente, não precisamos assumir o lugar da barbárie e da violência (infelizmente o golpe de estado bolsonarista só reforçou essa imagem), podemos ser lugar de futuro e de utopia, lugar de esperança e de construção de novas imagens e de outros imaginários. Chega de cangaço e de cangaceiro, principalmente no futuro. Já basta a truculência e a violência terrorista que se espraia em nossa sociedade.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.