Entenda a PEC que quer transformar guardas em policiais municipais
Proposta quer mudar nomenclatura de corporações para polícias municipais e alterar regime previdenciário da categoria
Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende transformar as guardas municipais brasileiras em polícias municipais está prestes a ser protocolada na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado federal Jones Moura (PSD-RJ), a proposição seria apresentada inicialmente na última terça-feira (31), mas pela negociação de apoios acabou sendo adiada para a próxima semana.
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O Diário do Nordeste teve acesso ao documento que será ingressado pelo gabinete do parlamentar. Em resumo, a matéria busca alterar dois artigos da Constituição Federal de 1988, para que haja uma proteção previdenciária específica e a implementação das novas instituições propriamente ditas.
O que pode mudar
A primeira modificação do texto original inclui, no artigo 40, que legisla sobre o estabelecimento de regime diferenciado de aposentadoria por lei complementar. A alteração deve ampliar o direito para ocupantes dos cargos de policiais penais (federais, estaduais e distrital) e para a categoria de policial municipal que será criada.
O segundo ponto que poderá ser mudado na Carta Magna é a adição de mais inciso ao artigo 144. Esse trecho da legislação lista quais são os órgãos responsáveis pela segurança pública. Se alterado, passará a contar com a classe de polícia municipal.
Uma vez promulgada, a PEC irá possibilitar aos municípios a constituição de seus departamentos de polícia, cuja função será o policiamento preventivo e comunitário, a preservação da ordem pública, a proteção de bens, serviços e instalações, bem como os logradouros públicos e a população. As cidades que já contarem com guardas municipais passarão a nomear as corporações com a nova denominação.
Os agentes lotados em guardas municipais no país que ingressaram na carreira até a promulgação da emenda e enquanto não forem promovidas as alterações nas legislações que versem sobre o regime de previdência da categoria criada serão contemplados, respeitando a paridade, com a aposentadoria no mesmo padrão de idade mínima que policiais e agentes federais penitenciários ou socioeducativos.
Pela lei, estas categorias, independente do sexo, poderão se aposentar com, no mínimo, 55 anos. Em casos específicos, que dependem do cumprimento de período adicional de contribuição, as mulheres poderão se aposentar aos 52 anos e os homens aos 53.
Atuação direta dos municípios
Segundo o autor da PEC, ao justificar a elaboração do projeto, "o protagonismo das Guardas Municipais precisa ser resgatado no âmbito da Segurança Pública nacional". "Ver esses verdadeiros guerreiros combaterem o crime e a violência sem uma arma de fogo para se defenderem e defenderem a vida de terceiros é inconcebível e incompreensível, estando nós em pleno Século XXI", diz um trecho do texto.
Para Moura, que também é guarda municipal, a insegurança nos grandes centros seria um argumento válido para a criação dos órgãos de polícia vinculados aos municípios.
"A violência urbana está entre as principais preocupações dos brasileiros e a população tem experimentado um aumento significativo do crime e da violência no Brasil em geral, deixando de ser um problema somente das grandes capitais e passando a ser um problema social em pequenos municípios de todo o território nacional", atribuiu.
Ainda de acordo com a argumentação defendida na proposta, a atuação das polícias municipais propiciaria uma atuação direta das municipalidades. "Um papel mais ativo dos municípios na Segurança Pública ajudará a desafogar o já caótico sistema estadual, distrital e federal de Segurança Pública", salientou.
Atribuições viraram caso de justiça
Em 2014, um projeto de lei que previa a criação de um Estatuto Geral das Guardas Municipais foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Foram instituídas normas gerais para as guardas e normatizou as incumbências de tais organizações.
Dentre outras competências, o texto instituiu como atribuição das guardas municipais a colaboração integrada com órgãos de segurança pública para ações conjuntas, a proteção da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais, a promoção de ações de prevenção à violência e a atuação na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades.
Em julho deste ano, quase 9 anos após a sanção do Estatuto Geral, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5780, impetrada pela Associação Nacional dos Agentes de Trânsito no Brasil (AGTBrasil), que questionava, entre outros pontos, uma atribuição mencionada na lei, a de fiscalização do trânsito.
Um mês depois, em agosto, as guardas municipais voltaram a ocupar a pauta da Suprema Corte. Desta vez, pelo plenário virtual, os ministros decidiram que os órgãos em questão integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). A decisão garantiu que os agentes municipais podem realizar policiamento de vias e prisões em flagrante.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995, que ocasionou no julgamento e posterior entendimento, foi protocolada pela Associação dos Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil), que se colocou contrária as decisões judiciais que não reconheciam a categoria como integrante do sistema de segurança do Brasil.
Pelo entendimento dos magistrados que concediam as decisões, as corporações não tinham poder de polícia e o trabalho delas, portanto, deveria ser a restrito à proteção de bens públicos.
Relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes pontuou que, mesmo não estando expresso no artigo 144 da Constituição, os profissionais lotados nas guardas municipais devem ser considerados como agentes de segurança pública.
"As guardas municipais têm entre suas atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio", disse Moraes na oportunidade.
O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cristiano Zanin. Já Edson Fachin, André Mendonça, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Nunes Marques divergiram. O placar final foi de 6 a 5.
"Segurança Básica"
A PEC que será protocolada na Câmara é resultado de um grupo de trabalho montado por Jones Moura junto com outros parlamentares do Congresso Nacional. Entidade interessada na aprovação, a AGM Brasil, através do seu presidente Reinaldo Monteiro, afirmou que essa pauta é defendida há anos pelos membros.
Os esforços empreendidos fizeram com que outra PEC, a 275/2016, que busca a inserção das guardas na Carta Constitucional, fosse ingressada pelo então deputado federal Cabo Sabino (AVANTE-CE). A matéria, no entanto, aguarda até hoje a constituição de comissão temporária pela Mesa Diretora.
"Sempre defendemos que as guardas municipais estivessem nos incisos do artigo 144 para que não houvesse nenhum tipo de questionamento com relação as condições jurídicas, tendo em vista o trabalho que efetivamente já é desempenhado em todo o Brasil", sustentou o dirigente da AGM Brasil, elencando que isso traria tranquilidade e o acesso à direitos.
O intuito, sinalizou Monteiro, não seria criar uma nova polícia, mas adequar a legislação para a realidade da política de segurança em curso. "As guardas municipais hoje estão em mais de 1200 municípios. No estado de São Paulo são mais de 220 cidades. E a grande maioria delas estão fazendo os serviços de policiamento preventivo. Essa atuação já vem de longa data, antes mesmo da Constituição Federal", pontuou, destacando a redução dos índices de violência onde as referidas instituições atuam.
Ele mencionou também o reconhecimento das guardas como integrantes do SUSP pelo Supremo pela ADI como mais um ponto a ser considerado para a modificação do texto constitucional. O presidente - comparado ao funcionamento da rede de saúde básica dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), de obrigação dos municípios - levantou que, se estruturado como está sendo proposto, as guardas poderão agir como ferramentas da segurança básica.
Especialista revela preocupação
Membro da Rede de Observatórios de Segurança e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), o sociólogo César Barreira destacou que a Proposta de Emenda à Constituição é passível de entendimentos díspares.
O especialista admitiu a necessidade de mudança no regime: "Uma primeira é que realmente teríamos que mudar a atuação das guardas municipais, porque elas se sentem muito preteridas. Acham que é uma profissão de segunda categoria, são comparados a vigias e isso leva a uma atuação que provavelmente não corresponde a necessidade que a sociedade tem".
Mas se disse alerta para outro aspecto, o da facilitação do arsenal nas ruas. "A outra leitura que eu faço é que é muito preocupante a gente ampliar a circulação de armas de fogo. Sabemos que houve um aumento muito grande no período do Governo Bolsonaro e a guarda municipal fica vulnerável, porque ao invés de protegê-la, termina prejudicando", ponderou.
"Acho que deveria ser ressaltada a importância da guarda municipal ter como meta central a questão da proteção de bens públicos, no caso as praças, os monumentos e toda essa parte pública. Pois protegendo esses espaços você também está mantendo segura a população que circula nesses locais", sugeriu Barreira.
A atuação nos logradouros públicos deveria ser o destaque, no entendimento do pesquisador, que concorda com a visão de policiamento preventivo alegada pelo dirigente da associação nacional que defende os interesses dos agentes. "Tenho muito medo, não sei se estamos precisando de mais polícia. Acho que estamos, cada vez mais, precisando de profissionais da área de segurança com treinamentos melhores", acusou.
César revelou que pesquisas realizadas pelo laboratório da UFC identificaram irregularidades no uso de armas de fogo por corporações no Brasil, justamente pela necessidade do uso de tais instrumentos. "Houve até mesmo o uso de algumas vestimentas que possibilitavam que eles usassem armas de uma forma escondida", afirmou.
Reafirmando como essencial a universalização de "posturas mais efetivas", em detrimento das ações ostensivas armadas, ele ainda lançou uma problematização sobre o lugar das municipalidades na segurança pública, uma vez que para o estudioso há uma "normatização que não é muito clara" e que precisa ser esclarecida.
Apoios já definidos
Até a noite de quinta-feira (2), como mostrou uma listagem cedida à reportagem pelo autor da PEC, Jones Moura, 303 parlamentares de 17 agremiações partidárias (PP, PCdoB, MDB, PV, PT, REP, PSD, PL, UNIÃO, PDT, AVANTE, PODE, PATRIOTA, SOLIDARIEDADE, REDE, PSDB e PSB) registraram apoio para o protocolamento da matéria. Os políticos entram como autores.
O número expressivo foi comemorado pelo mentor da proposta. "Dificilmente você vai encontrar uma PEC com 303 apoiamentos, diria para você que não consegue encontrar. Se encontrar, é raridade. Essa já é rara", disse o social democrata, considerando que ela já está "aprovada simbolicamente", faltando apenas ser pautada pelo presidente Arthur Lira (PP).
Consultado sobre o posicionamento do Planalto, o líder governista em exercício, o deputado Alencar Santana (PT), que é um dos signatários, alegou que a matéria ainda não foi analisada pelo governo. "Estamos esperando que a tramitação dela comece a ocorrer na Câmara. Então não tenho um posicionamento do governo", justificou.
Ele, entretanto, confirmou que houve uma reunião da bancada do seu partido na última terça-feira (31), porém não acompanhou a discussão: "Para ser sincero, não sei o posicionamento, porque acabei não participando. Tenho interesse no tema, mas não consegui ir".