Energia renovável: qual o papel da política no avanço do Hidrogênio Verde, foco do Governo do Ceará
O Ceará é um dos estados com mais acordos para a produção de hidrogênio verde, mas a falta de um marco regulatório é um obstáculo para o avanço do setor
Vetor energético limpo e com potenciais que vão desde o uso como combustível até a geração de energia elétrica, o Hidrogênio Verde tem ganhado visibilidade no debate político no Brasil. O tema é foco de duas comissões especiais instaladas no Congresso Nacional — uma na Câmara dos Deputados e outra no Senado Federal — para discutir políticas públicas voltadas para o setor.
O Ceará é um dos principais interessados no assunto, já tendo assinado 32 memorandos para ampliar a produção do hidrogênio verde no Estado — o último deles, inclusive, firmado na última quarta-feira (16). A criação de uma Política Estadual do Hidrogênio Verde pelo Governo do Ceará também está em discussão no legislativo estadual. Com acordos internacionais assinados, a pressa agora é para resolver uma pendência na legislação brasileira: ainda não existe um marco regulatório tratando do tema no País.
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Presidente da Comissão Especial para Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde, o senador Cid Gomes (PDT) apontou que o "Senado e o Brasil estão em débito com o Ceará", por conta da falta de regulação do setor. O assunto, contudo, tem sido central nas discussões do colegiado e, na última quarta-feira, durante audiência pública, o senador informou que a minuta de regulamentação deve ficar pronta no próximo mês.
"Queremos, já neste mês de setembro dar uma avançada em uma minuta de uma legislação de regulação e que isso já possa ser colocado em audiências públicas para receber sugestões da população”, afirmou o senador cearense. Caso seja apresentada como projeto de lei, a minuta irá se juntar a outras já em tramitação no Congresso Nacional, mas que ainda não foram votadas em nenhuma das casas legislativas federais.
As propostas em tramitação no Congresso Nacional vão desde a regulamentação mais ampla sobre a produção, armazenamento e transporte do hidrogênio verde no País até a previsão de subsídios para o setor, como forma de incentivo à transição energética no Brasil.
O Diário do Nordeste também entrou em contato com o Ministério de Minas e Energia para saber como o governo federal está acompanhando as discussões sobre o hidrogênio verde e aguarda resposta.
O que é preciso regulamentar?
Um dos primeiros pontos sobre o qual a regulamentação precisa tratar é a definição do que é hidrogênio verde. É o que explica o professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Douglas Contente. "Esse aspecto de regulação (é necessário) tanto nessa parte de definir claramente o que é cada hidrogênio até normas relacionadas a armazenamento, transporte, produção, segurança", detalha o pesquisador.
Para entender o centro dessa discussão na arena política, é preciso antes detalhar alguns pontos técnicos sobre o hidrogênio verde. O hidrogênio é o "combustível perfeito", conforme resume Douglas Contente. Isto porque, a queima dele — ao contrário do que ocorre com os derivados do petróleo — não libera carbono, principal responsável pelo efeito estufa, mas sim água, contribuindo assim para a descarbonização do planeta, meta cada vez mais urgente.
Contudo, existe mais de uma forma de produção deste hidrogênio — e nem todas são limpas. Além do verde, existem os hidrogênios cinza e azul — ambos produzidos a partir de combustíveis fósseis.
Por outro lado, a produção de hidrogênio verde libera oxigênio, ao invés do poluente carbono. Feita a partir de um processo chamado de eletrólise, o hidrogênio verde também precisa utilizar energia limpa, como a solar ou a eólica.
Outras fontes de energia, como a hídrica, não são unanimidade — ou seja, nem todos consideram que o hidrogênio produzido a partir desta fonte pode ser classificado como verde. "E para se ter ideia, tem algumas normas que até nuclear querem colocar como renovável", completa Douglas Contente. "Então, tem que ter um organismo regulador que bata o martelo e diga: ‘a regra é essa, o que for daqui para lá é verde, daqui para cá não é mais verde’", completa.
Certificação e mercado externo
Essa definição desemboca em outro ponto, destacado pelo professor do campus de Sobral do Instituto Federal do Ceará (IFCE), Edilson Mineiro Sá Júnior: a certificação. Neste caso, é preciso considerar não apenas a discussão interna sobre o tema, mas também as normas aprovadas em outros países. A atenção a este mercado externo é importante porque regiões como a Europa podem ser os principais destinos de exportação do hidrogênio verde pelo Brasil.
"A minha preocupação seria a certificação, para poder exportar. Para facilitar e criar logo esse mercado, ver logo esse mercado externo que existe hoje, que está com as suas portas sendo abertas nesse momento, por isso que estamos tendo que correr", afirma. Ele cita, por exemplo, os anúncios feitos por países europeus da realização de leilões para compra de hidrogênio verde.
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Integrante da Comissão Especial de Transição Energética e Produção de Hidrogênio Verde da Câmara Federal, o deputado Danilo Forte (União) cita exatamente estes leilões — divulgados por nações como Alemanha e Estados Unidos — como motivo para acelerar a regulamentação do setor no Brasil.
O parlamentar considera que o Brasil "não pode virar o ano" sem ter regulamentado o hidrogênio verde. "Até porque a expectativa do mundo é que, em 2028, essas plantas já estejam ofertando hidrogênio verde. (...) Uma planta dessa requer um tempo, desde a confecção do projeto industrial, as licenças ambientais, a construção predial, os equipamentos, tudo isso", disse.
Nesta "corrida de obstáculos" para se posicionar como um dos líderes nessa produção no mundo, o Brasil precisa resolver duas questões centrais, na avaliação do parlamentar: "a falta de regulamentação e a condição de infraestrutura necessária para o setor de energia". Algo que precisa ser prioritário e que deve ter grande impacto, principalmente para o Nordeste brasileiro, incluindo o Ceará.
"Depois do ciclo da cana de açúcar no Nordeste, em 500 anos de História, nós temos a oportunidade de ter um ciclo econômico independente do resto do Brasil. E, ao mesmo tempo, um ciclo econômico vigoroso, haja vista a transformação que a energia renovável já tem feito do Nordeste. (...) Esse é o novo vetor da economia verde e da economia do Nordeste e eu acho que o Ceará, que foi, inclusive, pioneiro na energia eólica, de novo pode ser o pioneiro do hidrogênio verde".
Estrutura para Hidrogênio Verde
Além desta definição, existem outros pontos que precisam ser descritos em um futuro marco legal do Hidrogênio Verde. Um deles, conforme já citado por Contente, são as regras para "armazenamento, transporte, produção, segurança" deste vetor energético.
"O hidrogênio tem todas essas características, mas ele é uma substância extremamente complexa. É a menor molécula da nossa tabela periódica, um elemento mais leve. Então, ele tem uma série de propriedades de explosividade, de dificuldade de armazenamento, porque ele fragiliza alguns tipos de ligas metálicas. A gente não vai poder aproveitar a nossa infraestrutura existente, por exemplo, a nossa malha de gasodutos, que transporta gases hidrocarbonetos, e simplesmente jogar hidrogênio lá dentro e transportar. Não dá".
O pesquisador reforça que existem outros aspectos, como o ambiental. De onde virá a água usada para produzir o hidrogênio verde, em um cenário de escasseamento deste recurso natural em todo o mundo? Uma alternativa para isso está sendo pensada por engenheiros da China, Austrália e Estados Unidos, que desenvolveram o processo a partir da água do mar. Apesar de já terem apresentado resultados positivos, os estudos ainda não estão prontos para serem aplicados em larga escala.
Existe ainda uma necessidade sobre uma normatização dos usos que serão feitos do hidrogênio verde. Caracterizado como "vetor energético" pelos pesquisadores entrevistados pelo Diário do Nordeste, ele pode ser utilizado de diversas formas, desde combustível, produção de outros produtos — como gasolina, óleo diesel e até margarina — até como uma fonte energética.
"O grande ponto do marco regulatório, do marco legal é dar segurança jurídica para que uma entidade privada preste um serviço de utilidade pública. Quem quer atrair investimento, precisa dar essa segurança jurídica, porque se você pensar qual é o grande problema do investidor? É risco. Ele quer botar o dinheiro dele onde tem o menor risco, com o maior lucro. Quando se tem uma terra de ninguém, que é o nosso estado atual, é muito difícil alguém vir e apostar", argumenta o pesquisador.
Incentivos, capacitação e impacto social
Os pesquisadores chamam atenção para a necessidade de outras ações do Estado como forma de "fomentar a economia do hidrogênio verde", como resume Douglas Contente. "Como o hidrogênio verde ainda é um processo economicamente ineficiente, então para que ele seja adotado, ele vai ter que ter algum tipo de subsídio, pelo menos inicialmente", explica o professor da UFPE.
Por isso, complementa Edilson Mineiro, existe uma necessidade de, além de aproveitar as oportunidades oferecidas no mercado externo, incentivar o uso do hidrogênio verde dentro do país, por meio de benefícios.
"Não adianta ninguém querer produzir hoje o hidrogênio verde, se você não tem a regulamentação, e aí todo mundo prefere usar o hidrogênio, que é o cinza que é o derivado do metano, do gás natural e aí, consequentemente, se uso o hidrogênio cinza, não vai estar resolvendo o problema de aquecimento, vai estar jogando gases de efeito estufa. Então, tem que criar esse mercado também para poder incentivar o ao próprio crescimento dessa indústria, que é nova".
O investimento em capacitação de mão de obra qualificada também precisa ser um ponto de atenção do Poder Público, completa o pesquisador do IFCE. Ele cita, por exemplo, a necessidade de equipamentos para produção de energia renovável, como parte da cadeia para a obtenção do hidrogênio verde. E ter pessoas treinadas para operar é essencial — assim como, a perspectiva de usar isso para geração de renda local.
"A gente vai precisar agora capacitar mais pessoas para a mão de obra local, (...) para não trazer mão de obra externa e deixar esse ganho aqui no nosso estado", defende. Os diversos impactos sociais possíveis na regulamentação do hidrogênio verde é, inclusive, um ponto destacado por Edilson Mineiro como algo importante de estar no radar dos parlamentares responsáveis por essa legislação.
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"Quando começar a colocar essas regulamentações, pode colocar que 1% (do fornecimento de energia) seria de produtores de baixa renda. Tudo isso, essas discussões são importantes porque possibilitam, impactam outros programas de distribuição de renda, de capacitação do pessoal que está, às vezes, em regiões com baixo índice de desenvolvimento humano", exemplifica.