Na reta final de pré-campanha, o movimento nas produtoras e editoras fonográficas se intensifica para fazer girar o mercado de produção de jingles eleitorais. São músicas que misturam hits dos meses anteriores, clássicos memoráveis, criações inéditas, muita criatividade e, claro, rivalidade.
Estúdios de tamanho diversos já começaram a publicar alguns trabalhos mais neutros, com letras que remetem a jornadas íntegras, ao apelo popular e à consequente vitória. Letras com as expressões “meu prefeito”, “é ele de novo” são comuns nessas produções. Nesses casos, basta o candidato ou algum de sua equipe entrar em contato, adquirir a liberação da música e adaptá-la com seu nome e número de urna.
“Os jingles até hoje são cases em campanhas eleitorais, ele tem o poder de eleger o candidato, contribuir para fixar as propostas e o número. (É elemento importante) pelo seu efeito multiuso, já que ele pode ser vinculado em qualquer lugar e a qualquer hora”, explica o produtor musical Helder Melo, no mercado há quase 30 anos.
Segundo ele, uma boa composição de letra e arranjo segue certa padronização. “Acima de tudo, ele tem que ser um jingle com poucas palavras para guardar, memorizar, fixar na mente do povo. Que é para lembrar daquele candidato, né? Certamente, qualquer pessoa lembra de algum jingle, de alguma campanha eleitoral. A cada eleição, eles invadem o seu dia a dia e grudam na mente como chiclete”, avalia.
Os candidatos de oposição não ficam atrás e também usam as suas táticas. Com a frase “o povo quer renovação” no refrão gravado no ritmo pagode baiano ou a estrofe “o prefeito ruim chama logo os babão (sic)” no axé, eles aproveitam para alfinetar os grupos governistas. "O prefeito vai deixar de ser prefeito" também é outro verso que pode embalar representantes de grupos políticos adversários.
Essas composições não podem deixar, claro, de manifestar nuances de embates políticos locais, com provocações entre adversários. "Tem músicas que são bem leves, mas tem outras que eles usam letras massacrando, falando sobre o outro político. [...] É um ataque mais direto", também diz Ozair Carvalho, especialista em direitos autorais pela Vybbe, dona de alguns dos maiores sucessos do forró e outros gêneros.
Esses jingles podem ser obras inéditas, criadas especialmente para aquele momento político, ou releituras de músicas famosas, na forma de paródia. Nas duas formas, é preciso adequar letra e melodia ao perfil e a estratégia de campanha de cada candidato e também à legislação eleitoral.
Para 2024, candidatos e partidos devem estar atentos às novas regras no uso de músicas nas suas campanhas. Em fevereiro, Tribunal Superior Eleitoral (TSE) instituiu ao menos duas resoluções que impactam diretamente a produção musical nesse contexto, a fim de resguardar artistas e garantir a lisura na corrida eleitoral.
Quanto custa musicalizar uma campanha eleitoral?
O acesso aos direitos autorais de alguns sucessos recentes da música e de clássicos consolidados na editora a qual Ozair Carvalho é vinculado pode variar entre R$ 1 mil e R$ 10 mil, sempre negociáveis. Contudo, quando o candidato quer exclusividade de uso da canção como jingle, o valor pode crescer consideravelmente, chegando a R$ 30 mil.
“Inclusive, nesta semana, já recebi vários pedidos de produtores pedindo músicas nossas para esses jingles. Pediram ‘Casca de Bala’, pediram ‘Zoar e Beber’... E aí eu cobro um valor pela liberação. Apesar de a música estar editada, a gente tem que entrar em contato com o compositor para negociar um valor”, explica Carvalho.
Já na produtora gerida por Helder Melo, o preço do serviço depende de cada pacote. O cliente pode escolher entre um jingle “povão” ou um jingle “conceito”.
A primeira opção oferece melodias simples, estáveis e lineares, que começam e terminam do mesmo jeito. Estas podem ser compostas em forró, em piseiro, em sertanejo ou em qualquer outro ritmo desejado pelo postulante a cargo público. Neste primeiro pacote, o valor inicial é de R$ 800.
Já os chamados jingles “conceito” também são variados quanto aos gênero musical, mas demandam uma produção mais complexa de arranjo e letra. Aqui, existe uma maior variedade de instrumentos e o pleno uso de uma banda, da mesa do estúdio, além do(a) cantor(a) poder ser acompanhado de doze backing vocals e de efeitos que emulam vozes de multidão.
Para adquirir uma obra como essa, o candidato deve desembolsar entre R$ 1,5 mil e R$ 5 mil. “É aquele jingle que começa suave, uma sanfoninha, um violão, a letra, a voz do cantor, e depois ela aparece com um estilo regional. Pode ser um forró, pode ser um xote… ela vai mudando, vai crescendo, e aí vem com aquele refrão bem repetitivo, bem chiclete”, detalha o produtor.
Independentemente da modalidade escolhida pelo cliente, o rito de criação atende a algumas instruções.
Eu só peço que a pessoa mande – pelo WhatsApp mesmo, à distância a gente grava – um texto de cerca de dez linhas que falem sobre o candidato, qual é a proposta dele, né? E a partir daí, juntamente com os meus compositores, a minha produção do estúdio, eu peço um link de referência do YouTube para a gente ter noção da pegada, do estilo musical, se ele quer ser uma música mais lenta, mais agitada, entendeu? [...] Aí a gente faz todo o processo de produção, os instrumentos, com meus músicos, em seguida. A gente grava a voz do cantor no estúdio, depois dos backing (vocals), e depois que eu passo o jingle já feito para o cliente, o assessor ou o candidato
Em busca do jingle perfeito
A procura por jingles pode começar em julho, mas tem o potencial de triplicar nas primeiras semanas de campanha, garante o produtor musical Helder Melo. A preparação da empresa inicia bem antes, com atenção ao marketing e à organização do portfólio. Mais músicos, como backing vocals, bateristas e tecladistas também são contratados.
Particularmente, Helder não trabalha com paródias, e sim com criações próprias. Mas há quem prefira musicalizar sua campanha com novas versões de músicas que bombaram nos meses anteriores, como hits do Carnaval e do São João. Neste caso, é necessário conseguir a autorização dos compositores e adquirir os direitos autorais para aquela finalidade.
É aqui que entram as editoras, empresas responsáveis pela reprodução e proteção dos direitos dessas obras nas plataformas digitais, pela sincronização e pela reprodução de letras. Ozair Carvalho projeta que canções marcadas nas vozes de Nattan, Leo Santana, Tarcísio do Acordeon, Zé Vaqueiro e Wesley Safadão podem ficar no ouvido do eleitor daqui para outubro. Confira apostas:
- Casca de Bala (Thullio Milionário)
- Piração (Kaká e Pedrinho)
- Triplex (Matheus Fernandes)
- Amor na Praia (Nattan)
- Forró e Desmantelo (Manin Vaqueiro)
- João e Mariazinha (Rei da Cacimbinha)
- Torre Eiffel (Manu Bahtidão)
- Pane no Sistema (Grego)
- Alô amor (Rey Vaqueiro)
- Vaquejada é Vaquejada (Ramon e Randinho)
Apesar de não dar detalhes sobre o movimento na editora, Carvalho adianta que, somente na última semana (até quinta, dia 18), recebeu 20 pedidos de compartilhamento de composições.
Até a mesma data, tendo como referência apenas o mês de julho, Melo afirma que já recebeu 39 clientes. Ele explica que é comum que alguns cheguem à produtora com mais de um pedido, o que exige maior dedicação de sua equipe.
Quanto aos direitos de execução pública – aqueles que ocorrem em locais de frequência coletiva, como nos meios de radiodifusão –, a responsabilidade é do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e das sociedades de gestão coletiva, como a União Brasileira de Compositores (UBC).
Se com as paródias, os lucros são distribuídos para os autores da música original e – mediante autorização – para os autores-versionistas, com os jingles inéditos, a regra é diferente.
Por meio de nota, o Ecad esclareceu que os jingles eleitorais não precisam ser cadastrado em uma das associações da gestão coletiva da música no Brasil, “pois não geram nenhum rendimento em direitos autorais de execução pública para os autores/criadores”.
Atenção às regras
No início de cada biênio o TSE fixa resoluções para nortear o andamento das eleições, normalmente marcadas para outubro. Neste ano, entre outros entendimentos firmados acerca do uso de inteligência artificial (IA) no pleito municipal, a Corte decidiu que a produção de material sintético de propaganda, como os jingles, deve ser sinalizada explicitamente no produto final.
Confira trecho da resolução:
Art. 9º-B. A utilização na propaganda eleitoral, em qualquer modalidade, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons impõe ao responsável pela propaganda o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada.
Uma das tecnologias utilizadas para a composição de músicas é o ChatGPT. A ferramenta é bastante intuitiva e entrega o pedido do usuário em poucos segundos, mas o seu uso é imperceptível. Isso dificulta o monitoramento da Justiça Eleitoral nesse campo.
“O fato é que o monitoramento disso não é fácil, nesse exemplo do texto produzido pelo ChatGPT, não sai com a identificação produzida por inteligência artificial. Eu entendo a preocupação no tribunal, que é dar a transparência máxima possível ao processo, mas se não houver esse apontamento por parte do candidato, no caso de um conteúdo produzido derivado de sistema de inteligência oficial, a identificação vai ser difícil”, comenta Sydney Sanches.
Ele é especialista em direito autoral e consultor jurídico da UBC, associação focada na defesa e a promoção dos interesses dos titulares de direitos autorais de músicas e a distribuição dos rendimentos gerados pela utilização das mesmas.
Na mesma leva de resoluções, a Corte também proibiu a reprodução de paródias sem autorização dos criadores das canções originais. A decisão também desburocratizou o deferimento do pedido de autores que detectarem o uso indevido de suas obras, ao tratar apenas a ausência de autorização expressa para uso eleitoral como suficiente para tal.
“Demonstrada a plausibilidade do direito e o risco de dano, é cabível a antecipação da tutela, podendo a eficácia da decisão ser assegurada por meios coercitivos, inclusive cominação de multa processual”, disse, ainda, a resolução.
Esta foi considerada uma vitória da classe artística, que se mobilizou por anos para garantir a proteção de suas obras pela Lei dos Direitos Autorais, de 1998. A mobilização foi puxada por nomes como Marisa Monte e estúdios grandes, como a Sony Publishing.
Especificamente neste último caso, é emblemático os embate judiciais com o deputado federal e comediante Tiririca (PL-SP) devido ao uso da canção “O Portão”, de Roberto Carlos, em paródias nas campanhas eleitorais de 2014 e 2022.
Há dez anos, Tiririca trocou os versos “Eu voltei, agora pra ficar/Porque aqui, aqui é meu lugar” para “Eu votei, de novo vou votar/Tiririca, Brasília é meu lugar”. Nas últimas eleições gerais, por sua vez, ele adaptou para “Eu votei, de novo eu vou votar/Tiririca, Brasília é o seu lugar”.
Na peça publicitária, a performance é interrompida por uma voz que diz “Tá falando o que? ‘Cê’ nem sabe o número dele!”, que é respondida pelo então candidato: "Respeita o rei", dizendo sua numeração logo em seguida. O jingle faz referência a cessão do número de urna – usado pelo comediante desde 2010 – para o deputado federal Eduardo Bolsonaro no PL.
O “rei” processou o parlamentar, alegando que a paródia “induz os eleitores e o público em geral a erro, causando uma associação indevida entre Tiririca e Roberto Carlos, gerando danos à reputação do músico”.
Após uma longa batalha judicial, o Roberto Carlos e a Sony Publishing sofreram um revés em 2022. O entendimento foi de que a paródia em questão representava apenas uma manifestação artística crítica e/ou cômica, com um fim em si mesma, ainda que tenha acontecido em contexto eleitoral.
“Isso gerou uma grande perplexidade porque os impactos vão muito além dos aspectos econômicos. Impactam diretamente no processo de escolhas individuais das pessoas. Artistas, intérpretes e compositores são, antes de tudo, pessoas inseridas no cenário nacional como qualquer outra e têm suas preferências políticas, independentemente da linha ideológica”, explica o advogado Sydney Sanches.
O caso ainda tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A expectativa, avalia o representante da UBC, é que a resolução do TSE a respeito da polêmica ajude a nortear a análise dos ministros da outra Corte.
Confira, na íntegra, trecho da resolução do TSE sobre paródias nas eleições 2024
Art. 23-A. A autora ou o autor de obra artística ou audiovisual utilizada sem autorização para a produção de jingle, ainda que sob forma de paródia, ou de outra peça de propaganda eleitoral poderá requerer a cessação da conduta, por petição dirigida às
juízas e aos juízes mencionados no art. 8º desta Resolução. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
§ 1º A candidata ou o candidato será imediatamente notificado para se manifestar no prazo de dois dias (Lei nº 9.504/1997, art. 96, § 5º). (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
§ 2º Para o deferimento do pedido, é suficiente a ausência de autorização expressa para uso eleitoral da obra artística ou audiovisual, sendo irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou a existência de culpa ou dolo (Código de Processo Civil, art. 497, parágrafo único). (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
§ 3º A tutela poderá abranger a proibição de divulgação de material ainda não veiculado, a ordem de remoção de conteúdo já divulgado e a proibição de reiteração do uso desautorizado da obra artística (Código de Processo Civil, art. 497, parágrafo único). (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
§ 4º Demonstrada a plausibilidade do direito e o risco de dano, é cabível a antecipação da tutela, podendo a eficácia da decisão ser assegurada por meios coercitivos, inclusive cominação de multa processual. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)