Qual o saldo da COP30 para a Caatinga?
Esta reportagem compõe a série “É assunto de política? - Temporada Desertificação na Caatinga'
Financiamento, avanços simbólicos e perspectivas de reconhecimento da importância da Caatinga para o Brasil e o mundo foram encaminhamentos da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) ocorrida no Brasil em novembro. Colocar o bioma exclusivamente brasileiro na roda de discussão demandou diferentes esforços, que mobilizaram desde a atuação independente e a sociedade civil organizada aos governadores da região onde a Caatinga é predominante: o Nordeste.
O que se espera, então, do desenrolar desse esforço para o bioma?
"Levamos três temas bem importantes que já venho pautando há muito tempo como representante da Câmara Temática do Consórcio Nordeste, que são o recaatingamento, os ativos ambientais e a transição energética justa", conta a Secretária do Meio Ambiente do Ceará e coordenadora técnica de Meio Ambiente do Consórcio Nordeste, Vilma Freire.
A articulação oriunda dos poderes Executivos estaduais resultou no lançamento, durante a COP30, do Plano Brasil Nordeste de Transformação Ecológica (PTE-NE), com eixos sobre combate à desertificação e valorização da bioeconomia sustentável da Caatinga, entre outros. A ideia é espelhar o Plano Nacional, lançado em 2023, e aprofundá-lo ao contexto local, a partir de contribuições do Ceará e de outros entes.
A peça prevê ações de recuperação florestal da Caatinga e investimentos em práticas de resiliência do semiárido, que dialogam com a meta geral da COP 30 de concretização do Acordo de Paris (2015).
Tangente ao PTE-NE e a iniciativas como o novo Programa de Ação Estadual de Prevenção e Combate à Desertificação (PAE-CE), o Ceará também lançou, na Conferência do Clima, o seu projeto de Recaatingamento. O objetivo é recuperar áreas degradadas do bioma e valorizar comunidades tradicionais.
Veja também
O Governo do Estado ainda apresentou resultados de programas exitosos nessa área, como o Agente Jovem Ambiental (AJA) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), dando relevo à participação de entes subnacionais na luta contra as mudanças climáticas.
Na análise do Executivo, isso posicionou o Ceará como referência em governança ambiental, segurança jurídica, sustentabilidade de mercado, inclusão social e educação ambiental. O AJA foi o principal ativo levado à COP 30.
“É uma política que atende a mais de 10 mil jovens em 184 munícios do Ceará. Alguns estados do Nordeste já estão implementando essa política também, e o mundo precisava conhecer. Então foi um painel bastante frequentado, a gente tirou várias dúvidas das pessoas nesse espaço, porque elas realmente se interessaram em saber como funciona esse programa”, comentou Vilma Freire.
Esta reportagem compõe a série “É assunto de política? - Temporada Desertificação na Caatinga". O PontoPoder abordará diferentes discussões acerca do tema, como tributação ambiental, mudança de paradigmas sobre o combate e convivência com a seca no Ceará, atuação legislativa e a revisão do PAE em vigência.
Avanço simbólico
O semiárido brasileiro já é reconhecido internacionalmente como um território de vulnerabilidade climática e social, a exemplo da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (CNUCD), criada em 1994.
Na COP30, por sua vez, a região ganhou evidência diferente nas discussões, especialmente no que se refere à Caatinga, que foi reconhecida como floresta de alta potência ambiental e econômica. Esta é a avaliação de organizações sociais e de gestores públicos do Nordeste ouvidos pelo PontoPoder.
A sociedade civil mostrou que tem experiência concretas e estratégias claras de combate à desertificação. A gente conseguiu mostrar essa diversidade. Agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais participaram ativamente, tanto é que foi a primeira COP a pautar a agricultura familiar, que já vem trabalhando a agroecologia e a convivência com semiárido nesse processo de barrar o desmatamento.
Para eles, o avanço simbólico é convertível em ações práticas num futuro próximo. Até lá, essas entidades estarão atentas aos movimentos do Poder Público e do mercado. Como painelista no pavilhão do Brasil na Blue Zone, a Associação Caatinga discutiu transição energética justa ao lado do governador Elmano de Freitas (PT).
O governo falou sobre hidrogênio verde e as potencialidades do Ceará para a transição energética e, nesse momento, a gente reforçou a nossa ideia de que o Estado somente fará uma transição energética justa se envolver as comunidades e promover a conservação da Caatinga, não o seu desmatamento", pontua o Diretor Executivo na Associação Caatinga, Daniel Fernandes.
O temor é que a expansão da tecnologia continue reduzindo as áreas cobertas por vegetação nativa para a instalação de polos de geração de energia – no caso cearense, “renovável” –, necessários ao processo de eletrólise que transformará a fórmula da água em hidrogênio verde.
É na Caatinga que estão, por exemplo, 62% das áreas de usinas fotovoltaicas do Brasil, conforme dados de 2024 divulgados pela rede MapBiomas. Quase 22 mil hectares do bioma já foram ocupados por essas instalações.
O levantamento ainda mostrou que 52,6% dos empreendimentos de energia solar, hoje, estão em áreas que já foram formações savânicas e florestais, enquanto 35% foram pastagens.
Certificação do carbono da Caatinga
Mesmo diante dessa e de outras ofensivas, o bioma demonstra a sua importância não só para a população local, como também para a regulação climática do Brasil e do mundo. Essa potencialidade se reverteu em debate sobre a necessidade de certificação do carbono da Caatinga, visando alavancar o Nordeste no mercado internacional de créditos de carbono. A conservação, então, resultaria em fonte de receita, investimento e inclusão produtiva.
Embora seja o único bioma exclusivamente brasileiro e o mais eficaz na captura de carbono na atmosfera, os seus ecossistemas são menosprezados nessa discussão porque as certificadoras internacionais ainda desconsideram o carbono subterrâneo.
De toda a captura de carbono do País entre 2015 e 2022 foi feita pela Caatinga, segundo estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“As metodologias globais medem o carbono apenas na biomassa aérea. Precisamos mostrar que a Caatinga é diferente, uma floresta que guarda sua força nas raízes. [...] Precisamos publicar mais estudos em revistas de alto impacto e ocupar espaços decisórios, como o IPCC, que define as metodologias aplicadas no mundo inteiro”, pontuou Carlos Gava, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
A declaração ocorreu durante o painel “Brasil Nordeste: Onde o Oxigênio se Renova”, realizado no Espaço Brasil Nordeste, na Zona Verde da COP30.
“Esta é a COP da ação, e para a Caatinga também precisa ser. Temos a ciência, o planejamento e as ideias. Agora é hora de agir”, ressaltou Pedro Lima, secretário de Desenvolvimento Regional do Consórcio Nordeste, que também participou da programação.
Financiamento ambiental
A atração de investimentos para viabilizar ações de preservação ambiental foi um dos grandes objetivos da conferência que aconteceu no mês passado, em Belém (PA), com ênfase ao inédito Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF).
A fonte de financiamento foi um dos principais projetos do presidente Lula (PT) para esta COP, em consonância com as discussões remanescentes do Acordo de Paris, firmado na COP 21, em 2015. Em síntese, o tratado buscava limitar o aumento da temperatura global em até 1.5°C até o fim do século – meta que depende, dentre outros fatores, de cobertura florestal – e garantir aporte de recursos de países ricos para nações menores, que são as mais impactadas pelas mudanças climáticas.
O TFFF promete recompensar países que investiram na manutenção da sua cobertura florestal, mas isso só vale para os biomas de clima tropical úmido, como a Amazônica e a Mata Atlântica.
Ou seja, o reflorestamento na Caatinga e no Cerrado não contam para a meta de cobertura vegetal, requisito para acessar o rateio de US$ 150 bilhões.
Alexandre Pires, diretor do Departamento de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente (MMA), lamenta a limitação, mas projeta um cenário diferente nos próximos anos, com a inclusão dos outros dois biomas no fundo.
O otimismo se deve a outros encaminhamentos feitos na COP30, que, mesmo em menor escala, ajudam a projetar a Caatinga.
Ele cita o investimento de R$ 100 milhões assinado pelo Banco do Nordeste (BNB) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), visando fortalecer iniciativas de recuperação da vegetação e dos solos da região.
A cifra, articulada pelo Consórcio Nordeste com apoio do MMA, pode duplicar com a ajuda de outros parceiros, segundo Rafael Fonteles (PT), governador do Piauí e presidente do consórcio.
“Banco é banco, ele quer fazer empréstimo, essas coisas. Mas a adesão do BNB e do BNDES estimula outros agentes a financiarem esses projetos, já que não tem como produzir e se desenvolver em um solo degradado”, avalia Alexandre Pires.
Se para investidores o acordo desperta interesse, para atores locais, o entusiasmo é maior ainda. No Ceará, já há planos para parte desse dinheiro.
A coordenadora do projeto de Recaatingamento da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), Luciana Barreira, aguarda o lançamento de editais das duas instituições para começar a tocar as ações planejadas.
Já com maior protagonismo da sociedade civil nas negociações, a Caatinga receberá aportes do governo da Alemanha, via Iniciativa Internacional para o Clima (IKI na sigla em alemão). Organizações de todo o semiárido brasileiro (nove estados do Nordeste mais parte de Minas Gerais e do Espírito Santo) executarão atividades no âmbito do Programa Redes pela Conservação, lançado na COP 30.
Entre elas, a rede ASA, por meio de dez entidades parceiras. O financiamento servirá para ampliar ações em curso e tirar projetos inéditos do papel, no sentido de reduzir o desmatamento, reforçar a adoção de práticas sustentáveis de uso da terra e promover a resiliência climática nos territórios.
Apesar de ser executado independentemente ao Programa Estadual de Combate à Desertificação, o Redes pela Conservação fortalece as suas diretrizes, aponta Luis Eduardo Sobral. No Ceará, o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora (Cetra), membro da ASA, vai executar um projeto no núcleo de desertificação de Irauçuba, focado em sistemas agroflorestais.
Ceará com foco no Recaatingamento
Foi na COP30 também que o Grupo de Trabalho (GT) do Recaatingamento do Governo do Ceará apresentou o projeto elaborado ao longo de cinco meses. A ideia é restaurar áreas de preservação permanente (APPs) e de reserva legal (RL) degradadas em pequenas propriedades rurais familiares.
O grupo trabalhou de forma intersetorial, contando com servidores da Sema, da Semace, da Secretaria de Proteção Animal (Cepa), com a Academia e com ONGs como a Associação Caatinga e o Instituto Pró-Silvestre.
A gente se alinha às metas do Brasil no Acordo de Paris, de recuperar 12 milhões de hectares de florestas até 2030, e às metas previstas nos planos federais, como Planaveg e o PP Caatinga. As metas de recuperação de áreas degradadas e de promoção da agricultura sustentável são prioritárias.
Para isso, a Superintendência do Meio Ambiente se utiliza de dados do Cadastro Ambiental Rural, já que o Ceará é responsável por mais de 90% dos registros finalizados em todo o bioma Caatinga.
O projeto propõe identificar, dentre os mais de 65 mil cadastros aprovados, pelo menos 12 mil famílias de pequenos proprietários rurais instalados em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal, mas que apresentem áreas degradadas.
É esse público que receberá apoio prioritário, que consistirá no fornecimento de mudas, na prestação de assistência técnica e cercamentos para o "repouso" da área e na implantação de sistemas agroflorestais.
Além dos recursos do BNB e do BNDES, a Semace planeja direcionar a reposição florestal exigida nos processos de licenciamento (onde houve supressão vegetal legal) para a recuperação das áreas degradadas dos pequenos produtores.
“Com isso, nós teríamos um benefício para os pequenos produtores, os agricultores familiares, e talvez, em breve, tenhamos dados suficientes para incluir nesse benefício assentamentos e áreas de populações tradicionais”, explicou Luciana Barreira.