Combate à desertificação: Auditoria do TCE Ceará pauta revisão de políticas para o semiárido
Esta reportagem compõe a série “É assunto de política? - Temporada Desertificação na Caatinga', que tratará, ainda, atuação legislativa e COP30, entre outros temas.
A paisagem azul do litoral – amostra da diversidade cromática do Ceará – costuma ser o principal atrativo para quem viaja ao Estado. Da região costeira rumo aos municípios do Interior, o cenário muda, apresentando fauna, flora e solos vistosos e exclusivos da Caatinga. Em algumas regiões, contudo, o bioma é marcado pela escassez, influenciada por ações antrópicas que resultam em um processo de desertificação crescente.
Para além de suas repercussões ambientais, o fenômeno leva a consequências socioeconômicas difíceis de reverter. Em busca de incorporar essa agenda com efetividade ao Poder Público, o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE) passou a acompanhar, por meio de auditoria operacional, as atividades desempenhadas a nível local para lidar com esse problema.
A iniciativa aconteceu, ao longo de dois anos, de maneira coordenada ao Poder Judiciário de outros estados nordestinos e com apoio do Tribunal de Contas da União (TCU). Em 2024, o TCE expediu uma série de recomendações ao governo cearense a partir dos achados sobre o Programa de Ação Estadual de Prevenção e Combate à Desertificação (PAE-CE) em vigência, lançado em 2010.
O PAE, segundo o próprio TCE e a secretária do Meio Ambiente do Ceará (Sema-CE), Vilma Freire, já é robusto e detalhado, mas apresenta problemas que impediram a sua concretização integral nos últimos 15 anos. O Governo do Estado, então, instalou um Grupo de Trabalho (GT) para revisar o programa, que deve concluir suas atividades neste mês.
O novo planejamento deve incorporar diretrizes estabelecidas pelo tribunal, a fim de reforçar ações em curso e viabilizar novos projetos nos três núcleos de desertificação do Ceará, que compreende 14 municípios.
A nova peça, assim como o IEGEE (Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Ceará), vai entrar na Política Estadual de Mudanças Climáticas. Essa política vai trazer a questão orçamentária, do desembolso – se vai ocorrer pelo Fundo de Compensação da Sema ou pelo Tesouro –, então toda essa efetivação virá a partir de dezembro, como previsto.
Esta é a primeira reportagem da série “É assunto de política? - Temporada Desertificação na Caatinga". Nos próximos dias, o PontoPoder publicará materiais multimídia sobre diferentes discussões acerca do tema, como tributação ambiental, mudança de paradigmas sobre o combate e convivência com a seca no Ceará, atuação legislativa e o saldo da COP30 para o semiárido cearense.
Estrutura de governança fragilizada
Em resposta ao centenário quadro de degradação, o Ceará pegou carona nas mobilizações nacionais e internacionais e criou o seu PAE em 2010. O planejamento contava com metas de curto e médio prazos (2010-2013) e possibilidade de reavaliação dos resultados dos projetos almejados pela equipe do governo.
São exemplos a formação de Arranjos Produtivos Locais (APLs), o Bolsa Caatinga, a criação de linhas de crédito para financiamento de atividades não agrícolas e sustentáveis e outros. Alguns realmente saíram do papel ao longo desses 15 anos, como os APLs e o São José (para a agricultura familiar), mas sem coordenação com o PAE.
Também de maneira avulsa, o Estado foi autor, entre 1999 e 2010, de empreitadas exitosas, como o Projeto-Piloto de Preservação e Recuperação Hidroambiental (Prodham), executado pela Secretaria de Recursos Hídricos (SRH) e pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) em Canindé.
A área, inclusive, foi visitada pela Corte ao longo da auditoria, onde foi possível constatar o uso combinado de saberes tradicionais e de tecnologias sociais que, ainda hoje, promovem mudanças positivas num ecossistema antes degradado.
Contudo, o fato de essas iniciativas serem pulverizadas, sem integração com a Política Estadual de Combate à Desertificação, impediu avanços maiores e tornou as diretrizes previstas no PAE ineficazes contra um problema multifatorial e de grande extensão territorial.
Esses obstáculos dificultaram, ainda, o monitoramento do plano e a avaliação dos feitos, segundo o Tribunal de Contas. Em auditoria operacional iniciada em 2022, o órgão constatou que as dificuldades decorreram da ausência de estruturas de gestão e governança e a falta de coordenação estadual e federal para a execução do programa.
Além disso, ele sequer entrou nos Planos Plurianuais (PPAs), nem o Fundo Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca foi criado. Em síntese, não havia integração suficiente para viabilizar as ações previstas. (Veja detalhamento abaixo)
O orçamento não precisa estar em um local só, pode estar na Agricultura, nos Recursos Hídricos, na Educação, em uma universidade. Mas o essencial é que, no final, você some todas as rubricas e tenha noção de quanto foi gasto com esse tipo de ação. A gente quer que o plano sinalize como isso vai acontecer. Vamos precisar trabalhar essa orquestração dos órgãos que têm responsabilidade sobre essa questão.
No esforço de organizar as novas discussões, o Tribunal de Contas aprovou, no ano passado, um Plano de Ação de 15 páginas para a revisão de políticas contra a desertificação, elaborado pelo Estado no âmbito desse processo. Atualmente, cabe à Corte acompanhar as atividades semestralmente, em constante diálogo com diferentes atores políticos e civis.
Algumas medidas já foram desempenhadas, como o engajamento do Consórcio Nordeste na temática. O Estado, inclusive, é coordenador da Câmara Temática do Meio Ambiente da organização, tendo Vilma Freire como coordenadora técnica e o governador Elmano de Freitas (PT) como coordenador político.
A criação do GT sobre desertificação no governo estadual e o estabelecimento de parcerias com entidades não governamentais focadas na resiliência do semiárido também são destaques.
Segundo Giovanna Adjafre, técnica de controle externo do TCE, os primeiros resultados do monitoramento devem ser formalizados junto ao tribunal nas próximas semanas. “O nosso viés não é de punição, mas sim de contribuir. É apoiar o Estado nas suas ações, identificar fragilidades e propor recomendações, que, no caso desta auditoria, foram por demais complexas, nem poderia ser diferente”, comenta a servidora.
Caatinga e desertificação
Quase todo o território do Ceará é classificado como Área Susceptível à Desertificação (ASD), tendo em vista que 98% está no semiárido. São em regiões como esta que a degradação da terra gera cenários desérticos, resultantes das variações climáticas (em função de um ressecamento ambiental, por exemplo) e das atividades humanas.
O extrativismo vegetal indiscriminado, a pecuária extensiva, a agricultura praticada com tecnologias muito rudimentares, são, dentre outros fatores, os principais agentes daquelas transformações.
A escala espacial em que o fenômeno se manifesta e a irreversibilidade ou não dos seus efeitos também preocupam, assim como ajudam a orientar programas corretivos. Justamente por isso, as áreas prioritárias para o PAE-CE são os três núcleos em efetivo processo de desertificação, onde o fenômeno ocorre em níveis muito graves ou avançados.
Ali, conforme o diagnóstico de 2010, a degradação ambiental já atingiu condições praticamente irreversíveis, cujos efeitos são sensivelmente agravados durante os períodos de estiagem.
Exposta, a terra pode se tornar arenosa ou rochosa e perder consideravelmente a sua funcionalidade. As consequências ultrapassam fronteiras ambientais e impactam a capacidade de gerar renda, de produzir gêneros agrícolas, de praticar a pecuária, de reter a população nos seus municípios, de absorver e distribuir água, etc.
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Planejamento é mais frágil nos municípios
Ainda em 2010, o governo já apontava a dificuldade de “obter informações sobre projetos e ações municipais, pois os municípios não estão bem estruturados, os dados são insuficientes e/ou não confiáveis”.
Mais de uma década depois, o diagnóstico do TCE também identificou os municípios como as instâncias mais frágeis nessa dinâmica.
O relatório final da auditoria constatou dificuldade em aprimorar a capacidade gerencial, técnica e operacional da administração local para implementar iniciativas de prevenção, controle e recuperação de áreas degradadas.
Além disso, verificou que o combate à desertificação não foi tratado com prioridade nos conselhos municipais de meio ambiente e/ou desenvolvimento rural sustentável, o que se manifesta também na falta de articulação formal e coordenada com os governos estadual e federal e com organizações civis.
Representante da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) no Ceará, Luis Eduardo aponta a necessidade de estabelecer um trabalho de incidência com o Poder Público, visando a resiliência no Nordeste.
Embora a base de atuação da ASA seja a sociedade civil, o diálogo direto com prefeitos e secretários de Agricultura e de Meio Ambiente dos municípios afetados é essencial.
“Dou o exemplo do Sertão Vivo, um projeto que está sendo executado pelo Governo do Estado e o Fida (Fundo Internacional para Desenvolvimento Agrícola), que também faz esse diálogo direto com os municípios. Não se executa um projeto isolado, ele passa por um processo de integração, isso precisa acontecer”, argumenta.
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Ainda conforme o relatório do TCE, a maioria dos municípios declarou não possuir instrumento normativo sobre a matéria (78,46%), nem cadastro de áreas degradadas (97,37%), nem projetos de recuperação.
Apenas 33% dos municípios afirmaram ter participado de algum evento organizado pelo governo estadual sobre o tema entre 2015 e 2022. Diante dessas lacunas, o tribunal fez três recomendações aos entes municipais:
- Promover a inclusão formal da temática desertificação no planejamento ambiental do Município, observando sua transversalidade com temas como desenvolvimento rural sustentável e educação ambiental.
- Fomentar a criação e implantação de uma estrutura mínima de gestão ambiental no município, caso ainda não exista.
- Promover o reconhecimento das instâncias colegiadas afins (Comdema, CMDRS e outras), conferindo-lhes maior legitimidade e autonomia, e envolvendo-as no debate local para a tomada de decisão e execução de ações.
O PontoPoder buscou os 14 municípios que estão em reconhecido processo de desertificação para entender como esses entes têm incorporado as recomendações do tribunal.
A reportagem também os questionou sobre o diálogo com o Governo do Estado, no âmbito da revisão do PAE-CE, e os esforços para viabilizar projetos paralelos de resiliência ambiental.
Até o momento, não houve retorno das prefeituras. O espaço está aberto para manifestações.
Caminhos para reverter a desertificação no Ceará
A ausência de articulação institucional ocorreu também em função da descontinuidade de políticas de combate à desertificação a nível federal, em meados de 2016. É o que dizem o TCE e a Sema-CE. Com a retomada, a partir de 2023, de iniciativas como a Comissão Nacional de Combate à Desertificação (CNCD), o foco nos estados, num primeiro momento, foi justamente a revisão dos seus PAEs.
Num segundo momento, de acordo com Viviane Monte, técnica da Coordenadoria de Desenvolvimento Sustentável da Sema-CE, o Ministério do Meio Ambiente terá atuação mais direta para buscar meios de financiamento dos projetos locais.
Por enquanto, o ambiente necessário ao novo programa é construído em conjunto pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e as secretarias dos Recursos Hídricos e do Desenvolvimento Agrário, além da pasta de Vilma Freire.
“A gente espera, ao fim, ter um documento que de fato seja exequível e conseguir apoio financeiro para colocá-lo em prática”, pontua Viviane Monte.
Da antiga peça, a servidora espera aproveitar projetos de estímulo à agroecologia, estudos de mapeamento de solos, participação social e avanços legislativos, como a lei estadual que transforma a Caatinga em patrimônio natural.
Já as novidades sairão de estudos técnicos e de sugestões colhidas em seminários populares, realizados em Fortaleza, Jaguaribe e Crato. Instrumentos como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Plano Estadual de Agricultura de Baixo Carbono (ABC+CE) também devem ser incorporados à discussão.
“A gente já não fala nem em mitigação, mas sim no combate aos efeitos das mudanças climáticas. Já passou da hora de mitigar, temos políticas importantes sobre isso, mas agora a gente está trabalhando fortemente nos efeitos. Então, o Ceará tem uma estrutura boa, robusta para implantar com muita eficiência a política de mudanças climáticas”, complementa a secretária Vilma Freire.