Alvo de disputa centenária na América do Sul, a região de Essequibo será tema de referendo na Venezuela, neste domingo (3). Administrada pela Guiana, o território é reivindicado pela Venezuela desde o século XVII. Um impasse que ganhou novos contornos em 2015, quando foram descobertas reservas de petróleo nestas terras.
Agora, faltando um ano para as próximas eleições venezuelanas, o presidente Nicolás Maduro convocou consulta popular sobre o tema. "A Venezuela (...) se prepara para marcar um novo marco na história do nosso país. Unidos, poderemos recuperar e pintar o mapa completo", escreveu Maduro sobre a votação.
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, disse que "cada centímetro" de Essequibo pertence ao país e que não abrirá mão de nenhum pedaço deste território. "Que ninguém cometa um único erro. Essequibo é nosso, cada centímetro quadrado", disse.
Reforços brasileiros
Com o escalonamento entre os dois países, o Brasil resolveu enviar reforço militar para a fronteira. Roraima, estado mais ao norte do País, tem fronteira direta com Essequibo, e o receio do governo brasileiro é que o território do estado brasileiro possa ser usado por forças militares venezuelanas. Na defesa de uma "solução pacífica" para o impasse, o Brasil não quer correr riscos de que eventual conflito possa atingir cidadãos brasileiros.
Com uma área de 160 mil quilômetros, Essequibo representa mais de 70% do território da Guiana. A região possui apenas 125 mil habitantes, pouco mais de 15% da população guianense total. Isto porque boa parte destas terras são ocupadas por uma densa selva.
O território é marcado por rica diversidade, disponibilidade de minerais — inclusive com minas de ouro ainda ativas —, além de uma extensa costa e uma importante rede de rios. Mas a principal riqueza da região são os recém-descobertos depósitos de petróleo pela multinacional norte-americana ExxonMobil.
A Guiana passou a ter uma reserva de petróleo de 11 bilhões de barris, o que representa cerca de 0,6% do total mundial. Para efeito de comparação, o Brasil tem 15 bilhões de barris em reserva de petróleo. O avanço na extração fez com que a Guiana se transformasse em uma das economias que mais cresce no mundo — com o PIB crescendo 57,8% em 2022.
Este crescimento também aumentou o tensionamento na fronteira do país com a Venezuela — que tem como principal ativo o petróleo e que vive uma profunda crise econômica.
Impasse remonta à colonização
A disputa por Essequibo remonta ao século XVIII, quando territórios da América do Sul ainda eram colônia de diferentes países europeus. A Venezuela conquistou a independência da Espanha em 1810 e, em 1814, passou a fazer fronteira com território britânico — é neste ano que o Reino Unido compra, dos Países Baixos, a Guiana Inglesa.
Apesar de ter a fronteira bem definida com a Guiana Holandesa — hoje Suriname —, do lado da Venezuela, os limites acabam ficando indefinidos no momento da compra.
Quase 30 anos depois de comprar as terras, o Reino Unido nomeia um explorador para definir a fronteira entre a Guiana Inglesa e a Venezuela — que acrescenta quase 80 mil quilômetros no território inicialmente ocupado pelo império britânico na região.
É neste momento que inicia o impasse sobre o Essequibo, já que em 1841 a Venezuela denuncia a incursão britânica em seu território. Sob mediação dos Estados Unidos, a disputa passou por arbitragem internacional como tentativa de resolver o impasse.
Em 1899, é emitida a Sentença Arbitral de Paris. A decisão é favorável ao Reino Unido, reconhecendo como de domínio britânico toda a região do Essequibo, que passa a fazer parte, então, do território da Guiana Inglesa.
O assunto é retomado apenas 50 anos depois, quando um dos advogados que atuou na defesa da Venezuela durante a disputa em Paris, o estadunidense Severo Mallet-Prevost, afirma que os juízes não foram imparciais.
A declaração, junto a outros documentos reunidos pelo governo venezuelano, é usada pela Venezuela para alegar que a sentença de 1899 era "nula e sem efeito" e reivindicar o território na Organização das Nações Unidas em 1962. Assim, quatro anos depois, Venezuela e Reino Unido assinam o Acordo de Genebra.
O documento reconhecia a reivindicação venezuelana e estabelecia um prazo de quatro anos para que os países buscassem soluções pacíficas para o impasse. O problema é que, apenas três meses após a assinatura do acordo, o Reino Unido concedeu a independência da Guiana.
O Acordo de Genebra é, inclusive, tema de uma das perguntas do referendo convocado por Maduro. Na pergunta, o eleitor é questionado se aceita o acordo de Genebra de 1966 como único instrumento capaz de resolver a controvérsia.
Desde então, a disputa pelo território passou a ser entre Guiana — que defende a validade da Sentença Arbitral de Paris — e Venezuela. O caso é examinado, atualmente, pela Corte Internacional de Justiça, também conhecido como Tribunal de Haia, mas o governo venezuelano não reconhece a legitimidade do Tribunal para tratar do assunto.
A Corte foi provocada pela Guiana para que tomasse uma medida emergencial devido ao referendo a ser realizado neste domingo. A consulta é considerada uma ameaça pelo governo guianense e, por isso, pediu ao Tribunal de Haia que impedisse a realização da votação.
Nesta sexta-feira (1º), a Corte decidiu que a Venezuela não pode tentar anexar Essequibo. Na decisão, o Tribunal afirma que não é possível definir a quem pertence o território, mas que, de forma provisória, a Venezuela não deve interferir na fronteira entre os dois países.
Existe risco de guerra entre Venezuela e Guiana?
Apesar de resultado em defesa da anexação de Essequibo à Venezuela ser previsível, visto a demanda histórica pelo território, ultrapassando inclusive identidades partidárias dentro da Venezuela, isso não significa, necessariamente, que haverá um conflito entre os dois países.
Isto, porque o referendo é consultivo, ou seja, a opinião favorável da população venezuelana embora possa servir de base para uma decisão do Governo Maduro, não o obriga a agir, já que não possui consequências legais.
Contudo, sinalizações militares em regiões próximas à fronteira aumentam o tensionamento na região.
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, havia ressaltado que apenas a realização do referendo na Venezuela era uma "ameaça à paz na América Latina e no Caribe". Também foi anunciado, pela Guiana, a intenção de instalar bases militares na região do Essequibo com o apoio de estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos.
Os EUA já haviam liderado, em julho, exercícios militares na Guiana, com a participação de mais de 1.500 militares de 20 países. Nesta quinta-feira (30), o governo da Guiana participou de reuniões com oficiais estadunidenses, informou o vice-presidente guianense Bharrat Jagdeo.
"Em seguida, (teremos) várias visitas em dezembro e uma representação de alto nível", disse Jagdeo. "Estamos interessados em manter a paz em nosso país e em nossas fronteiras, mas temos trabalhado com nossos aliados para garantir um plano para todas as eventualidades".
Apesar da perspectiva de ajuda estrangeira, a Guiana estaria em desvantagem em um eventual conflito armado.
Segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), a Venezuela teria um efetivo de 123 mil militares disponíveis para combate. O número é bem superior a força da Guiana, que possui cerca de 3,4 mil homens — o país não possui Forças Armadas e sim uma Força de Defesa. As informações são da Folha de S. Paulo.
Em relação a equipamentos — tanto terrestres como aéreos e marítimos — a força venezuelana também é maior do que a guianense. O país comandado por Maduro possui diversos dispositivos militares desenvolvidos por aliados, como China e Rússia, apesar de alguns estarem danificados ou sem possibilidade de uso.
Contudo, apesar da Venezuela ter uma vantagem militar, a possibilidade de um conflito aberto — utilizando de arsenais militares do país — acaba sendo prejudicado pelas próprias condições geográficas da fronteira entre Venezuela e Guiana — e que também envolve o Brasil.
Fronteira entre Venezuela Guiana
A Venezuela faz fronteira direta com a região de Essequibo, em uma faixa com extensão superior a 740 quilômetros de extensão. Contudo, boa parte deste território é ocupada por selva densa, o que dificulta qualquer atividade militar.
Ao norte desta fronteira, está o oceano Atlântico. Ao sul, a fronteira tríplice entre os dois países e o Brasil. Localizada no extremo norte do Brasil, Roraima faz fronteira tanto com Venezuela como com Essequibo, na Guiana.
O uso do território brasileiro em meio ao tensionamento da região tem preocupado o Governo. O Ministério da Defesa informou que "as ações têm sido intensificadas na região da fronteira", com o envio de militares para reforçar a segurança. Um dos principais focos de preocupação é a cidade de Pacaraima.
A cidade é uma das principais portas de entrada para venezuelanos no Brasil — apenas no primeiro trimestre de 2023, foram mais de 39,3 mil imigrantes que atravessaram a fronteira entre Pacaraima e a cidade de Santa Elena de Uairén, na Venezuela.
Na quarta-feira (29), o Ministério da Defesa enviou 60 militares para o município roraimense. Eles se somam aos 70 homens que já fazem a vigilância da fronteira entre Brasil e Venezuela.
Qual o posicionamento do Brasil?
Secretária da América Latina e do Caribe, a embaixadora Gisela Maria Figueiredo falou que Brasil vê "com preocupação esse ambiente tensionado entre os dois países". As declarações foram feitas nesta quinta-feira.
"No momento em que várias regiões do mundo estão com conflitos militares, a América do Sul permaneça um ambiente de paz e cooperação", ressaltou. A posição brasileira é buscar "solução pacífica" para o impasse entre Guiana e Venezuela. Apesar disso, a diplomacia brasileira não criticou a convocação do referendo por Nicolás Maduro.
A posição do Brasil é de que a realização da consulta é um "assunto interno da Venezuela", disse a embaixadora.
No dia 22 de novembro, o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, se reuniu com Nicolás Maduro para discutir o impasse com a Guiana. Não houve pedido para que o país não realizasse o referendo, mas a visita tentou apaziguar os ânimos, principalmente devido ao tom incisivo da campanha venezuelana pela anexação de Essequibo.
Amorim, que já foi ministro de Relações Exteriores em gestões anteriores do presidente Lula, não se manifestou oficialmente sobre a visita, mas, na mesma semana da viagem de Amorim, o atual chanceler Mauro Vieira falou sobre o conflito.
"O Brasil, assim como os outros países, fez uma exortação para o entendimento, a discussão diplomática e a solução pacífica das controvérsias, que devem ser dirimidas por arbitragem e tribunais internacionais, sempre que possível", disse.
Em Dubai para a COP 28, a expectativa era de que o presidente Lula tivesse um encontro com o presidente da Guiana, Irfaan Ali, para discutir a ameaça da Venezuela de anexar o território do Essequibo. Contudo, o encontro foi adiado. Existe a possibilidade de os dois chefes de Estado se encontrarem ainda neste final de semana.