Como fica situação da Enel no Ceará com múltiplas reclamações e ameaça de quebra de contrato em SP?
Concessionária de energia está no centro de discussões acerca da qualidade do serviço
As reclamações sobre os serviços prestados pela Enel Ceará se multiplicam, em situação que não é exclusividade no Estado, mas também nos demais locais onde a empresa atua no Brasil. Um novo desdobramento — desta vez mais incisivo — aconteceu na última segunda-feira (1º), com a abertura de um processo disciplinar contra a concessionária italiana pelas "transgressões reiteradas" em São Paulo. Mas como fica a empresa no Ceará?
O imbróglio envolvendo a distribuidora ocorre após determinação do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, endereçada à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com ameaça de "processo de caducidade" da concessão da Enel em São Paulo. Isso significa que a empresa pode perder o direito de operar no Estado, podendo levar ao fim do contrato da concessionária no País.
"A Enel demonstra, de forma reiterada, que é uma empresa que está despreparada para prestar o serviço", declarou o ministro em entrevista à GloboNews.
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A percepção em São Paulo não é única. Rio de Janeiro e Ceará, os outros dois estados nos quais a Enel atua no Brasil, também acumulam críticas contra a concessionária. Em terras cearenses, as reclamações viraram até tema de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) exclusiva na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece).
Em agosto de 2023, os deputados estaduais instauraram a CPI da Enel. O objetivo é verificar a qualidade do serviço da distribuidora no Estado, que opera aqui desde 2016 e se destaca pelas inúmeras reclamações de consumidores.
A análise envolvendo a companhia italiana pode evidenciar o panorama enfrentado pelos consumidores cearenses. Com os desdobramentos tanto na CPI quanto no restante do País, a Enel Ceará deve sofrer sanções pela qualidade do serviço prestado, que vão desde multas administrativas até a quebra do contrato pelo não cumprimento de requisitos mínimos. Procurada, a empresa diz que vem realizando investimentos bilionários no Estado, que podem se aproximar dos R$ 6 bilhões (veja nota completa abaixo).
Críticas e multas se acumulam
No Ceará, a concessão vigente para a distribuição de energia tem validade de 30 anos. Desde que a antiga Companhia de Energia Elétrica do Ceará (Coelce) foi privatizada, em 1998, está em vigor o contrato, com validade até 2028.
Em 2016, a empresa italiana assumiu o contrato, e mudou o nome para Enel Ceará. Especialmente após essa mudança, as críticas contra o serviço fornecido se avolumam, além das mais variadas multas.
A partir de um levantamento realizado atendendo a uma solicitação do Diário do Nordeste, a Aneel revelou que a distribuidora soma, em seis anos, R$ 85,77 milhões em multas aplicadas por diferentes problemas.
A agência enumera que tem quatro passos para monitorar o serviço disponibilizado pelas concessionárias: monitoramento, análise, acompanhamento e ação fiscalizadora. Nos três primeiros estágios, a Aneel não aplica multas, o que acontece apenas na última etapa. Até atingir essa fase, as concessionárias precisam de reincidências nas reclamações.
Esse é o valor das 11 multas aplicadas pela Arce contra a Enel por desconformidade com os serviços prestados no Ceará
Em nota, a Enel Ceará informou que segue trabalhando na melhoria da qualidade do fornecimento e na modernização do sistema do sistema elétrico de distribuição do Ceará. "Nos últimos cinco anos, investiu R$ 5,9 bilhões no estado, principalmente em expansão da rede, inclusão de tecnologias de automação na rede, novas conexões, adequação da infraestrutura e construção de novas subestações. Só em 2023 foi investido R$ 1,6 bilhão, o maior investimento da série histórica da companhia", disse a companhia.
Penalidades milionárias
Segundo a Aneel, desde 2018, foram aplicadas 11 multas à Enel Ceará, que aconteceram "devido ao não atendimento aos instrumentos de fiscalização". Pelo fato de as sanções financeiras serem o último estágio disponível de punição contra a concessionária, "foi aberto processo de fiscalização abrangente e diferenciado".
A Enel Ceará foi multada na ação fiscalizadora em cinco das sete previstas pelas disposições da agência. Todos os valores pagos nas 11 penalidades aplicadas contra a concessionária seguiram os requisitos indicados:
- Apuração dos indicadores de continuidade coletivos e individuais: a agência confere como a concessionária faz a coleta de dados e a apuração dos indicadores de continuidade (DEC, FEC, DER e FER), além de como a empresa faz as compensações financeiras previstas em contrato aos consumidores;
- Comercial: a agência verifica, do âmbito do atendimento ao consumidores, o cumprimento dos prazos estabelecidos para religar e suspender o fornecimento de energia, contratos de fornecimento, faturamento e leitura, entre outras disposições;
- Indicadores de atendimento telefônico: é analisado como as concessionárias fornecem teleatendimento para os consumidores;
- Técnica: a agência confere como são feitas as manutenções das redes de distribuição e das subestações, bem como a qualidade do atendimento de emergência e as obras de melhoria e ampliação do sistema.
O mais recente episódio envolvendo punições contra a Enel aconteceu no fim de março, quando a companhia foi multada em quase R$ 15 milhões por procedimento irregular na medição de energia. A penalidade foi aplicada pela Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce).
Reclamações e compensações aos consumidores
Nos dados repassados pela Aneel, há ainda informações sobre o número de reclamações feitas pelos consumidores contra a distribuidora, bem como os valores que a empresa teve que dar de desconto aos clientes cearenses por problemas na prestação do serviço.
O painel reclamações da agência nacional contabiliza, de janeiro de 2019 a março de 2024, 57.403 queixas contra a Enel Ceará. O ano com mais críticas na Aneel foi 2019, com 11.583. Somente nos três primeiros meses de 2024, a distribuidora italiana soma na Aneel 3.830 reclamações.
Ano | Reclamações |
2019 | 10.129 |
2020 | 11.583 |
2021 | 11.497 |
2022 | 9.620 |
2023 | 10.744 |
2024 (janeiro a março) | 3.830 |
A Aneel determina que, em caso de interrupção de serviço, a concessionária deve ressarcir o consumidor financeiramente, colocando o valor como crédito nas próximas contas de energia.
Entre 2018 e 2023, a Enel Ceará teve que reembolsar os clientes cearenses em R$ 138,3 milhões. Gradualmente, o valor da compensação financeira aumentou, chegando ao ápice no ano passado, quando a distribuidora teve que disponibilizar quase R$ 36 milhões em crédito na conta de energia para os consumidores.
Ano | Valor ressarcido (em R$) |
2018 | 8.750.501,93 |
2019 | 18.376.982,09 |
2020 | 25.188.158,57 |
2021 | 22.205.350,72 |
2022 | 27.845.382,62 |
2023 | 35.974.276,63 |
Saída da Enel do Ceará?
A questão envolvendo os problemas da companhia italiana trazem ainda desdobramentos contratuais para o Ceará bem similares ao que acontece em São Paulo. Para o especialista em concessões e professor da FGV Direito Rio, Felipe Fonte, não há distinção sobre as falhas que afetam os dois estados do ponto de vista legal.
"Se a distribuidora de energia elétrica está prestando mal o serviço, onde quer que o serviço esteja sendo mal prestado, faz-se a reclamação e há a instauração de um processo administrativo voltado à aplicação de sanção. Não é impeditivo que a situação no Ceará se transforme num processo autônomo, como aconteceu em São Paulo", diz.
Em meio as declarações mais contundentes do ministro Alexandre Silveira e a multiplicidade das multas, Felipe Fonte acredita que o processo de caducidade da Enel Ceará, que embora ainda seja "pouco provável" pelo fato de a empresa manter os indicadores de continuidade ainda dentro da meta estabelecida pela Aneel, continua no horizonte como uma das medidas analisadas.
"O poder público pode aplicar multas, advertências e eventualmente até chegar na hipótese de caducidade do contrato em razão da prestação deficiente de serviço. Tem previsão contratual e os contratos normalmente preveem até níveis de serviço, que vão dizer como o serviço deve ser prestado, qual é o nível de qualidade que se descumprido gera essa possibilidade de levar sanções", enumera o especialista.
Para que haja o início dos trâmites que levem à saída da Enel do Ceará, Felipe Fonte acredita que o processo deve ser "global", isto é, as reclamações devam repercutir em Rio de Janeiro e São Paulo, outros estados de atuação da empresa italiana e que também acumulam críticas à qualidade do serviço prestado. Em um primeiro momento, a quebra de contrato não é a solução prevista.
Pode ser que existam falhas pontuais na prestação do serviço no Ceará, mas não em outras localidades. É a avaliação global do contrato que vai ser feita. Tem que ver também se essas falhas são falhas suficientemente graves para que não se renove. Muito provavelmente isso não deve ter acontecido e provavelmente a sanção da agência reguladora será algo pontual na linha de uma multa.
CPI da Enel vê indícios de irregularidades
As multas contra a Enel Ceará são aplicadas pela Arce em convênio com a Aneel, como explica a agência nacional. Em âmbito estadual, a fiscalização acerca da qualidade dos serviços prestados é feita pela CPI que tramita na Alece, e a perspectiva é de trabalhos concluídos já no mês de maio.
Os detalhes da investigação foram disponibilizados pelo deputado Fernando Santana (PT), presidente da CPI da Enel. De acordo com o parlamentar, todas as oitivas com Poder Público e representantes da sociedade civil já foram realizadas. O último passo é ouvir os diretores da empresa italiana, o que está previsto para o dia 24 de abril.
"Aprovamos os documentos em um colegiado, e as convocações já foram direcionadas à Enel para prestar esclarecimentos à CPI. Já temos como encaminhamento claro uma ação civil pública contra a Enel, tendo em vista as inúmeras queixas e reclamações constatadas de desrespeito e descaso com a população do Ceará", afirma o deputado.
Durante a CPI, que já dura oito meses, Fernando Santana esteve em São Paulo para acompanhar os trabalhos realizados pelos parlamentares paulistas em investigação similar à realizada na Alece, e os problemas presenciados por lá são "idênticos" aos vivenciados no Ceará.
"Estive em São Paulo, assisti à oitiva dos deputados estaduais de São Paulo contra a Enel. Vi que o problema é idêntico ao do Ceará: a mesma má prestação de serviço, o mesmo desrespeito à população, a falta de comunicação com a população, o desrespeito com a Arce. Quando o ministro fala isso, é porque ele está sabendo que o problema do Ceará é muito grave igual ao de São Paulo", alerta.
Questionada sobre a CPI em tramitação na Alece, a Enel Ceará enfatiza que está aberta ao diálogo com as autoridades, e tem colaborado com as investigações prestando as informações e documentos exigidos.
Quebra de contrato deve ser uma das resoluções da CPI, declara deputado
Por se tratar de um processo investigativo, sem caráter de julgamento, a CPI não tem poder para responsabilizar judicialmente a Enel pela qualidade do serviço prestado, mas deve elaborar um relatório para ser enviado às entidades reguladoras, no caso a Arce e a Aneel. Há a votação no plenário da Alece pelo parecer do relator, deputado Guilherme Landim (PDT), e em caso de aprovação, o texto segue para as agências.
Fernando Santana adianta que, independentemente do que for apresentado pela Enel Ceará na oitiva de 24 de abril, a CPI já colheu provas suficientes para solicitar uma ação civil pública contra a distribuidora italiana e um pedido formal de caducidade do contrato, ou seja, quebra unilateral do contrato sem prejuízo ao Poder Público.
(Devemos encaminhar um pedido) de ação civil pública e um pedido de caducidade do contrato, previsto em lei, e já devemos também encaminhar esse pedido por tudo que apuramos até aqui. Nosso intuito maior é que a Enel ou mude, ou se mude do Ceará. Ela tem condições financeiras de mudar, só não muda se não quiser, tem condições financeiras para investir parte dos bilhões de reais que ela já levou do dinheiro do povo cearense em uma melhor prestação do serviço, fazendo com que a população possa ter um índice de satisfação, que até hoje só tem tido insatisfação.
A reportagem entrou em contato com o Ministério de Minas e Energia, com a Arce e com a Secretaria da Casa Civil do Estado do Ceará para saber as ações adotadas diante das reclamações contra a Enel Ceará, mas até a publicação desta reportagem, não obteve retorno.
Veja nota completa da Enel Ceará?
O setor elétrico passa por constantes transformações e é preciso estar cada vez mais próximo dos clientes e dos stakeholders, visando mais proximidade das características locais de cada estado onde a Enel atua. A companhia está atenta aos desafios do presente e do futuro e manterá o compromisso de buscar sempre a melhor energia para o cearense.
A Enel segue trabalhando na melhoria da qualidade do fornecimento e na modernização do sistema elétrico de Distribuição do Ceará. Nos últimos cinco anos, investiu R$ 5,9 bilhões no estado, principalmente em expansão da rede, inclusão de tecnologias de automação na rede, novas conexões, adequação da infraestrutura e construção de novas subestações. Só em 2023 foi investido R$ 1,6 bilhão, o maior investimento da série histórica da companhia.
Sobre a CPI da Assembléia Legislativa, a Enel Ceará informa que tem prestado todas a informações requeridas e interagido com vários Deputados para melhor esclarecimento, estando aberta ao diálogo com as demais autoridades para esclarecer todos os questionamentos.