Conheça Sharon Dias, geógrafa cearense premiada por pesquisa sobre Covid-19 e habitação
Em entrevista exclusiva à Sisi, Sharon Dias conta como uma estudante da periferia conquistou o próprio espaço na Ciência
Desde a adolescência, as questões habitacionais da periferia de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, já permeavam a cabeça da geógrafa cearense Sharon Dias, 34 anos. Como moradora de conjunto habitacional, Sharon percebeu muito cedo os problemas relacionados ao cotidiano das periferias urbanas. Antes mesmo de fazer disso seu objeto de estudo.
O que começou como apenas algumas inquietações de uma adolescente curiosa e com senso crítico aguçado tornou-se uma grande pesquisa, premiada este ano pela International Development Research Center (IDRC), com o projeto de doutorado voltado para a Covid-19 e a questão habitacional no Nordeste.
Vivendo no Canadá desde 2018, a cearense é doutoranda pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, em cotutela com a University of Victoria, no Canadá. Uma migrante que sonhava em entrar numa faculdade pública do Ceará, mas foi muito mais longe, levada pela sua curiosidade, perseverança e incentivo da rede de apoio.
Ela não era a primeira da classe. Não ficou entre os primeiros colocados do vestibular - passou na terceira tentativa - e precisou conciliar as aulas da graduação em geografia com o trabalho. Uma realidade bem parecida com a de muitos estudantes. Mas quando uma mulher decide seguir com seus objetivos, apesar das dificuldades e toda a pressão social em torno dela, ela tem muito mais chance de conseguir o que quer e de se tornar uma inspiração para as demais.
Mesmo evitando o rótulo de "modelo a ser seguido", Sharon Dias tornou-se uma mulher que inspira outras, sejam estudantes que sonham alto com carreiras promissoras fora do País, ou aquelas em busca de reconhecimento em sua área profissional.
Nesta entrevista para a série Dona de Si ela conta sua trajetória e como conquistou seu espaço na Ciência.
Vamos começar pela história do seu nome. Teria sido uma intuição dos seus pais de que você ultrapassaria as fronteiras brasileiras e chegaria tão longe?
(risos) Boa pergunta. Sobre meu nome tem uma história. Meu pai sempre fala que tinha uma cantora antiga (não sei de que país), que se chamava Sharon e aí ele achava um nome muito bonito e quando eu cheguei, ele e minha mãe acabaram escolhendo este. Não sei se meus pais imaginavam que eu ia viajar, fazer doutorado fora, coisa desse tipo. Mas minha família sempre me apoiou, me deixaram sonhar em elevar meus estudos. Sem pressão.
Então tentar uma carreira profissional fora do País era um sonho de criança?
Mais ou menos. Eu sempre fui muito curiosa, me interessei muito por Ciência. Gostava muito de assistir documentários quando era criança e lia muito. Minha família, principalmente meu pai, lia bastante. Sempre teve todo tipo de livro em casa: história, filosofia, poesia, literatura, livros sobre política.
Esse horizonte de pesquisar, estudar fora era muito distante da nossa realidade. Eu não conhecia ninguém no bairro, um conjunto habitacional mais periférico, que tivesse ido para a Universidade ou que falasse outro idioma. Mas as coisas foram acontecendo e aqui estou.
Quem era essa Sharon, estudante de escola pública, moradora da periferia?
Uma criança muito dentro da normalidade que gostava de brincar na rua, de bola, carimba, frequentava a escola. Não digo que era a melhor estudante da sala de aula, sempre fui muito curiosa mas não era estudante nota 10 não.
Quais foram suas maiores dificuldades quando era estudante de escola pública? Pensou em desistir?
Acho que já cheguei a pensar em desistir sim, não só quando estava tentando vestibular, mas também durante o percurso da faculdade. Foi muito difícil. É muito prazeroso estar dentro da faculdade, mas muito cansativo, quando se trabalha em tempo integral. Eu lembro que no segundo ano que tentei vestibular e não passei por causa de uma questão, comentei com meu pai: é a última vez que eu tento, se eu não passar eu não tento mais. Eu estava estudando de madrugada, trabalhando o dia todo, estava muito cansada, além de lidar com as adversidades, transporte público. Acabou que eu passei. Mas eu não sei se teria parado de tentar, porque já tinha decidido muito antes quando era mais nova que queria entrar na faculdade.
Você teve esse apoio da família para não desistir e continuar seguindo?
Lá em casa meu pai sempre deu muito valor aos estudos. Não havia pressão de “você tem que estudar”. Mas eu e minha irmã sempre ouvimos da família o discurso de que: “eu quero que vocês sejam independentes” e “experimente a Universidade, se você gostar, continua”. Mas nunca houve pressão para fazer determinado curso. Acho que uma das coisas que fizeram grande diferença, algo que não era presente na casa de muitos dos meus amigos, pelas condições mesmo, foram os livros. Meu pai adora ler. Qualquer livro que ele conseguia trazia pra gente. Um dos meus momentos de leitura era no trem (a caminho da escola). Era uma hora para ir e uma hora para voltar.
Fez uma diferença muito positiva nesse gosto por estudar, mas também, me ajudou a compensar as falhas do sistema educacional, a ausência de alguns materiais, laboratórios e o fato de eu ter começado a trabalhar muito cedo.
Pela sua trajetória, parece que você está sempre saindo do seu mundo: da periferia para a escola, da escola para a universidade, depois para outro estado e agora, outro país. Como foi para você fazer esses movimentos?
A transição da escola pública para a universidade eu nem pensava nisso. Queria entrar para a faculdade e deu certo, com apoio, foco e dedicação. Mas eu não sou a exceção. Essa deveria ser a regra. Eu não me coloco como sendo mais inteligente que as pessoas. Tive muito apoio, muito trabalho, claro. Quando entrei na faculdade de Geografia, já trabalhava. No final do curso, entendi o que era o mestrado, comecei a pensar na pesquisa. Fiz um mestrado na UECE, pesquisei, terminei. E eu resolvi dar um tempo antes de fazer o doutorado. Demorei uns três anos trabalhando em outras áreas quando caiu a ficha: tenho currículo bom, o que me faltam são os idiomas. Aí comecei a estudar inglês de uma forma mais persistente. Fiz um plano dentro da minha cabeça de como conseguiria estudar fora se eu quisesse. Então consegui juntar uma verba e vim fazer um curso de inglês em Vancouver em 2015. Comecei a entrar em contato com professores e procurar edital de bolsa. Aí as coisas foram acontecendo. Mas tiveram muitos nãos, muitas portas fechadas do tipo: ganhava bolsa, mas não tinha orientador ou tinha orientador, mas não tinha o financiamento, por exemplo. Então demorou alguns anos para que isso se concretizasse.
Muitas de nós, mulheres, temos dificuldades com a chamada síndrome do impostor. Você já passou por isso? Como você se fortalece?
Acho que síndrome do impostor tem nome: é o chefe que é machista, o professor que não respeita, a família que coloca muita pressão nos ombros das mulheres. Não é só uma voz que fica do nada na nossa cabeça dizendo que a gente não é boa. É a mídia, a televisão que mostra que as mulheres legais, lindas, inteligentes e maravilhosas são altas, magras, de cabelo liso. É a pressão constante, a brincadeira sem gosto dos colegas. Acho que essa voz que fica na cabeça da gente é um porta voz da sociedade machista, consumidora, que se internaliza na gente. E aí, como contorno isso? Eu converso muito com minha família, com minhas amigas. Tento me conectar com outras mulheres que estão na cidade, fazendo pesquisa, com amigas que não estão na universidade, pra gente se apoiar, trocar informação. Converso muito com minha comunidade.
Não sou eu sozinha que vou dar conta de um problema estrutural da sociedade. Vou denunciar esses problemas estruturais, vou combater, vou apoiar outras mulheres. Mas acho que quando a gente coloca a responsabilidade só em nós mesmas de resolver a síndrome do impostor, quando ela é fruto de uma situação social e econômica que é perversa com a gente, estamos colocando mais uma pressão sobre nós.
Como é ser mulher, nordestina, no meio da Ciência?
Historicamente, o Nordeste foi muito vulnerabilizado, estigmatizado, no nosso País, até mesmo com discursos xenofóbicos. Eu me sinto honrada de dar exemplo, me sinto privilegiada, feliz e, às vezes, com muita responsabilidade também, principalmente agora que a pesquisa tem tido mais atenção. Não é comum que um doutorando saia na mídia local, nacional e internacional. Isso traz responsabilidade, mas eu me sinto muito feliz de fazer o que eu quero no momento. Apesar de não ser fácil quando a gente está fora. Sendo imigrante, você tem que construir uma rede de solidariedade, tem questões financeiras, vida de estudante nunca é fácil ao redor do mundo. Geralmente estão no limite do orçamento.
Você sente que já está inspirando novas gerações?
Tenho sentido. Antes mesmo de morar fora, eu tenho buscado trabalhar de forma ética, responsável para dar o exemplo. Mas esse ano, principalmente com toda essa atenção positiva sobre a pesquisa, sobre mais mulheres na ciência que acabou me englobando, sinto que tenho servido de exemplo, inspirado algumas mulheres e meninas que me mandam mensagem no Instagram dizendo “olha, nem te conheço pessoalmente mas estou tão feliz em ver suas conquistas. Isso me dá ânimo para continuar”. Crianças, ex-alunos do Liceu, entraram em contato comigo pra dizer que estão felizes, honrados de saber que estudei no lá. Não tenho pretensão de virar um modelo a ser seguido, mas acho que qualquer pessoa que está trilhando o seu caminho de forma coerente, respeitosa, saudável, pode ser um modelo.
Sobre a pesquisa, o quanto da tua história se conecta com o projeto?
Se eu pudesse quantificar, diria que 40 a 50% da minha pesquisa foi inspirada na minha vivência em um grande conjunto habitacional na periferia metropolitana. Eu não entendia por quê quando a habitação é feita para o trabalhador ou família de renda baixa ela fica na periferia. Eram questionamentos de adolescente: "por que esse conjunto tinha que ser construído do lado dessa fábrica se é poluente para os moradores?". Quando entrei na Geografia, comecei a me dedicar à geografia urbana. Trabalhando no Município, comecei a ter mais contato com a política de habitação municipal, estadual e federal. E aí eu percebi que 20 anos depois, apesar de um contexto urbano social diferente, a habitação para os trabalhadores, em sua maioria, era construída em larga escala na periferia metropolitana. Como também foi mais recentemente através de programas habitacionais. Isso acabou virando minha questão de pesquisa. Como está o cotidiano e quais os desafios dessas famílias que estão neste momento vivendo em conjuntos habitacionais? Acabei trabalhando com duas comunidades que foram removidas para conjunto habitacional no Jangurussu, analisando como estava seu cotidiano, seu direito à cidade e suas demandas.
O que você quer trazer com os resultados da pesquisa?
Acabar com a crise habitacional no Brasil (risos). Mas isso é a longo prazo. Tem alguns objetivos mais imediatos como construir uma base de dados sobre a relação habitação e pandemia; construir alguns mapeamentos, cruzando dados qualitativos e quantitativos relacionados a esse tópico; interferir positivamente nas políticas públicas. Um dos meus gols é fazer com que o debate da habitação, enquanto determinante para a saúde, esteja dentro da política habitacional urbana, do planejamento urbano para a gente atacar essa pandemia, mas pandemias futuras também.
Contextualizar a pesquisa com a pandemia veio depois da pesquisa pronta. Essa mudança foi ideia sua?
Com a pandemia, não fazia sentido para mim continuar trabalhando a inadequação habitacional sem considerar o contexto pandêmico. Simplesmente para que eu termine meu doutorado e pronto? Não. Então reformulei todo o projeto e metodologia para trabalhar a habitação e cotidiano em tempos de financeirização, que é essa apreensão da casa como objeto financeiro. Por iniciativa minha, ressubmeti, busquei recurso e aí inscrevi em vários editais e consegui esse prêmio pelo IDCR para aplicar na coleta de dados.
Mas a casa não é só parede. É território. É uma casa saudável, território saudável. Meus orientadores foram maravilhosos. Com o apoio de todo mundo a gente reformulou.Habitação é fundamental para a vida em si, mas é fundamental no contexto pandêmico. Não existe lockdown se não tiver uma casa para morar.
Gostaria de deixar alguma mensagem para meninas e mulheres que, como você foi, são estudantes, vivendo um momento delicado da nossa educação, com todos esses desafios da pandemia?
Talvez seja um pouco clichê, mas não desista, acredite em você e entenda que a síndrome do impostor não é só sua culpa, porque você não acredita em você, porque a gente vive numa sociedade em que é muito difícil ser mulher e que se puder busque apoio de outras mulheres. Não caia no mito de que mulheres competem umas com as outras. Nos ajudamos bastante e estamos aqui para nos apoiar.