Pierre Verger dá voz a documentos sobre tráfico negreiro em livro clássico

Clássico "Fluxo e refluxo" conta a história da compra e venda de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia entre os séculos XVII e XIX

Escrito por Henrique Artuni , Folhapress
Legenda: Trazendo todos os registros de um passado tenebroso, Verger compõe um painel em que os documentos dialogam entre si
Foto: Pierre Verger/Divulgação

Quando tinha 31 anos, Pierre Verger se despediu da vida burguesa na França para se arriscar por dezenas de países e registrar diferentes povos com sua Rolleiflex. Esse mesmo espírito interessado em mostrar as culturas sem interferências se refletiram em seu trabalho como historiador.

Já que suas lentes não poderiam enxergar o passado, o etnólogo, que escolheu o Brasil como uma segunda pátria quando chegou à Bahia nos anos 1940, conseguiu revelar a diáspora africana por meio da fidelidade integral aos documentos históricos.

Daí "Fluxo e Refluxo", clássico que acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras, ser um catatau de quase mil páginas em que a voz do franco-brasileiro aparece pouco. Para contar a história da compra e venda de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia entre os séculos 17 e 19, Verger reuniu centenas de documentos de arquivos brasileiros e europeus, sobretudo de Portugal, Inglaterra e Holanda.

Legenda: Tese de Pierre Verger sobre o tráfico negreiro saiu em livro originalmente em francês, em 1968, e só cerca de 20 anos depois seria traduzida e publicada no Brasil
Foto: Divulgação

"Verger não era muito de análises densas; explicava rapidamente o contexto e passava diretamente às fontes", diz Carlos da Silva Júnior, professor de história na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e presidente da Associação Brasileira de Estudos Africanos.

"Ele gostava de deixar os documentos falarem. Se, por um lado, esse método pode ser meio cansativo para os leitores, por outro, acabou se tornando valiosíssimo, pois ele consultou documentos que hoje estão indisponíveis, seja pela ação do tempo ou pelo descaso dos poderes públicos com as nossas instituições arquivísticas", acrescenta Silva Júnior.

Painel de complexidades

Trazendo todos esses registros do passado, Verger compõe um painel em que os documentos dialogam entre si e revelam as complexidades econômicas, políticas, diplomáticas e, sobretudo, culturais que muito interessavam a ele.

Afinal, foi parte de uma geração que encontrou uma Bahia com certo romantismo e queria entender a influência dos falantes das línguas gbe (jejes) e iorubá (nagôs) na sociedade de então. Ambos são povos da região do golfo do Benim e que foram as principais vítimas do tráfico, respectivamente, ao longo do século 18 e a partir da proibição do comércio de escravos, em 1850.

Legenda: Pioneirismo de Verger se destaca por dar ampla cobertura à participação das elites africanas no comércio do tráfico - mas sempre vale ressaltar que se trata de uma minoria
Foto: Pierre Verger/Divulgação

De fato, não eram grupos homogêneos em território africano, mas que no território brasileiro (ainda ao lado de outros grupos, como os bantos) passaram a constituir novas comunidades, com reflexos notáveis na vertente religiosa. "A despeito das especificidades de cada 'tradição' -que não era imutável- havia circulação de saberes, práticas, sacerdotes e sacerdotisas e até mesmo deuses entre as diferentes matrizes religiosas", lembra Silva Júnior.

Ainda que Verger afirmasse que seu trabalho era mais de exposição do que de interpretação ou de discussão teórica, "Fluxo e Refluxo" surge da sua tese de doutorado na Sorbonne, sob orientação do historiador Fernand Braudel.

E no quesito da pesquisa, João José Reis, professor titular do departamento de história da Universidade Federal da Bahia e autor do posfácio da nova edição, aponta que Verger trata as notas documentais e bibliográficas como uma "espécie de altar da academia muito reverenciado pelo babalaô franco-baiano".

Pioneirismo

A tese saiu em livro originalmente em francês, em 1968, e só cerca de 20 anos depois seria traduzida e publicada no Brasil - ainda depois de uma versão para o inglês, em 1976. "A razão de o livro demorar tanto a ser traduzido resulta, na verdade, do desinteresse até recentemente, no Brasil, pela história da África e de suas relações históricas com o país", diz Reis.

Ele também destaca o pioneirismo de Verger em dar ampla cobertura à participação das elites africanas no comércio do tráfico - mas sempre vale ressaltar que se trata de uma minoria. "O tráfico não existiria sem a demanda europeia. Os europeus foram os primeiros responsáveis por essa tragédia", afirma o professor da UFBA.

"A grande maioria da população africana envolvida no tráfico estava nos porões dos navios negreiros, na condição de escravizados", complementa Silva Júnior. "Isso precisa ser ressaltado para evitar a equivocada ideia de que, uma vez que alguns africanos participaram diretamente nos processos de escravização e deportação, as políticas de reparação são injustas."

Os professores também apontam que não é possível encaixar o livro na categoria do pensamento decolonial, que buscava libertar a produção de conhecimento da perspectiva eurocêntrica, e que ainda não existia à época de Verger.

Independente disso, para pensadores de diferentes origens, o livro do etnógrafo constitui, segundo Reis, "amplo material empírico para suas reflexões, inclusive para concluírem que se trata de uma história do tráfico escrita através de documentação europeia".

 

Fluxo e refluxo
Pierre Verger
Tradução de Tasso Gadzanis

Companhia das Letras
2021, 976 páginas
R$129/ R$49,90 (e-book)

 

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