"Ninguém parece disposto a arcar com os custos da cultura", diz Teixeira Coelho

Gestor cultural e crítico de arte, ele fala ao Diário do Nordeste sobre o estado atual da área, a partir da contribuição do sociólogo alemão Georg Simmel

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@svm.com.br
Legenda: Teixeira Coelho
Foto: Luiz Alves/ Instituto Dragão do Mar/ Divulgação

Georg Simmel (1858-1918) foi um pensador original, do tipo que mesmo o tempo tem dificuldade de pacificar suas ideias. É considerado um clássico nos campos da sociologia e da filosofia, mas comparado a outros contemporâneos de igual estatura intelectual, é menos lido e menos traduzido no Brasil.

"O fato de ele ter deixado de lado os esquemas ideológicos e sociológicos daquele momento, os mesmos com os quais o século XX continuou a trabalhar, levou a que ele ficasse à margem da leitura e do pensamento contemporâneo", explica Teixeira Coelho.

Gestor cultural, curador, crítico de arte (e ele também um pensador original), Coelho é diretor da coleção "Os Livros do Observatório", do Itaú Cultural. Simmel é justamente o autor mais recentemente publicado nessa série de obras que olham o campo cultural de diversos pontos de vista, a partir de disciplinas variadas.

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"A Tragédia da Cultura" é um ensaio longo de Simmel. No volume, dialoga com outro, de Coelho, "Cultura, Grandeza Negativa". O livro pode ser baixado gratuitamente no site do Itaú Cultural.

Cem anos separam as duas visões. O que as liga é justamente a dimensão negativa da cultura, no tocante à sua aparentemente paradoxal condição de dizer respeito a tudo e, ao mesmo tempo, ser atacada. Os dois autores ajudam a explicar o fato da cultura e arte serem alvos de perseguições e ameaçadas pelo descaso. Em direção ao presente, Coelho fala ao Diário do Nordeste a partir de Simmel. 

Georg Simmel é um autor clássico, com uma bibliografia em português irregular. Para localizá-lo, em vista do leitor, conte-me que espaço o ensaio "A Tragédia da Cultura" ocupa na obra dele? 

Teixeira Coelho - O espaço que a cultura e a arte ocupam na obra dele é muito grande. Diria que é o alimento principal que o levou a escrever o que escreveu, em várias áreas. E o que levou, também, a ser um precursor de muita coisa. De Walter Benjamin, por exemplo, que é tão badalado; de Roland Barthes. E a ser um precursor com a coragem suficiente para pensar com a cabeça própria e não com os esquemas que já existiam na época em que escreveu.

E o fato exatamente de ele ter deixado de lado os esquemas ideológicos, sociológicos daquele momento, os mesmos com os quais o século XX continuou a trabalhar, levou a que ele ficasse à margem da leitura e do pensamento contemporâneo. Não que ele esteja à margem. As pessoas que o ignoram, por ele não estar dentro da corrente pré-definida como a correta, fizeram com que não fosse lido e discutido. 

Você acalentou essa publicação por 20 anos. Ela chega num momento em que parece que tem muito a dizer sobre o que vivemos.  

Queria ter publicado o livro todo, que tem umas 400 páginas (o texto faz parte de "Cultura filosófica", que numa tradução de Lenin Bicudo Bárbara chegou a ser lançado pela Editora 34). Mas quando falo com meu editor, ele sempre diz: “olha, as pessoas estão lendo livros de 150 páginas. Se você me faz um livro de 500 páginas, vai custar uma fortuna para imprimir e o dinheiro não volta”. Foi uma questão meramente de oportunidade econômica e de eu me dispor, inclusive, de extrair um capítulo do livro. É uma parte que permite ser destacada, porque, apesar de estar conectada com as demais, ela mantem uma unidade própria. Em segundo lugar, demorou pela minha própria dinâmica de pensar, de ir de um tema a outro, e de chegar à determinadas proposições que hoje podem ser lidas.

O que estou me referindo aqui é um certo negativismo dele em relação à cultura. Quando diz, por exemplo, que os objetos têm vida própria. Isso não é uma observação que as pessoas gostem de ouvir. Sobretudo as pessoas que lidam com a cultura e com a arte. As pessoas ainda estão muito presas à crença de que podem intervir dentro do sistema, alterar o destino do sistema, a sua desembocadura. Simmel observava - e nesse sentido era bastante marxista - que o sistema é mais forte do que a vontade das pessoas e ele acaba impondo a elas determinada realidade. Isso não é algo que as pessoas gostavam de ouvir no século XX e talvez ainda não gostem. O pensamento dele ainda hoje não é muito tragável. As pessoas não gostam de ouvir certas verdades. 

Legenda: "A tragédia da cultura", de Simmel, da editora Iluminuras com o Itaú Cultural, 128 páginas
Foto: Reprodução

Uma coisa que achei interessante é esse diálogo com o texto seu, ele toca em pontos desse momento que estamos passando na cultura, que é uma exacerbação desse negativismo. A cultura vem sendo dobrada, submetida.  

Não me lembro em que mês o texto ficou pronto. Não estávamos ainda em confinamento. E eu menciono isso porque, com a pandemia, o que ficou claro é que a cultura e a arte não são essenciais. Veja tudo o que aconteceu na França. Com o confinamento, foram obrigados a fechar todos os negócios. Exceto os essenciais: comida, remédio, hospital, claro. Ficou evidente que, mesmo para a França, que sempre foi um estado que apoiou a cultura de maneira fortíssima, os governantes franceses disseram que a arte não é essencial, ‘se você for pro teatro, pro cinema, comprar um livro, vai pegar vírus’. Claro que não foi dito assim, estou simplificando. Se você fosse nesses lugares, antes da pandemia, ia encontrar uma ou duas pessoas.

O fato é que sem um livro, sem um filme, viver fica muito difícil. Ainda assim, a arte e a cultura foram vistas como não-essenciais. 

Qual o significado desse corte?

Hoje em dia, ninguém mais fala de cultura. As pessoas estão falando de economia criativa, de indústrias criativas. A Secretaria de Cultura de São Paulo mudou seu nome. Agora é Secretaria de Cultura E Economia Criativa. A cultura como um fato não importa mais, mas o dinheiro que essa indústria criativa pode trazer. Não é o fenômeno de agora. Lembro de um momento, acho que na segunda metade dos anos 80, meados dos anos 90, quando a TV saiu –  em termo de ministérios - da área da cultura para a área de telecomunicações. E ela foi considerada um fato de telecomunicações, portanto um fato de dinheiro, como uma operadora de telefonia e coisas do gênero. A parte de conteúdo, que poderia ser cultural, mas nem sempre é, ficou completamente submetida ao aspecto econômico e estratégico. 

A cultura não está mais interessando a ninguém como um fato efetivamente cultural. Como uma oportunidade de você conhecer, virtualmente, o mundo; de crescer ao contato das obras de arte, que ampliam a esfera de sua percepção da vida e do mundo. 

A cultura hoje está interessando àqueles que podeam apoiá-la - o governo, por exemplo - como um produto que dá dinheiro como outro qualquer. Se você puder mostrar um projeto rentável, ele é bom. Ninguém parece disposto a arcar com os custos da cultura, que são altos e que são sempre mais altos. Isso acontece porque ela é fundamentalmente baseada em serviços, e esses só as pessoas podem prestar. Os custos da arte e da cultura só crescem. Os custos de produzir um carro poderiam ficar mais baratos, de ano a ano, e se não ficam é porque todo ano alguém inventa algo e os fabricantes incluem no carro e assim os preços se mantêm. Mas o que mais cresce de custo é cultura a e a arte.  E isso parece não servir mais a quem faz as políticas culturais. 

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Simmel fala no "caminho da alma em direção a si mesma". É uma tradução precisa da importância da cultura para a existência. Esse processo de alienação do campo cultural, de deslocamento, sua conversão em adereço, é um fato novo? 

Não é um fato novo. Mas vamos fazer uma discussão antes. A cultura e a arte que a gente vê cada vez menos firme é a cultura e arte que o próprio Simmel chama, não diretamente, mas aplicando-se o que escreveu, de “aventura”. Há filmes, como os de (Jean-Luc) Godard, de Agnès Varda, do Glauber Rocha, que propõem uma aventura para você. Uma aventura do espírito. Se você entra no filme, não sabe o que ele vai propor, por mais de que você leia um sumário antes. Se vai a um museu ver uma exposição, especialmente se for de arte contemporânea, você não sabe o que ele vai te propor até estar lá.

É o momento. A ideia é que só o tipo de arte e de cultura que propõe uma aventura é aquela que é capaz de - vamos usar essa palavra velha - fazer o seu espírito ampliar a esfera de presença que ele tem. Se você ficar em coisas rasteiras, que voam rente ao chão, não há muita aventura. Então, uma música feita de acordo com o mercado, ou hábitos culturais que se repetem mecanicamente de ano a ano, não são totalmente inúteis. Eles acrescentam algo a você, mas voam muito baixo, perto do solo. Existe uma cultura e uma arte que voam lá em cima, que são aventuras, e é esse que está cada vez mais perdendo fôlego. E isso vem de há muito tempo. 

Legenda: "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", de Glauber Rocha: o cinema como aventura do espírito
Foto: Divulgação

Essa aventura é necessariamente restrita a poucos? Vai ficar sempre muita gente de fora dessa aventura? 

A maior parte das pessoas não quer correr os riscos de uma aventura. Quer ter segurança, tranquilidade. E nós vamos criticar por quererem isso? Claro que não. Seria até meio desumano fazer isso. Não são todas as pessoas que estão dispostas a viver uma aventura. Vamos dar um exemplo concreto. As pessoas que querem conhecer outros países, outras culturas. Elas estão dispostas a sair de casa com uma mochila nas costas e ver o que vai acontecer ou preferem comprar um pacote em que dizem onde ficar, que horas vão a  esse ou àquele lugar? É turismo, puro e simples.

Você cresce pouco, porque não há nada em jogo. É daí onde vem aquela diferenciação entre o viajante e o turista. Não existem mais viajantes hoje. O fenômeno de massa é o do turista. O viajante ampliava - e muito - sua esfera de presença. Ele entrava em contato com as pessoas do local, descobria onde ou o que comer. Com o turista, você tem um roteiro. A maior parte das pessoas não está a fim de passar por uma aventura, menos ainda em temos de cultura e arte. ‘Vejo um filme do Godard, não entendo? Saio na metade. Não quero me esforçar para entender’. 

Em que ponto isso não tem uma determinação educacional e é explicado pela dificuldade de se ter acesso aos códigos necessários à compreensão destas expressões? 

No fundo é essa questão. Costumo dizer que o sistema educacional deste país, é o mais desculturalizado que conheço. E também o sistema cultural daqui é o que menos se apoia na educação. Essas duas esferas estão intimamente vinculadas. Como vou ler um livro se não sou alfabetizado?

A maior parte do povo brasileiro conhece as letras, mas as usa muito pouco. É a história do analfabeto secundário, a pessoa é instruída o suficiente para usar um cartão num caixa de banco e pronto. 

Hoje você precisa conhecer 300 palavras para ler um jornal. Qualquer dicionário bom tem 300 mil verbetes. Se você pega um livro que usa 300 palavras, ele não leva as pessoas a lugar nenhum. A cultura e a arte que amplia a esfera de presença, que são capazes que o espírito, a própria pessoa, faça essa viagem, saia de si mesma, que vá encontrar o que cultura e arte propõem, e volte para si mesmo... isso precisa de educação. Tem gente que, sem educação, vai fazer essa viagem, mas em geral você precisa da educação para fazer essa viagem. Se não conhecer o código do cinema, como vai entender o filme?  

Em que medida o ataque à cultura é causa ou consequência do que vivemos? 

Ambas as coisas. Esse ataque, como você diz, o desprezo, o não levar em conta, é causa de um afastamento cada vez maior. E, como as pessoas se afastam, surge como consequência o ataque à cultura. "Ah, esse tipo de filme não interessa a ninguém. Não vou exibi-lo, logo não vou produzi-lo, não vou fazê-lo”. Quanto menos você divulga, menos as pessoas se interessam. É um ciclo vicioso, uma coisa alimenta a outra. Temos que sair dele e promover um ciclo virtuoso. Como fazemos isso? Com educação. Educação culturalizada. A cultura está em um momento em que não consegue se puxar para cima pelos próprios cabelos. A cultura e arte, por muito tempo, viviam fazendo isso. Mas hoje esse corpo está tão pesado que, sozinha, ela não consegue fazer isso. Ela precisa do apoio da educação. 

Estamos num cenário sem saída? 

Saída sempre tem. Veja como estavam os EUA até o fim do governo Trump. Não há cabeça minimante descente que não concorde que ele era um desastre. Os EUA estão saindo de um desastre. A situação no Brasil é complicada. É, mas (a situação) não está mundialmente assim.