Professores da Universidade de Fortaleza avaliam o valor do cinema e audiovisual durante quarentena

Atravessar o período de isolamento social seria um desafio ainda maior sem a possibilidade de conferir filmes e séries em casa. A partir de experiências no setor, educadores mostram a importância do fazer criativo de imagens em movimento

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Nos bastidores de "Bate Coração", o diretor Glauber Filho
Foto: Reinaldo Jorge

O que já era fato, agora se tornou mais evidente: cultura é importante, sim. Entre outros impactos, a pausa compulsória devido à pandemia do novo coronavírus redesenhou nossas formas de produzir e consumir arte, fomentando um olhar diferenciado, por exemplo, sobre livros, discos, séries e filmes. Atravessar este período sem eles certamente representaria um desafio ainda maior.

Prova disso é que um estudo elaborado pela Conviva, plataforma de monitoramento de streaming, apontou que a audiência desses serviços de audiovisual cresceu 20% desde o início da pandemia. Em outro levantamento, pesquisadores concluíram que, em comparação ao primeiro trimestre de 2019, os três primeiros meses de 2020 apresentaram aumento de 79% em horas vistas de vídeos sob demanda (categoria na qual estão Globoplay, Netflix, entre outros players).

Um dado igualmente capaz de mostrar a atual força do segmento também foi revelado pela Kantar Ibope Media. Segundo a consultoria, o uso de televisões para assistir ao streaming cresceu 33% durante este momento - saltando de 3,9 para 6,5 pontos em um mês.

Não à toa, professores do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza valem-se da presente realidade para também lembrar os significativos esforços por trás da realização de um simples frame ou trama cinematográfica. Para o cineasta Glauber Filho - docente da instituição e diretor de longas como "Bezerra de Menezes: o Diário de um Espírito" e "As Mães de Chico Xavier"- a cada filme visto ou realizado, ele se vê conectado a outro, imerso numa dimensão criativa.

"Não conseguiria viver sem cinema. Acredito que é uma forma de linguagem que opera noutra ordem: a da emoção. É um modo de estar presente no mundo, em conexão com os demais. E justo porque faz a gente se deslocar no tempo e no espaço é que vemos filmes como se olhássemos no espelho, buscando, sobretudo neste momento de pandemia, o que nos move e pode trazer esperança", diz.

Na visão dele, o setor ainda não tem o prestígio que merece no País, muito em vista, conforme fala, da dinâmica de uma sociedade utilitarista, em que a arte é encarada como uma prática fora do processo produtivo convencional. "Há muito preconceito em torno do fazer cinematográfico, como também, por outro lado, romantização e desvalorização, como se não houvesse trabalho árduo e conhecimento acumulado por trás de cada produto audiovisual".

Custosa execução

Glauber Filho detalha informações pertinentes acerca da arte de fazer filmes. Um longa com duas horas de duração, por exemplo, envolve, no mínimo, um ano de produção; por sua vez, um roteiro, para ser escrito, requer cerca de seis meses.

Depois disso, há de se captar recursos, alavancando processos como pré-produção (levantamento de locações e equipamentos necessários); contratação de profissionais, a exemplo de fotógrafos, assistentes de direção etc.; e cumprimento do cronograma de gravação, feito, em geral, ao longo de seis semanas - mas pode ser mais, dependendo da complexidade do filme.

"Depois vem a pós-produção - a cargo de montador, finalizador, profissionais de efeitos visuais, mixagem de som, trilha-sonora, e por aí vai. Por fim, o planejamento de marketing para o lançamento do filme e a negociação com o exibidor", completa. "Assim, desde o planejamento até o filme chegar nas telas, temos em média de dois a três anos".

Ainda que diante de tantas etapas inerentes à feitura de qualquer obra, o realizador sublinha que os esforços valem a pena. "É um exercício do olhar e um aprendizado que não cessa. Cinema faz bem à saúde mental, ao espírito crítico, bombeia o coração, reforça a imunidade e constrói a humanidade, sendo também espaço político de construção da cidadania. Por isso, precisa ser democrático e diverso. É importante que tenhamos filmes feitos por índios, ciganos, quilombolas, por pessoas da periferia e seus olhares múltiplos", acredita.

Cadeia produtiva

Sendo cada filme uma empresa, a figura do produtor também ocupa papel central no desenvolvimento de todo o processo. Ele é o responsável por tornar viável, sobretudo financeiramente, a ideia original de um diretor ou roteirista. Produtor independente e professor de Produção e Gestão de Negócio Audiovisual da Universidade de Fortaleza, o diretor da TV Unifor, Max Eluard, conhece de perto todos os elos da cadeia produtiva de uma obra cinematográfica.

Por essa razão, tem refletido sobre uma contradição instaurada desde a chegada da pandemia: de um lado, o esvaziamento das salas escuras e a retração de uma arte que é essencialmente coletiva e, hoje, se mostra inviável diante do isolamento social; do outro, a demanda crescente de produção audiovisual por parte de plataformas de audiovisual, um dos principais refúgios da vivência em casa.

Sob a ótica de Max, essa dinâmica de maior consumo doméstico de filmes e séries tende a crescer cada vez mais com os dispositivos móveis e a internet abrindo caminho para os serviços de streaming. É preciso, assim, inovar.

"O setor vai ter que ir desenhando novas possibilidades para continuar produzindo pós-pandemia. Em princípio, penso que as equipes serão menores e todos irão trabalhar paramentados com equipamentos de proteção individuais (EPIs), para evitar contágio. São protocolos que ainda estão sendo desenhados enquanto o grande pólo de difusão e distribuição dos conteúdos audiovisuais deve continuar sendo, por um bom tempo, a internet", projeta.

Se a sede por novos conteúdos não diminuiu frente à pandemia, o momento de crise exigirá, portanto, o aprimoramento da formação. "O profissional de qualidade vai estar cada vez mais em alta. Daí a importância das escolas de cinema e do conhecimento teórico aplicado. A pessoa do audiovisual que estudou teoria da comunicação, da fotografia, história do cinema, entre outros, certamente vai fazer a diferença, assim como aquele que sabe da importância de estar sempre atualizado, em dia com os novos formatos e tecnologias", salienta.

Ele diz ainda que tem aproveitado para conferir uma série de produções neste momento, destacando algumas. "Entre nós, indico filmes seguidos de debates em primeira mão que a TV Unifor vem exibindo em parceria com o Curso de Cinema. Tivemos uma primeira experiência com 'A Fera na Selva', dirigido por Paulo Betti, com quem debatemos ao vivo, e outros já estão sendo agendados. É conferir na tela da TV ou via mídias sociais", frisa o professor, festejando em paralelo a Mostra "Cenas de Quarentena", uma seleção de filmes produzidos por alunos da Unifor dentro de suas casas no período de distanciamento social.

Ver além

Convocado a esse abraço em torno do que vemos e do que nos olha, o documentarista e professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, Valdo Siqueira, acrescenta mais uma camada sobre a importância do registro de imagens em movimento. "Com o isolamento social, parece que reativamos a capacidade de filtrar aquilo que entra pela nossa retina, selecionando melhor o que queremos ver. Acho que o cinema enquanto signo tem nos ajudado, portanto, a olhar nos olhos desse difícil momento, a fim de atravessá-lo", destaca.

É justamente entre aulas virtuais em meio à quarentena que ele percebe o quanto o cinema tem se tornado mais sério à medida em que filmes e séries tomam conta da rotina em casa. "Sem dúvida, os alunos estão assistindo a mais filmes nesse período de pandemia, pelo menos um por dia, o que não acontecia antes. E, apesar do confinamento, tem muita gente produzindo documentários agora, pela necessidade mesmo de narrar-se e de não perder o vínculo com os acontecimentos", reflete.

Pós-pandemia, Valdo Siqueira considera que o número de documentários será muito maior do que o de ficção em razão do afã que as pessoas demonstram em voltar a ter esse atrito com a realidade que hoje miramos por meio das muitas janelas, de dentro para fora.

"Por trás de cada imagem, há o componente humano, corações e mentes que, reunidos, compõem roteiro, direção, som, fotografia, iluminação, montagem, realidade virtual, produção, tudo junto e misturado para contar ou fabular histórias. Daí porque um filme equivale a um encontro", defende o professor.

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