Filmes e séries de terror debatem o racismo e se popularizam nas plataformas de streaming

A união da temática e dos gêneros ganhou repercussão após o filme “Corra!” (2017), de Jordan Peele, mas esse problema social vem sendo discutido no cinema há muito tempo

Escrito por Redação ,
Cena de Daniel Kaluuya no filme Corra!
Legenda: "Corra!" (2017) é um filme de suspense e terror psicológico do norte-americano Jordan Peele
Foto: Reprodução

Um jovem luta para sobreviver quando os mortos levantam de seus túmulos para se alimentarem dos vivos. Um grupo de homens se aproximando parece ser a salvação para Ben. Quando ele decide pedir ajuda, é alvejado com um tiro

Veja também

Essa descrição poderia ser de qualquer filme de terror com tema de zumbi, mas a história ganha outra conotação pelo fato de Ben ser negro e viver na década de 1960 nos EUA. A narrativa faz parte da produção cinematográfica “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), dirigida por George A. Romero, que se tornou uma referência para discutir a representação das pessoas negras nos filmes de terror. 

A discussão do racismo nesse gênero se popularizou nos últimos anos, sobretudo após o lançamento do filme “Corra!” (2017), de Jordan Peele. Segundo o crítico de cinema e professor da Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, Juliano Gomes, esse debate tem apresentado mais evidência recentemente, porém não é inédito.

“Nos gêneros terror ou horror, nos gêneros cinematográficos, é muito comum que eles trabalhem críticas sociais. Isso sempre aconteceu, porém, nas últimas décadas, a sociedade como um todo tem discutido mais o racismo. Essa discussão ganhou uma escala maior, eu acho que os filmes caminham nessa direção”, pontua Gomes.

Esta é uma imagem da série Lovecraft Country
Legenda: Em Lovecraft Country, os personagens se deparam com estranhas mortes, envolvendo relatos de criaturas misteriosas
Foto: Reprodução

Ainda conforme o professor, o racismo, desde sua origem, não tem sentido. Foi inventado por um povo para se sobrepor a outro, uma espécie de “fantasia”, a qual, segundo Juliano, trouxe consequências negativas gigantescas para incontáveis gerações. Do mesmo modo, os filmes de terror ou horror também não apresentam explicação lógica, com monstros gigantes ou aparições sobrenaturais, fato que torna a discussão do racismo mais interessante nesses gêneros. 

“O cotidiano da pessoa negra tem uma familiaridade com o horror, onde você sofre coisas que muitas vezes não fazem sentido. As pessoas não enxergam você. Você é um ser humano e as pessoas acham que você não é”. 
Juliano Gomes
crítico de cinema

Outra familiaridade apontada pelo crítico compartilhada pelos gêneros e o racismo é a relação com os corpos. “Corra!” (2017) exemplifica muito bem essa questão. No filme, Jordan Peele estabelece uma conexão entre a fetichização dos corpos negros, característica dúbia do racismo, com a troca de cérebros e de corpos, elemento típico do filme de horror. 

“Hoje, em filmes como Corra! e séries como Them, entre vários outros, artistas negros estão podendo explorar essa afinidade entre uma coisa e outra. Eu acho uma coisa muito legal porque esses temas de natureza de crítica social, de análise social, são constantemente abordados por gêneros cinematográficos como drama, por exemplo. Acho também interessante que essas análises podem ser profundas e divertidas”, acrescenta Gomes. 

Limites

A série “Them” lançada em 2021 pelo Amazon Prime Videos ganhou bastante repercussão pelo uso de cenas gráficas com elevado teor de violência para representar o racismo.  No seriado, uma família negra se muda para um bairro majoritariamente branco, onde passa a conviver com o preconceito da vizinhança e aparições sobrenaturais na nova casa. 

Esta é uma imagem da série Them
Legenda: Them traz uma nova trama sobre a injustiça racial nos Estados Unidos a cada temporada
Foto: Reprodução

Para o crítico de cinema e audiovisual, Eric Magda, “Them” usa os artifícios do horror para tortura psicológica, física e sexual dos personagens negros, corroborando a ideia de que os protogonistas se fortificam através do racismo. Ainda de acordo com ele, a violência está presente apenas por sadismo, já que as cenas de extrema violência não contribuem para enriquecer a narrativa. 

“As cenas gráficas são demais e há um sentido de que a série apenas explora a dor e o sofrimento desses personagens por sadismo. A sensação maior é que você passa 10 episódios apenas observando por observar esses personagens sofrendo pelas formas mais variadas”, analisa Magda. 

Conforme o crítico de cinema, existem outras maneiras de explorar imageticamente o sofrimento, sendo uma opção do diretor ou da diretora determinar quais ângulos e enquadramentos serão escolhidos para ilustrar determinada cena. 

A série acendeu o debate sobre a necessidade de “impor limites” na representação da violência relacionada a problemas sociais. É necessário que existam limites para que assistir a um filme ou uma série não seja uma tarefa de embrulhar o estômago ou o cinema é livre para representar o que quiser como quiser?

O professor Juliano Gomes acredita que criar um limite universal para a representação da violência nos gêneros cinematográficos é algo “muito difícil”. Ele explica que é necessário analisar cada caso, já que determinadas cenas gráficas também são pensadas para movimentar e agregar a narrativa contada. 

“Acho importante a presença da violência e da brutalidade nas artes como meio de lugar seguro pra gente poder organizar as coisas, como também eu acho preocupante a gente achar que tirando a brutalidade do discurso artístico, a gente vai tirar da sociedade. É um raciocínio bastante problemático”, avalia Juliano.

Discussão lucrativa

Engana-se quem pensa que discutir o racismo no cinema tem um viés estritamente social. Os críticos afirmam que as produções audiovisuais que mesclam os gêneros terror e horror com a temática racial cresceram nos últimos anos porque elas têm gerado muitos lucros para a indústria de streaming. 

“Porque de alguma maneira, você vende no mesmo produto, pensando na lógica dos vendedores, entretenimento e crítica social. Eu acho que essa é uma fórmula importante hoje para o mundo do entretenimento”, acrescenta Juliano Gomes.

A isso soma-se o fato de que cada vez mais diretores e diretoras negros estão ocupando a produção executiva no cinema, reinventando o lugar comum aos filmes de que os personagens negros não sobrevivem às narrativas de terror, onde eles existem apenas para compor partes complementares da narrativa, explica Eric Magda.

“Não acho justo a gente dar um viés social para uma indústria focada nos lucros. Ultimamente a ideia de que corpos negros merecem protagonizar histórias está vendendo e é por isso que a gente tem tantos filmes sobre isso. Claro que o peso social é inegável, mas nem sempre isso é utilizado de boa forma”, completa Eric. 

 

Assuntos Relacionados