Com instrumentos feitos de barro, Grupo Uirapuru se apresenta neste fim de semana em Fortaleza

Os sons da natureza ganham forma a partir da cerâmica no espetáculo "Passarinhada". Inspiradas nos cantos das aves, depois de chegar a diferentes cidades do interior cearense, as canções voarão pelo Teatro São José nesta sexta (14) e sábado (15)

Escrito por Ana Beatriz Farias , beatriz.farias@tvdiario.tv.br
Foto: Foto: Helene Santos

Foi preciso passar por ruas estreitas, sobre o chão de terra batida, e ir descobrindo o escondido caminho com jogo de tentativa e erro até que chegássemos a um verdadeiro oásis em meio ao povoado de Moita Redonda, no município de Cascavel. Repleto de verde por todos os lados, preenchido por grama, areia e grandes árvores, o lugar inspira paz e é, por si só, um convite à pausa, respiração mais demorada, e escuta do silêncio feito pela natureza que, paradoxalmente, canta.

O cenário, que parece ter saído das páginas de um livro, é a Escola de Artes Moita Redonda, abrigo do Grupo Uirapuru, a Orquestra de Barro. Em uma casinha de taipa, os instrumentos de cerâmica tocados pelos seis integrantes do conjunto chamam a atenção de quem entra. Sob a luz que invade pelas frestas do telhado e das janelas, parecem verdadeiras obras de arte. E são. Feitos manualmente por moradores do povoado de Moita Redonda - que sobrevivem basicamente do que o barro dá - eles sozinhos já contam história.

Mas é quando os membros da Orquestra vão tomando seus lugares e começando a tirar, de cada objeto, diferentes sons, que a ida até o lugarejo se justifica por completo. A música leve e delicada soa como uma tarde mansa. É como se a natureza pudesse ser traduzida em ondas sonoras a partir de cada um dos instrumentos esculturais. Juntos, eles são uma verdadeira floresta. A flauta transversal, que é curvada e tem menos entradas de ar que a tradicional, faz as vezes dos pássaros. Os tambores podiam perfeitamente anunciar o galope de um ou outro bicho que por perto estivesse.

Foto: Foto: Helene Santos

A marimba lembra o atrito entre pedregulhos e as águas do rio, e quem a comanda é Octávio Almeida, de 13 anos, um dos seis membros atuais do Grupo Uirapuru. Na Orquestra desde os 11, o garoto já havia tido outros contatos com a música e estranhou quando viu a oportunidade de tocar instrumentos de cerâmica. "O jeito que eles são feitos, o som que às vezes muda de acordo com o clima. É um pouco diferente do que eu sou acostumado", explica o garoto, hoje entusiasmado com a realidade que se transformou em rotina. "O que me encanta mais são as músicas, os instrumentos, a comida, o pessoal... Resumindo, tudo. Aqui é um lugar bom de ficar, é bonito, isso já é o bastante pra desejar estar aqui", reforça.

Sonho musical

Os instrumentos em cerâmica lembram o som de líquido. Pelo menos é essa a impressão que Tércio Araripe, músico e criador da orquestra de barro, tem. "Nessa coisa do barro, você sente muito a presença dos quatro elementos e tem uma coisa na sonoridade dele que sempre me remete à água, seja qual for o instrumento. Pode ser a harpa, a flauta, um tambor", enumera.

Para além da conexão com o que há de mais natural, a proposta do grupo também tem influência ancestral, conforme o idealizador: "A experiência com os instrumentos de barro é muito interessante. Para começar, o material nos remete aos primórdios. No mundo inteiro há muitos deles feitos dessa matéria-prima. É uma coisa de cinco mil anos para atrás, são vários povos que trabalham com isso".

Foto: Foto: Helene Santos

Antes de pôr de pé o grupo, em 2009, o artista já tivera experiências musicais excêntricas envolvendo partes do meio ambiente que não costumam ter esse uso. Tércio ainda era criança quando começou a colocar em prática propostas nada usuais. "As músicas que eu gostava de ouvir eram de outros povos, canções orientais que eram tocadas com instrumentos não muito comuns aqui onde a gente mora. Como eu não tinha acesso àqueles itens, comecei a criar alguns que se assemelhassem aos instrumentos da Índia, da África, a coisas ancestrais e bem antigas".

A imaginação infantil foi o tempero necessário para que o desejo tomasse forma. Ao redor, tudo era possibilidade musical: "Eu experimentava com cabaça, bambu, pedaço de madeira, com o próprio barro e outros materiais que eu tinha disponível. A partir daí, comecei a criar instintivamente alguns instrumentos", relembra.

Ideia compartilhada

Quando teve acesso a um livro sobre instrumentos antigos, de povos do mundo inteiro, Tércio se surpreendeu. As páginas revelavam que tudo que ele havia inventado até então, na verdade, já existia de algum modo: "Foi quando eu vi que estava fazendo uma coisa além do pensamento, algo de intuição mesmo. Ao encontrar aquilo lá, vi como um caminho a seguir", diz.

Foto: Foto: Helene Santos

Seguiu. Inventando, tocando, ensinando e tirando som do barro. E, graças à persistência na busca por essa música distante do convencional, Edvando da Silva, de 19 anos, pode se divertir sobre os tambores. Hoje, ele é um dos membros mais antigos do grupo, estando há oito anos no Uirapuru, a primeira experiência do jovem, que almejava ser jogador de futebol, com a música. "Tá sendo legal. Eu nunca tinha pensado em ser músico, mas está dando certo", conta, explicando que ainda fica nervoso quando está no palco, mesmo sabendo que as apresentações da Orquestra costumam agradar. "No final, fica todo mundo aplaudindo. Tem canto em que pedem para tocar mais uma música também. A gente vai lá atrás, conversa e toca".

Tudo em família

Em meio às plateias mais entusiasmadas, sempre que possível, está a técnica em enfermagem Beane Almeida. Mãe de Octávio, ela pede ao professor Tércio para acompanhar a Orquestra em cada apresentação: "eu faço trocas no trabalho, se precisar, mas sempre dou a oportunidade para ele. Quando a gente senta ali na frente, presta atenção no que estão comentando, até para passar para eles o que precisa melhorar, o que eles têm que buscar fazer diferente, de alguma forma ajudando eles", diz.

O auxílio constante também vem das mãos da artesã Vera Lúcia, mãe de Edvando. Nascida e criada manipulando o barro, ela tira da matéria-prima o sustento de casa. Ver a cerâmica elevada a material de palco traz contentamento inexplicável. "Foi um orgulho, eu fiquei muito orgulhosa. Não ia pensar que o barro da gente ia fazer isso aí, não imaginava. É uma maravilha, bom demais", sorri.

Sobre o palco

A experiência de ver o entrelaçar dos itens de cerâmica com os talentos desenvolvidos no povoado de Moita Redonda pode ser vivida hoje e amanhã, em Fortaleza. O espetáculo "Passarinhada" - que já passou por Cascavel, Aquiraz, Nova Olinda e Crato - tem, como o título sugere, sonoplastia ligada ao canto das aves e composições feitas por Jorge Santa Rosa especialmente para os instrumentos de barro. A direção foi feita por Tércio Araripe e a regência fica por conta de Joel Rocha.

Adentrar o Teatro São José para assistir ao "Passarinhada", neste fim de semana, de certo, é oportunidade única. Há a técnica dos músicos, a condução do maestro e a plateia atenta. Os três toques da sineta vão acontecer, as cortinas se abrirão e o contexto será o mesmo da grande maioria dos espetáculos nesse formato, o que pode levar o espectador desavisado a crer que irá presenciar apenas mais um show. O contato com a descoberta sonora da cerâmica, no entanto, promete ir além de uma apresentação musical qualquer sendo, na verdade, um grande convite a belos voos pelo interior de si.

Serviço
Espetáculo Passarinhada

Sexta (14) e sábado (15), às 20h, no Teatro São José (Rua Rufino de Alencar, 299 - Centro). Classificação: livre. Entrada gratuita. Informações: (85) 3 105.1312

Assuntos Relacionados