Como as gangues se tornaram facções criminosas no Ceará? Assista minidocumentário sobre o tema
Esse também foi o tema do 40º episódio do Podcast Pauta Segura, sobre os bastidores da reportagem
Que as facções criminosas existem e atuam no Ceará é de conhecimento público e reconhecido pelo Estado. Mas como elas se instalaram? Em que contexto surgiram e como atuam? Como a Polícia reagiu? E qual o futuro dessas organizações criminosas? Essas são algumas das perguntas que o minidocumentário "Facções - A Origem", do Diário do Nordeste, tenta responder.
Esse também foi o tema do 40º episódio do Podcast Pauta Segura, publicado nesta segunda-feira (31). No programa, o editor Emerson Rodrigues e o repórter Messias Borges contaram os bastidores da reportagem que resultou no minidocumentário.
Sociólogo e professor do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luiz Fábio Paiva, explica, no vídeo e no podcast, o fenômeno chamado de facções criminosas. O estudioso tem quase 20 anos de pesquisa sobre dinâmicas criminais no Ceará, o que foi consolidado com o artigo "'Aqui não tem gangue, tem facção': as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil", publicado em 2019.
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As gangues precederam as facções, no Estado. "As gangues eram grupos que, a partir do final da década de 90, vão incorporar algumas dinâmicas relacionadas aos mercados ilegais, de drogas, dos enfrentamentos armados. Eram muito vinculados ao território. Tinham gangues muito tradicionais, que, em geral, tinham uma rivalidade com uma gangue de outro território", explica o sociólogo, no minidocumentário.
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Com o passar do tempo, essas gangues vão ganhando formato de quadrilha, sobretudo no início dos anos 2000. As quadrilhas vão incorporando os territórios, com atividades criminosas. Mas esse movimento era muito estático. Como a Polícia, o Estado se relacionavam com esses conflitos? Muitas vezes tratando como se fosse uma guerra entre bandidos, que eles vão se matando e fica por isso mesmo."
O impacto causado pelas facções
Até que houve uma transformação no crime organizado no Ceará. "O que acontece e se observa que se intensifica em 2015 é um processo de quase convencimento da ideia de que era preciso mudar, criar uma relação mais ampla, até com a possibilidade da formação de uma facção local, para que possa estar criando algo que é do Ceará e se relacionando com outros grupos, desenvolvendo um método", pontua Luiz Fábio Paiva.
O ano seguinte, 2016, foi marcado por uma "pacificação" entre as facções que chegaram ao Ceará, com foco no desenvolvimento do tráfico de drogas. Mas um racha entre facções nacionais (uma de origem paulista e a outra, carioca) repercutiu no território cearense: iniciou-se uma "guerra" entre os grupos criminosos, que levaram ao recorde de 5.133 homicídios em um ano, 2017.
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A população sentiu o impacto da atuação das facções de diversas formas, principalmente na periferia. "Existia uma dinâmica criminal em Fortaleza, em que grupos de jovens faziam pequenos furtos e assaltos, dentro das comunidades. Isso foi proibido. Houve muitas mortes de quem desobedeceu essa ordem", exemplifica o sociólogo.
Houve uma dinâmica, em determinado momento, dessa identificação. Houve uma exposição de meninas, sendo assassinadas ou decretadas, nas redes sociais, porque elas começaram a ter que mostrar lealdade (à facção). Algo que também se tornou comum foi a expulsão de moradores de suas residências."
O minidocumentário "Facções - A Origem" percorreu lugares de Fortaleza onde ocorreram expulsões de moradores, por facções, nos últimos anos: a comunidade da Babilônia, no bairro Barroso; a comunidade do Gereba, no Passaré; o Residencial José Euclides Ferreira Gomes, no Jangurussu; e o Residencial Miguel Arraes, na Granja Lisboa. Apesar da instalação de bases fixas da Polícia Militar do Ceará (PMCE) nas localidades, ainda há pichações das facções e denúncias de expulsões.
O medo se espalhou por todo o Estado, com dezenas de chacinas e séries de ataques criminosos a bens públicos e privados, nos anos seguintes. "Teve a Chacina das Dunas, no Benfica, até a culminância daquela grande chacina nas Cajazeiras, com 14 pessoas sendo mortas, inclusive pessoas que não são associadas ao crime. Ficou aquela sensação de que a coisa está saindo do controle, afeta a cidade toda", considera Paiva.
Como o Estado reagiu
O Estado precisou reagir, com a prisão de diversos chefes das facções criminosas e envio de muitos deles a presídios federais de segurança máxima, endurecimento do regime no Sistema Penitenciário e aumento de policiamento ostensivo - inclusive com maior presença nas áreas mais delicadas.
"Ali, o Estado vai tentando tomar conta da situação. Na minha leitura, já com um déficit. Você vai tentando reagir, com muita dificuldade. Porque a facção não é só um fenômeno criminal, é um fenômeno social. Você tá prendendo as pessoas, mas não tá conseguindo reverter a ideia que foi criada, a maneira como isso alcançou e afetou as pessoas", considera o sociólogo.
Em 2021 e 2022, o Estado conseguiu dois anos seguidos de redução no número de homicídios. "Você vai vendo um movimento de mais acomodação (no embate entre as facções). As facções não deixaram de existir. Foi feito um grande número de prisões, começou a se atacar lideranças, pessoas-chave desses grupos, criar instâncias especializadas para enfrentamento do crime organizado".
"Eu consigo tirar determinadas peças do tabuleiro, mas o fenômeno e a sua extensão, de fato, o Estado ainda não conseguiu alcançar. Porque você precisaria reestruturar, de maneira muito ampla, o tecido social, para enfrentar as condições sociais que possibilitaram a existência desse tipo de fenômeno no nosso Estado, é um fenômeno nacional", conclui Paiva.