"Lembro dos aniversários que ela tava junto. Lembro que ela cuidava de mim". A memória que não se apaga é de um menino hoje com 11 anos, e que aos sete viu a mãe ser morta pelo próprio pai. Maria Rosimeire de Santana brincava com os dois filhos na calçada de casa, em Juazeiro do Norte. Naquela terça-feira, 2 de abril de 2019, Severo Manoel Dias Neto, cumpriu a promessa que já fazia há algum tempo, desde o término no casamento: "eu ainda vou te pegar".
Não há estatísticas oficiais que contabilizem quantos 'órfãos do feminicídio' vivem no Ceará. Sem número, sem atenção, sem políticas públicas que cheguem a essas crianças, forçadas a aprender a viver sem os pais depois de uma barbárie.
Sem pai e sem mãe. Como ficam aqueles expostos à violência, que precisam seguir sem os que "eram sua base"? O Diário do Nordeste traz nesta segunda-feira (21) as lutas das crianças e das famílias que buscam na rotina, dentro de casa, reconstruir um lar.
SEM ESTATÍSTICAS
Em fevereiro de 2020, menos de um ano após a morte de Maria Rosimeire, o Diário do Nordeste foi a Juazeiro do Norte conhecer a criança (de identidade preservada) e a família. Tímido, se agarrava à tia e a avó ao ouvir que estávamos ali para contar a história dele e da mãe.
Falou pouco. Ainda não conseguia conectar frases e ideias pensando em tudo que viveu 10 meses antes. Passados três anos e meio do primeiro contato, a reportagem procurou saber como ele e os parentes seguiram, depois que Severo foi condenado a cumprir 23 anos de prisão.
O menino agora mora com a avó e um primo. A família de Maria Rosimeire segue sem um parecer sobre a guarda da criança, que pediu à Justiça para ficar com a avó.
Em paralelo, o Diário do Nordeste apurou que o caso da criança de 11 anos não consta enquanto estatística. Não existem dados oficiais do Governo do Ceará que indiquem a quantidade de 'órfãos dos feminicídios'.
A reportagem solicitou os números e entrevista sobre o tema à Secretaria das Mulheres do Ceará, que não aconteceu. Por nota, a Pasta se posicionou dizendo "que está em fase de formulação estudos para estruturar um projeto voltado para a temática".
"A secretária das Mulheres do Ceará, Jade Romero, conheceu de perto, através de visita institucional, o programa de São Paulo conhecido como "Auxílio Ampara", para prestar assistência às crianças e adolescentes, órfãos de mulheres vítimas de feminicídio. Cabe destacar que o projeto em estudo no Ceará busca o trabalho em conjunto de diferentes órgãos públicos para fortalecer a rede de apoio e suporte às famílias das vítimas, garantindo o direito à assistência social, saúde, alimentação, moradia, educação e assistência jurídica".
'ELA ERA TUDO PRA MIM'
A criança fala da falta que sente da mãe e lembra do dia em que ela foi morta: "a bala passou perto da gente". Ele, a mãe, o irmão, vizinhos estavam na calçada quando Severo chegou.
"Eu tava brincando com os filhos da amiga dela, que me chamaram. Tava sentado no batente. Minha vó quando viu ele avisou a ela, ela não escutou. Minha vó falou mais alto: "ó quem vem ali". Ela correu e corremo atrás, eu e meu irmão. Ela entrou... ele entrou. Ele atirou dentro do quarto. Minha mãe protegia eu e meu irmão pra bala não pegar na gente. A bala passou perto da gente" (sic)
"Ela era muito boa, cuidava de mim. Ia me deixar no colégio e esperava até eu entrar. Depois, ela ia me buscar. Esperava o ônibus pra gente ir embora. Nunca mais eu quero ver ele, não gosto, ele matou a minha mãe e isso é errado", conta.
FEMINICÍDIOS
No mesmo ano em que Rosimeire foi morta, mais 33 mulheres também foram vítimas de feminicídios no Ceará. Em 2020, outros 27 registros. Em 2021, 31. No ano passado, 28. Agora, em 2023, até o mês de julho, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) já contabiliza 28 mulheres assassinadas, em razão de gênero.
Desde 2022, a SSPDS deixou de divulgar nomes completos das vítimas, o que dificulta o trabalho da imprensa de acompanhamento caso a caso.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também destaca a necessidade de números oficiais sobre órfãos dos feminicídios. Isabela Sobral, supervisora do núcleo de dados do Fórum, diz que não há sequer levantamento nacional a respeito.
"O feminicídio não começa e nem termina 'só' no feminicídio, tem muito mais por trás. É um assunto que cada vez mais demanda interesse e muitos projetos buscam abordar a questão. É importante existirem diretrizes claras nesses casos", pontua Isabela.