PEC do Aborto: como a retomada do tema busca unir a direita em meio à divisão do bolsonarismo
Ex-presidente foi indiciado pela Polícia Federal no inquérito que investiga suspeita de tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022
A restrição ao aborto legal no Brasil — uma das bandeiras defendidas pela ala conservadora do Congresso Nacional — é cerne de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, chamada de PEC do Aborto. A proposta teve a tramitação acelerada em novembro na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na Câmara dos Deputados, onde foi aprovada no último dia 27. Parada desde junho — mesmo período em que a direita sofreu derrota em outra proposta que tratava de aborto, a chamada PL do Estupro —, a retomada acontece logo depois do fim das eleições municipais.
Momento em que "a direita ficou sem uma pauta para aglutinar o debate", pontua a cientista política e professora da Universidade Federal de Alagoas, Luciana Santana. "E o aborto, a gente sabe, é uma pauta que mobiliza a sociedade brasileira". Com o ex-presidente inelegível para a disputa eleitoral de 2026, diversos nomes do campo direitista buscam protagonismo eleitoral, causando divisão entre partidos de oposição ao governo Lula.
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"Nada na política é coincidência", acrescenta a cientista política Priscila Lapa. Ela fala especificamente sobre o fato da discussão da PEC do Aborto ter coincidido com outro marco para a direita: o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pela Polícia Federal no inquérito que investiga a tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
"E o Congresso, de composição majoritariamente conservadora, fica realmente no aguardo de oportunidades de pautar esse tema (aborto), trazer esse tema público para a agenda, e tentar ir construindo uma maioria de opinião pública que possa respaldar uma mudança normativa de proposição dessa agenda mais conservadora", defende.
"É óbvio que se compete a atenção, do ponto de vista da cobertura e do debate público. Mas é muito mais uma estratégia para mobilizar a base, para recrudescer o seu apoio, para lembrar, num cenário em que o seu grupo está sendo tão descredibilizado, tão desconstruído — do ponto de vista político e da cobertura — do porquê que essas pessoas aderiram a esse projeto", argumenta Monalisa Soares, coordenadora do Laboratório de Estudos Política, Eleições e Mídia (Lepem/UFC).
Engajamento da base eleitoral
"A direita queria ter uma oportunidade de voltar a ter um protagonismo e abafar um pouco esse tema (do indiciamento) na pauta nacional", resume Luciana Santana. E uma tema como aborto, completa Priscila Lapa, é uma "carta na mão" das lideranças políticas conservadoras para ser acionada em diversos momentos. "Trazer esse tema à tona é uma maneira de você manter a base engajada, das pessoas saberem que o bolsonarismo é maior do que Bolsonaro", cita.
Mas não só isso. Mobilizar a atenção em torno desse debate é também uma forma de mostrar a força do próprio Bolsonaro como uma 'voz' dessa parcela do eleitorado.
"É um efeito de reforço a Bolsonaro, no momento em que ele precisa desse reforço, de mostrar 'eu não sou uma voz sozinha, eu não estou solitário, eu não ajo só por mim, eu tenho reverberação do que eu penso, do que eu falo, do que eu ajo na sociedade'. E isso pode tentar funcionar, sim, como uma camada de fortalecimento de Bolsonaro enquanto representante dessas ideias bolsonaristas. Pautar a PEC do aborto, pautar esse tipo de tema é sempre importante para alimentar o bolsonarismo".
Monalisa Soares ressalta que o tema do aborto "remonta a todo o léxico do discurso conservador de direita brasileira, que aciona a ideia de bem contra o mal".
"Ainda que se tenha todo um ambiente para desconstruir essas lideranças políticas, é importante lembrar que projeto elas representam e por quê as pessoas os escolheram. É muito mais para aglutinar a base e fazer essa memória, lembrar porque essas pessoas apoiaram esses grupos: porque eles são os únicos que defenderão, na narrativa e, na fala deles, estes ditos valores", detalha.
"E é importante destacar: essa não é uma pauta do Brasil. Esse movimento é um movimento mundial. A pauta em torno da discussão sobre o aborto e esses elementos percorrem toda a atuação política desse campo político e desse léxico discursivo deles na América Latina, nos Estados Unidos".
Apesar de ser uma boa ferramenta de mobilização, completa, não é provável que a estratégia seja usada como forma de não perder apoio. "Essa base não é ameaçada por essas denúncias, inclusive porque já há toda uma narrativa construída de uma perseguição, que isso é mentira, que essas coisas não aconteceram", diz.
"O eleitorado que descola de Bolsonaro em relação a essa questão do golpe é aquele eleitorado que já tendia a não aderir muito às ideias bolsonaristas. Na média, o eleitor bolsonarista é simpático à ditadura, é simpático à ideia de que, em nome da ordem, os militares podem vir a prestar um serviço ao país e refrear a desordem institucional", concorda Priscila Lapa.
Mudanças no comando do Congresso Nacional
A aprovação na CCJ é apenas o primeiro passo na tramitação dentro da Câmara dos Deputados. A PEC precisa agora ser analisada em comissão especial, cuja instalação é de responsabilidade da presidência da Casa, cujo comando deve mudar a partir de fevereiro do próximo ano.
Com o mandato de Arthur Lira (PP-AL) chegando ao fim, o nome que reúne o maior número de apoios é o de Hugo Motta (Republicanos-PB). "Ele é muito mais do perfil do diálogo, da moderação, do que está pautando esses temas de cunho mais ideológico e direcionado para determinadas bancadas", afirma Santana.
Se a perspectiva para a discussão do tema em 2025 não é positiva, o debate da PEC ainda nesse ano também não deve ter avanço. "Estamos na finalização do ano legislativo, as prioridades agora têm sido muito mais relativas ao orçamento, a estas medidas econômicas e a ver como é que os agentes vão se organizar com o retorno no início do ano que vem", explica Monalisa Soares.
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Contudo, o fim do mandato do presidente — e por consequência, de toda a Mesa Diretora — da Câmara dos Deputados, com uma nova eleição para os cargos em fevereiro de 2025, indica também que existirá uma mudança na composição das comissões temáticas da Casa, assim como do comando desses colegiados, incluindo a CCJ.
Atualmente, a comissão é presidida por Caroline de Toni (PL-SC), deputada federal bolsonarista. Na condição de presidente da CCJ, ela é a responsável por pautar os projetos de lei que serão analisados pelo colegiado. Com a possibilidade de mudança no comando da CCJ, a PEC do Aborto poderia ficar parada, sem ser analisada pelos deputados federais.
"(A PEC) é parte, de fato, consistente de uma atuação deste grupo em nome dessas pautas conservadoras mais regressivas e que têm sido tentadas ao longo deste ano", reforça Soares. "Enquanto estão na oposição, (...) a mobilização no Congresso passa a ser intensa como forma também de demarcar a sua posição ao governo".