Legislativo Judiciário Executivo

Membros do MPCE receberam até R$ 500 mil acima do teto salarial em 2024, mostra levantamento

Pesquisa da Transparência Brasil investigou como promotores e procuradores brasileiros conseguem “furar” o teto remuneratório previsto na Constituição Federal

Escrito por
Igor Cavalcante igor.cavalcante@svm.com.br
Fachada do prédio do MPCE. O local tem muro de tijolos brancos, vidraça verdes azulada e uma rampa
Legenda: Procuradores e promotores cearenses receberam montantes acima do teto constitucional
Foto: Divulgação/MPCE

Um relatório da Transparência Brasil revelou que todos os membros do Ministério Público do Ceará (MPCE) receberam salário bruto acima do teto constitucional ao longo de 2024. O estudo apontou que o pagamento de verbas extras somou R$ 93 milhões no Estado, seguindo um padrão nacional de supersalários.

A pesquisa analisou dados de 25 unidades do Ministério Público no Brasil e concluiu que 98% dos procuradores e promotores receberam rendimentos superiores ao limite legal, totalizando R$ 2,3 bilhões em valores “extrateto”. O MPCE aparece entre as dez unidades da instituição em que todos os membros extrapolaram o limite máximo.

O estudo indicou que, em 2024, 87% dos membros do MPCE receberam entre R$ 100 mil e R$ 500 mil acima do teto, enquanto 13% receberam até R$ 100 mil extras no ano.

Em 2025, de acordo com apuração exclusiva do PontoPoder, a situação se agravou. Entre janeiro e outubro, os promotores e procuradores cearenses receberam R$ 335,2 milhões em rendimentos brutos, dos quais R$ 142,4 milhões excedem o limite constitucional.

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Supersalários no Ceará

Entre o ano passado e este ano, o subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) passou de R$ 44 mil para R$ 46,3 mil. Conforme prevê a Constituição Federal, os valores pagos aos magistrados da mais alta Corte do País fixam o teto remuneratório nacional, assim, nenhum servidor público pode receber montantes superiores. Esse limite se aplica aos salários, gratificações e outras vantagens pecuniárias, no entanto, ressalva verbas de natureza indenizatória, como auxílio-alimentação e diárias.

A partir do subsídio pago aos ministros, há um “subteto” aplicável aos servidores cearenses — incluindo membros do MPCE — que corresponde a 90,25% da remuneração dos integrantes do STF. Portanto, atualmente, o subteto no Ceará é de R$ 41.845,49.

Contudo, na prática, o que efetivamente é pago aos promotores e procuradores é significativamente acima disso. O rendimento médio mensal dos membros do MPCE subiu de R$ 61,4 mil, ao longo de todo o ano passado, para R$ 72,4 mil, considerando o período de janeiro a outubro de 2025, um montante que ultrapassa o subteto em mais de 70%.

Para efeito de comparação, o rendimento dos membros do Ministério Público do Ceará equivale a quase 50 vezes o valor do salário mínimo no Brasil.

Para os cálculos, o PontoPoder não incluiu o recebimento do 13º salário e o adicional de férias dos servidores, que injetaram R$ 16,8 milhões adicionais na conta dos membros do MPCE em 2025. O benefício se torna ainda mais expressivo porque os promotores e procuradores têm 60 dias de férias anuais, o que dobra o adicional pago.

Privilégios corroem a confiança pública

A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, avalia que os supersalários têm impacto direto na imagem das instituições e comprometem a percepção que a população tem sobre o serviço público “em um momento em que a democracia já não está em alta”.

“O impacto simbólico é muito grande no comprometimento da confiança da sociedade nesse órgão e no Judiciário. Fica a percepção de que eles estão mais interessados em garantir benefícios próprios do que em prestar serviço público e defender o interesse coletivo”
Marina Atoji
Diretora de programas da Transparência Brasil

Atoji explica que a principal brecha que permite ganhos acima do teto é o pagamento dos benefícios indenizatórios. 

“Há dois tipos de pagamentos para membros do Ministério Público, são aqueles remuneratórios, como salário e 13º — que estão sujeitos ao teto constitucional —, e tem os indenizatórios, que supostamente servem para ressarcir os membros do MP por gastos em decorrência da função, neste caso, não estão sujeitos ao teto”, afirmou.

Segundo ela, a pesquisa da Transparência Brasil expôs como essa manobra tem sido feita de forma indiscriminada. 

“Um Ministério Público pode simplesmente baixar uma resolução criando um benefício e classificá-lo como indenizatório, sem precisar passar pelo Legislativo ou demonstrar impacto orçamentário. O próprio CNMP precisa parar de validar essas manobras e criar benefícios que valem para todos”, defende a pesquisadora.

Verbas indenizatórias impulsionam rendimento de membros do MPCE

O MPCE e os demais nove estados aparecem no rol daqueles em que todos os membros recebem "extrateto". A lista tem ainda Alagoas, Mato Grosso, Goiás, Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rondônia e Acre. Além disso, no Amapá, Pernambuco, Sergipe e Espírito Santo, apenas um membro não excedeu o teto. 

Entre os cearenses, também são as verbas indenizatórias que inflam os rendimentos dos membros do Ministério Público. No levantamento feito pelo PontoPoder, a partir de dados da folha de pagamento dos últimos dez meses, aparece um promotor que recebeu, em um único mês, R$ 91,8 mil em indenizações. Ele teve ainda uma remuneração de R$ 39,7 mil. Somado a outros pagamentos, o rendimento bruto dele naquele mês foi de R$ 131,5 mil.

No mesmo período, o padrão se repetiu com quatro promotores e um procurador, remunerados com salários variando entre R$ 35 mil e R$ 41 mil e receberam mais de R$ 80 mil em verbas indenizatórias — além de outros benefícios. Todos superaram a marca de R$ 120 mil em rendimento mensal; um deles chegou a R$ 131,3 mil.

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Conclusão do relatório

O relatório da Transparência Brasil classifica o cenário nacional como “afronta à moralidade e racionalidade no uso dos recursos públicos”.

"Se torna especialmente grave ao considerarmos o papel originário do Ministério Público como a instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, da proteção do patrimônio público e do combate à corrupção", diz o documento.

Os principais "penduricalhos" sem detalhamento identificados pela pesquisa:

  • Indenizações;
  • Verbas remuneratórias legais ou judiciais;
  • Indenização por licença não gozada;
  • Outras verbas indenizatórias;
  • Conversões em pecúnia.

“É lamentável que o MP atue de forma a institucionalizar ilegalidades e conceder pagamentos recorrentes acima do teto constitucional a 98% de seus membros. Igualmente censurável é a refratariedade do MP à transparência pública, tanto na exigência de identificação prévia do usuário para acessar os contracheques quanto na supressão, por alguns órgãos, da identificação nominal dos vencimentos. Esse avanço na opacidade visa a interdição do debate público sobre os supersalários, em flagrante erosão aos mecanismos de controle social”, afirma o documento.

A organização também critica o Projeto de Lei 2.721/2021, em tramitação no Senado, por ampliar exceções ao teto constitucional e permitir que benefícios hoje limitados sejam convertidos em indenizações.

Entre as medidas defendidas pela entidade estão:

  • Definição clara, específica, racional e restritiva dos benefícios considerados indenizatórios;
  • Extinção de 60 dias de férias anuais remuneradas;
  • Fim da discricionariedade do MP e do Judiciário de criar benefícios indenizatórios por decisão administrativa interna ou por meio de resoluções de seus Conselhos Superiores;
  • Extinção das hipóteses de concessão de pagamentos indenizatórios por acúmulo de serviço ou jurisdição em caráter geral e permanente (...) limitados pelo teto constitucional e não excedendo ⅓ da remuneração base do servidor, além de não serem passíveis de conversão em folga.
  • Proibição de cadastro prévio para acesso a dados salariais de servidores.

“E temos a PEC da reforma administrativa, que é uma oportunidade de que haja a limitação do que pode ser considerado indenizatório”, acrescentou Marina Atoji. 

Metodologia da pesquisa

Para o levantamento, a Transparência Brasil realizou um processo de padronização de rubricas com cerca de 4 mil nomenclaturas de benefícios do sistema de Justiça, agrupadas em 36 categorias gerais. Mesmo com esse esforço, o estudo constatou um elevado nível de opacidade. Um montante de R$ 1,4 bilhão (31%) em pagamentos adicionais não têm descrição clara sobre a origem ou natureza das verbas.

O PontoPoder acionou a assessoria de imprensa do MPCE e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que confirmaram o recebimento da demanda, mas não houve resposta até o momento.

 

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