Legislativo Judiciário Executivo

Do lockdown ao passaporte, ações de combate à Covid seguem como cabo de guerra político

Entenda como ações de combate à pandemia são usadas politicamente e como devem afetar as eleições de 2022

Escrito por Luana Severo , luana.severo@svm.com.br
Lockdown em Fortaleza
Legenda: Lockdown em Fortaleza gerou protesto de opositores que ressaltavam prejuízo ao comércio
Foto: Arquivo

Vacina, máscara, distanciamento social, bloqueio de fronteiras: quase dois anos desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, o combo que comprovadamente previne a doença provocada pelo coronavírus continua sendo usado por alguns grupos políticos como “cabo de guerra”.

De um lado, estão os que se posicionam contra as medidas, alegando que ferem a liberdade individual ou que comprometem a economia. De outro, os favoráveis, que se alinham a normas técnicas e à gravidade do problema sanitário para reconhecer o papel do Estado no controle da situação. 

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Em ambas as frentes, há fortes interesses eleitorais, especialmente entre senadores, deputados, governadores e o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PL) — grupo de representantes que deve ser renovado nas eleições do próximo ano. 

A pandemia deve, a propósito, ser a pauta central do debate no pleito de 2022, segundo o cientista político Raulino Pessoa Júnior, professor doutor do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (Uece). 

Para Raulino, as eleições para os governos estaduais, que têm sido os principais pontos de conflito com o Governo Federal durante a pandemia, devem trazer à tona temas como negacionismo, compra e produção nacional de vacinas, lockdown, obrigatoriedade do uso de máscara, proibição de aglomerações e cobrança do passaporte de vacina para acesso a espaços públicos e privados. 

O especialista entende ainda que, na contramão de países que reviram seus posicionamentos iniciais sobre a pandemia, Bolsonaro manteve um discurso averso às medidas de prevenção contra a Covid-19 que acabou por imprimir uma nova “marca” ao bolsonarismo e deve ser explorado por seus apoiadores em nível estadual. “Essa ideia de que as ações são contra a liberdade das pessoas e a favor do fechamento do comércio, tudo isso vem à tona”, projeta Raulino. 

Peso eleitoral

Para o cientista político da Universidade Federal do Ceará, Cleyton Monte, o assunto só deverá ganhar força nas eleições caso a pandemia ganhe um novo fôlego até lá. Enquanto isso não ocorre, e a vacinação avança entre a população, novas pautas ganham força para o debate eleitoral, como a economia.

"No geral o brasileiro acredita na vacina. Por mais que um deputado ou vereador tenha feito essa defesa no Congresso ou na imprensa, é muito arriscado para ele chegar para um público maior e fazer crítica da vacina com uma postura negacionista", explica o pesquisador.

Segundo Monte, se a pandemia não avançar até o meio do ano que vem, o tema, que é alvo de queda de braço ideológico, vai ficar em nível secundário em relação às questões econômicas.

De acordo com o professor, o rumo do debate adotado pelos parlamentares vai ser construído na medida em que os temas mais importantes são colocados na roda de dicussão. "A liderança política caminha conforme o seu eleitorado", conclui.

A 'nova marca' do bolsonarismo nos estados 


Recentemente, manifestantes contrários ao passaporte de vacina — documento que comprova a conclusão do esquema vacinal contra a Covid-19 — tentaram invadir a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) para acompanhar a votação de um projeto de lei que proíbe a discriminação de pessoas que se recusem a tomar o imunizante contra a doença e que impede que o passaporte seja cobrado em qualquer município do estado. Manifestação semelhante já havia acontecido antes em frente à Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), após o Governo do Ceará instituir a exigência do documento.

Um dos principais apoiadores estaduais de Bolsonaro, o deputado André Fernandes (Republicanos) chegou a apresentar, também recentemente, à Assembleia Legislativa, um projeto de lei que desobriga o uso de máscara por pessoas vacinadas no Estado, alegando justamente a questão da “liberdade individual” citada por Raulino. Esse projeto, no entanto, foi retirado de pauta pelo próprio parlamentar. Sua assessoria não informou por qual motivo.

Manifestantes contrários à exigência do passaporte de vacina contra a Covid-19.
Legenda: Contrários à exigência do passaporte de vacina no Ceará foram se manifestar em frente à Câmara Municipal de Fortaleza.
Foto: Felipe Azevedo

Na CMFor, a tramitação de um projeto de lei do prefeito José Sarto (PDT) para exigir a cobrança do passaporte em repartições e órgãos públicos foi suspensa nesta semana, no que foi visto como uma vitória da bancada bolsonarista, que sustenta o discurso de que vacinados transmitem o coronavírus da mesma forma que não vacinados.

Muitas dessas movimentações no legislativo estadual são puxadas por posturas e declarações do presidente da República.

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Bolsonaro, que, no início da pandemia, chamava a Covid-19 de “gripezinha”, e que soltou um "e daí?” quando o País chegou a cinco mil mortos pela doença — atualmente, já são mais de 617 mil —, chama, hoje, o passaporte de vacina, por exemplo, de “coleira que querem colocar no povo brasileiro”.  

Mas, apesar do posicionamento do presidente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última sexta-feira (11) que o passaporte sanitário deve ser obrigatório pelo menos para quem entrar no País por voos internacionais

Controle insuficiente de fronteiras 


Diante da postura "confusa" do Governo Federal no combate à Covid-19 e de desentendimentos jurídicos e políticos constantes em âmbito nacional, o controle da pandemia nas fronteiras brasileiras tem sido insuficiente, acredita o cientista-chefe e coordenador do Centro de Inteligência em Saúde da Escola de Saúde Pública (ESP-CE), José Xavier Neto. 

“Nosso controle de fronteiras foi pífio, absolutamente ineficaz. Atuamos como amadores. Ou, pior, talvez como ignorantes”, declara o especialista. Segundo ele, enquanto outros países fecharam suas fronteiras para controlar os casos da doença, o Brasil continuou de portas abertas, facilitando a entrada do vírus e de suas variantes. “O Estado (do Ceará) tentou com muito custo (bloquear fronteiras). Enfrentando um risco muito grande, político e judicial”, lembra Xavier. 

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Confusão que atrapalha a ciência 


Todo esse imbróglio acaba por mais confundir a população do que a informar diante do problema sanitário mundial. Para o cientista político Raulino Pessoa, o ideal era que o País adotasse um discurso centralizado, mais consensual, pelo menos em torno das medidas comprovadamente eficazes contra a doença. Até para, também, evitar o compartilhamento massivo de informações mentirosas sobre a pandemia.  

A imagem mostra Bolsonaro colocando a máscara de forma errada, sobre os olhos.
Legenda: O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, várias vezes minimizou a pandemia de Covid-19, a qual chamava de "gripezinha". Ele também alega não ter ainda se vacinado contra a doença.
Foto: Adriano Machado/Reuters

“Claro que a gente nunca chegaria a um consenso”, reconhece o pesquisador, “mas uma política pública de saúde pra conter uma pandemia poderia existir”, defende. 

Não haveria nem a necessidade de se “recriar a roda”, diz Xavier. Segundo ele, além das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem um Regulamento Sanitário Internacional aprovado em 2005 pelo Congresso Nacional que antecipa as respostas que os estados e a União devem dar em contextos semelhantes de epidemias e pandemias. 

“Não só o País e muitas de suas elites médicas e epidemiológicas falharam em reconhecer o papel do controle de fronteiras como ainda tiveram um pecado subsequente de não organizar de forma efetiva o rastreamento de casos e contatos, outra medida fundamental para o enfrentamento de pandemias e que também está prevista no regimento sanitário internacional. Foi uma falha grande da nossa elite que não conseguiu se impor”, acredita. 

Decisões políticas 'corajosas'


À parte a desordem que atravessou as ações contra a Covid-19 na União e em muitos estados da federação, Xavier destaca articulações políticas "corajosas" que acredita terem feito diferença no enfrentamento à pandemia.

Foram decisões, segundo ele, como a do Governo do Ceará, de endurecer regras de distanciamento e isolamento social de acordo com o cenário da Covid-19 no Estado, de tentar controlar a entrada de passageiros nos aeroportos, de não apoiar festas que promovem aglomeração, como Réveillon e Carnaval, e de exigir o passaporte de vacina em locais públicos e privados.

A imagem mostra o governador do Ceará, Camilo Santana, falando para a câmera.
Legenda: O governador do Ceará, Camilo Santana, atualiza os decretos de distanciamento social conforme o cenário da pandemia no Estado.
Foto: Reprodução/Facebook

Além disso, o cientista-chefe ressalta o impacto positivo da decisão do Governo de São Paulo de, em janeiro deste ano, aplicar as primeiras doses da CoronaVac, vacina que, hoje, já é produzida nacionalmente pelo Instituto Butantan.

"Um erro particularmente cruel, digno de investigação (que foi feita pela CPI da Covid-19, no Senado Federal), é a omissão brasileira em se preparar para comprar as vacinas, que estão obtendo um êxito enorme para não estarmos hoje numa terceira onda. A gente não tem terceira onda no Brasil, embora tenha ameaça, graças à vacinação", pontua Xavier.

A imagem mostra a sala onde se reuniam os senadores da CPI da Covid-19.
Legenda: Por seis meses, a CPI da Covid-19 investigou suspeitas de corrupção na compra nacional de vacinas contra a Covid-19.
Foto: Agência Senado

Nova onda de polarização


Essas decisões vão continuar norteando debates em 2022 e movimentando capital político, num ano em que o Brasil deve enfrentar uma nova onda de polarização.

"Pelo menos em torno do bolsonarismo ou de alguns grupos, acredito que a (polarização) vai se manter", aposta Raulino, que, sobre o atual Governo Federal e a conjuntura de desordem e desinformação no combate à Covid-19, acrescenta: "Só tem possibilidade de prosperar no caos. Se o caos reinar, ele (Governo) consegue avançar".

 

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