Baú da Política: Ciro Gomes foi eleito prefeito de Fortaleza sem o próprio voto nas eleições de 1988
Então deputado estadual, Ciro Gomes disputou e venceu o pleito para prefeito da Capital, mas o título de eleitor era de Sobral, seu berço político
Eleito prefeito de Fortaleza em 15 de novembro de 1988, o então deputado estadual Ciro Gomes (à época, PMDB) recebeu 179.274 votos nas urnas. Nessa multidão de eleitores, no entanto, não está o próprio Ciro. Apesar de ter concorrido — e vencido — na Capital, o primogênito dos irmãos Ferreira Gomes era eleitor de Sobral, seu berço político. Naquele pleito, inclusive, seu irmão, Cid Gomes, estreou na política — com uma derrota — como candidato a vice-prefeito dos sobralenses.
O Baú da Política voltou no tempo para resgatar a história do imbróglio jurídico que permitiu a Ciro Gomes ser eleitor de um município e ser eleito prefeito de outro. O episódio, detalhadamente registrado em reportagens da época do Diário do Nordeste, redefiniu a carreira do então deputado estadual, que conseguiu ser alçado — com a benção do então governador Tasso Jereissati — ao cargo no Executivo e se consolidou na política, virando governador do Ceará, ministro e disputando a Presidência da República.
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As eleições de 1988 ocorreram enquanto o Brasil se reestruturava após a ditadura militar. Em Brasília, a Assembleia Constituinte estava a pleno vapor redigindo a nova Constituição Federal. No Ceará, Tasso surfava na boa avaliação de seu mandato e liderava o processo de “mudancismo” no Estado, prometendo dar um fim ao clientelismo. Em Fortaleza, Maria Luíza Fontenele, primeira mulher a ser eleita prefeita de uma capital, enfrentava crises partidárias e administrativas, ficando sem apoio até de correligionários.
Como Ciro virou candidato a prefeito de Fortaleza?
Em meio a essa conjuntura, Ciro Gomes, aos 30 anos, ganhou destaque rapidamente por seu desempenho em debates. Filho do ex-prefeito de Sobral, José Euclides Ferreira Gomes Júnior, ele começou a carreira política já como deputado estadual no Ceará, cargo que exerceu durante dois mandatos. Em 1988, o parlamentar era líder do Governo Tasso na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
O deputado estadual agradou o então governador, que resolveu lançá-lo como seu candidato à Prefeitura de Fortaleza. A decisão, no entanto, só foi tomada no início de 1988, o que inviabilizava a candidatura. Ciro tinha domicílio eleitoral em Sobral e teria que transferir para a Capital se quisesse concorrer, mas a Legislação Eleitoral vigente na época (pré-Constituição de 1988) exigia um prazo mínimo de um ano após a transferência para autorizar a candidatura.
A eleição de 1988 estava marcada para 15 de novembro, portanto, o político não poderia sequer concorrer. Contudo, os peemedebistas tinham uma alternativa. Eles contavam que a Constituição de 1988 passaria a vigorar antes do pleito eleitoral e nela já haveria a sinalização de que esse prazo mínimo de transferência do domicílio eleitoral passaria a ser de 120 dias.
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De Sobral a Fortaleza
Conforme relatou uma edição do Diário do Nordeste de 12 de julho de 1988 — a cinco dias da data limite para transferência —, Ciro respondia com ironia sobre seu domicílio eleitoral. "Já estou em Itapajé", brincava, fazendo referência ao município que está entre Sobral e Fortaleza. Para aumentar a pressão, em Sobral havia uma dificuldade em costurar a chapa, com aliados pressionando para que ele fosse o candidato.
Os caciques do PMDB começaram a trabalhar sobre duas estratégias. A primeira era o lançamento da candidatura de uma pessoa disposta a renunciar logo depois de promulgada a Constituição, garantindo a indicação do nome de Ciro pela direção partidária, como estava previsto na legislação.
O “plano B”, no entanto, foi o que acabou sendo colocado em prática e viabilizou a candidatura, que tinha como vice-prefeito Juraci Magalhães.
“A segunda opção é a de apresentar o nome de Ciro Gomes, mesmo sabendo da impugnação que sofrerá pela Justiça Eleitoral. O pedido de registro será feito no último dia do prazo: 17 de agosto. Só no início de setembro, até o dia 6, o juiz eleitoral deverá negar o registro, com base na Lei que exige o domicílio eleitoral de um ano. Desta decisão do juiz eleitoral, a direção do partido recorrerá ao Tribunal Regional Eleitoral. Se até a decisão do Tribunal Regional Eleitoral não houver sido promulgada a Constituição, ainda o PMDB seguiria recorrendo ao Tribunal Superior Eleitoral”
Nem título de eleitor, nem registro de candidatura
A situação de Ciro era mais complexa. Além do imbróglio jurídico, da corrida contra o relógio e das incertezas sobre as novas regras constitucionais, seu pedido de transferência de título eleitoral de Sobral para Fortaleza foi deferido em 18 de maio — quase oito meses antes da eleição. No entanto, segundo os advogados do deputado, o processo foi incluído por engano nas solicitações de transferências baixadas "em diligência" (em revisão) e ele não recebeu o documento, o que meses depois iria impedi-lo de votar em Fortaleza no dia 15 de novembro.
Com a candidatura pacificada — a não ser para a Justiça Eleitoral — e o plano para viabilizá-la bem definido, Ciro disparou nas pesquisas de intenções de voto. A aceleração ocorreu quando ele começou a figurar nas propagandas eleitorais, o que também foi questionado pelos adversários.
O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) autorizou a aparição — já que ele era deputado estadual e dirigente do PMDB —, mas com uma condição: Ciro não podia falar durante a propaganda.
O silêncio do candidato não foi obstáculo na campanha. À época, reportagens do Diário do Nordeste divulgaram dados do Ibope mostrando que o político começou a corrida eleitoral com 2% da preferência do eleitorado e chegou a avançar cerca de 10 pontos percentuais por mês, atingindo a marca de 30% nos últimos levantamentos e nas urnas.
Além de Ciro, oito candidatos disputaram o cargo de prefeito de Fortaleza naquele ano.
Veja a lista completa:
- Aguiar Júnior (PJ)
- Ciro Gomes (PMDB)
- Dalton Rosado (PH)
- Edson Silva (PDT)
- Gidel Dantas (PDC)
- Marcos Cals (PSD)
- Mário Mamede (PT)
- Pedro Gurjão (PL)
- Torres de Melo (PDS)
À época, o Diário do Nordeste mostrou quão peculiar era o cenário para Ciro Gomes. A reportagem fez um levantamento entre todos os candidatos sobre o local de votação dos familiares mais próximos. Dos nove concorrentes, o candidato do PMDB era o único que não tinha o pai, a mãe, a esposa e ele próprio na lista de eleitores de Fortaleza.
A Constituição de 88 permitiu Ciro Gomes ser prefeito de Fortaleza
Em 27 de setembro de 1988, os jornais noticiaram mais um revés para o político na corrida eleitoral. A Justiça Eleitoral recusou o pedido de candidatura de Ciro sob argumento de que a legislação vigente exigia ao menos 12 meses de domicílio eleitoral em Fortaleza para disputar o pleito na Capital. O PMDB apresentou um recurso ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alegando que a nova Constituição seria promulgada em poucos dias e iria reduzir o prazo para quatro meses.
De fato, não demorou para a candidatura do PMDB à Prefeitura de Fortaleza ganhar o aval constitucional. Em 5 de outubro de 1988, a nova Constituição Federal foi promulgada e, em um dos trechos, reduzia o prazo mínimo da transferência de domicílio eleitoral para os candidatos.
O dia da eleição
Em 15 de novembro, Ciro Gomes chegou na disputa com a candidatura confirmada, apesar dos questionamentos na Justiça Eleitoral. O político, no entanto, não conseguiu receber o título de eleitor da Capital a tempo, sendo candidato, mas não eleitor fortalezense.
O Diário do Nordeste acompanhou o postulante no dia do pleito. Por volta de 4 horas, ele saiu de casa com a então esposa, Patrícia Saboya, que viajou para Sobral. Ciro ficou na Capital e visitou alguns comitês durante todo o dia. "Faço questão de alertar para que ninguém infrinja a legislação eleitoral”, dizia onde chegava.
Ciro foi eleito com 30,5% dos votos na Capital, totalizando 179,2 mil eleitores. Em segundo lugar ficou o pedetista Edson Silva, com 173,9 mil, o equivalente a 29,6% dos votos. Em 22 de novembro, o TSE confirmou uma decisão do TRE-CE que garantiu a candidatura e a vitória de Ciro Gomes mesmo ele não tendo o título de eleitor de Fortaleza.
As Cortes decidiram que a nova legislação já estava em vigor e reduzia o prazo para transferência do domicílio eleitoral. Além disso, os magistrados entenderam que o prefeito eleito pediu a mudança do domicílio no prazo legal, mas um problema burocrático da Justiça Eleitoral o impediu de receber o documento.
Ciro exerceu o mandato de prefeito durante 15 meses. Em seguida, deixou o cargo para disputar o Governo do Ceará. Ele foi eleito pelo recém-criado PSDB, tornando-se o primeiro governador da sigla.
E quais as regras em vigor hoje em dia?
De acordo com o Código Eleitoral, domicílio eleitoral é o lugar de residência ou moradia da pessoa que solicita a inscrição eleitoral. A Jurisprudência do TSE estabelece ainda que é o local onde a pessoa tem vínculos, sejam eles políticos, econômicos, sociais ou familiares.
A cada dois anos, os eleitores têm um prazo para realizar ou atualizar o cadastro eleitoral. Após o período, não é possível fazer novos alistamentos, regularização do título de eleitor ou atualização de dados, entre outras ações, devido à preparação da logística de votação do pleito.
Para que a transferência seja efetivada, o eleitor precisa residir há, pelo menos, três meses no novo município e já tenha transcorrido, no mínimo, um ano da data do alistamento eleitoral ou da última transferência do título.
Para o eleitor que pretende disputar um mandato, ter domicílio eleitoral na circunscrição onde pretende concorrer é requisito indispensável.
Segundo a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), a pessoa deve possuir domicílio eleitoral no local seis meses antes da votação, bem como estar filiada a um partido político pelo menos nesse mesmo prazo.