Após mais de meio século, mulheres são consideradas no sistema tributário brasileiro; veja avanços
Reforma tributária prevê critério de equidade de gênero na avaliação de benefícios fiscais
A reforma tributária, promulgada no dia 20 de dezembro, prevê critérios de equidade de gênero na avaliação de benefícios fiscais no País. Esse é um dos quatro pontos definidos que poderão ajudar a combater os vieses implícitos de discriminação contra as mulheres no sistema tributário brasileiro, existentes desde a criação do modelo atual, há 58 anos.
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Pelas regras vigentes, as mulheres pagam proporcionalmente mais impostos na comparação com os homens, ampliando a desigualdade econômica entre ambos. Além disso, no Brasil, os produtos voltados para a saúde feminina são mais tributados.
Para a pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Luiza Machado, a reforma tributária trouxe ganhos históricos.
“Pela primeira vez na história do Brasil, a igualdade entre homens e mulheres será um critério explícito na Constituição para avaliar medidas tributárias”, afirma. O acréscimo desse ponto foi resultado de alteração proposta pelo grupo de pesquisadoras.
Conforme Luiza, a emenda surgiu a partir do entendimento, atestado pela literatura internacional e nacional, de que a tributação não é neutra e tem impactos de gênero e raça.
Agora, a cada cinco anos, os regimes especiais (benefícios tributários) também serão avaliados sobre o aumento ou redução da igualdade entre homens e mulheres. É uma conquista histórica, que coloca o Brasil dentro das melhores práticas internacionais no combate às desigualdades na tributação”, enfatiza.
Outro avanço, aponta, foi a inclusão de produtos de higiene menstrual na lista de bens elegíveis de redução de 100% da alíquota. Com isso, itens como absorventes e coletores menstruais — com taxas de 27% e 33%, respectivamente — poderão ter a carga tributária zerada.
Alíquota para medicamentos
No texto da reforma, também está prevista a alíquota zero para a cesta básica e medicamentos. Essas medidas ainda serão estabelecidas em lei complementar, mas, se efetivadas, desempenharão um importante papel na correção das distorções de gênero no sistema tributário.
“Sabemos que os lares chefiados por mulheres, especialmente pelas negras, gastam mais com a subsistência da família do que os lares chefiados por homens, especialmente os homens brancos”, destaca.
Para a pesquisadora, o mesmo acontece com medicamentos em razão do trabalho de cuidado atribuído às mulheres, comprometendo a renda delas com remédios para dependentes.
Nesse contexto, outro ponto que poderá ajudar a reparar a desigualdade de gênero é o cashback, a ser implementado para devolver o imposto pago para as famílias de menor renda.
Conforme estudo do movimento "Para Ser Susto", o sistema pode impactar 72,4 milhões de pessoas, por meio da devolução de R$9,8 bilhões.
Entre as pessoas beneficiadas com o cashback, 72% seriam negras e 57% mulheres.
Quais demandas continuam?
A pesquisadora Luiza Machado pondera que a sociedade ainda precisa se manter mobilizada para cobrar e acompanhar as leis complementares necessárias para a concretização dessas conquistas. Além disso, observa, um tópico preocupante é a retirada de armas e munições da lista de incidência do imposto seletivo.
“Caso isso se mantenha, teremos uma drástica redução da tributação de armas no Brasil”, enfatiza. O imposto seletivo foi criado para desestimular o consumo de alguns itens, como cigarros, bebidas alcoólicas e os próprios armamentos.
Outra demanda é pela inclusão explícita da infraestrutura de cuidado ao Fundo Regional, voltado para reduzir as desigualdades regionais, incluindo uma lista de ações para gerar emprego e renda no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A emenda proposta pelas pesquisadoras não foi acatada, mas ainda há uma busca para contemplá-la em obras de infraestrutura.
Não há vedação para os estados utilizarem o Fundo Regional para a construção de creches e espaços de longa permanência para idosos, mas os estudos demonstram que, geralmente, esses recursos são mais utilizados para rodovias e obras mais tradicionais e menos com essa perspectiva de fornecer serviço de cuidado para a população”, avalia.
Ela acrescenta que o benefício teria uma ligação direta com o trabalho feminino, diminuindo os afazeres domésticos e aumentando as possibilidades de inserção plena no mercado formal.
Todos os dias, meninas e mulheres dedicam 12,5 bilhões de horas com o cuidado aos outros, gerando contribuição de, pelo menos, US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, segundo o comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam Brasil). Essa sobrecarga pode interromper a trajetória delas no mundo do trabalho, agravando a assimetria de gênero.
A reforma tributária representa um enorme avanço para o Brasil — e também especificamente para as mulheres — quando comparada com o regime tributário vigente. A inclusão da análise de gênero nos benefícios tributários é histórica. E especialmente quando olhamos para o cashback, que se for bem estruturado, poderá reduzir a regressividade do nosso sistema tributário e as desigualdades de gênero e raça. Para além disso, a próxima fase da reforma — a sobre a renda — precisa aumentar a tributação sobre os mais ricos. Isso poderá reduzir a tributação do consumo que afeta mais os mais pobres", analisa.