Trabalho 'invisível' das mulheres no Ceará equivale a 11,7% do PIB estadual
Pesquisa da FGV mostra como o acúmulo de funções atribuídas a mulheres move a economia, apesar de não ser computado
Aos 23 anos, a então costureira Cristina Moura, hoje com 56 anos, pediu demissão de uma fábrica para cuidar do primeiro filho. O plano era voltar ao mercado quando a criança já estivesse maior, mas a sobrecarga do “trabalho invisível” fez algo provisório perdurar.
Sozinha, ela precisou ser colo e seio, privar o sono, manter a casa e as roupas limpas, fazer as feiras, a comida, acompanhar os rebentos na escola, nas visitas ao pediatra, monitorar as febres, aplacar os choros e tantas outras funções culturalmente atribuídas às mulheres – as quais podem se tornar reféns dos afazeres domésticos e de uma vida dedicada aos outros.
“Queria voltar a trabalhar até o meu primeiro filho completar 10 anos, mas veio a segunda filha e começou tudo de novo. Dediquei-me inteiramente a eles, à casa e ao ex-companheiro, que viajava sempre. Então, eu ficava com as responsabilidades de mãe e de pai”, lembra.
Se as inúmeras tarefas feitas pela Cristina e por gerações de mães e avós fossem acrescentadas ao Produto Interno Bruto do Ceará (PIB), corresponderia a 11,7% de toda a riqueza produzida no Estado, entre 2016 e 2019, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre).
Já as atividades de casa executadas pelos homens equivaleriam a 5,3%, totalizando 17% de contribuição da economia do cuidado no PIB do Estado. No Nordeste, no mesmo período, o percentual do trabalho feminino chega aos 12%.
Ambos os indicadores regionais são superiores aos do País e de estados do Sul e do Sudeste, segundo a pesquisadora Isabela Duarte. Os demais dados estaduais, contudo, ainda serão divulgados, incluindo o ano de 2022.
Para a economista, essa discrepância entre as regiões pode estar relacionada a fatores como o grau de escolaridade das mulheres nordestinas.
“Não conseguimos falar de causalidade, mas há algumas hipóteses, sendo uma delas a questão do nível de escolaridade. Quanto mais instruídas são as pessoas, maiores são os seus salários e a possibilidade de terceirizar para alguém fazer esses trabalhos por elas”, observa.
Ela acrescenta que, no Norte (45%) e no Nordeste (49%), há um número elevado de mulheres sem instrução. Além disso, o índice de informalidade é alto, também puxando a renda da população feminina nordestina para baixo.
“Outro ponto de destaque é o valor da hora média da trabalhadora doméstica. No Nordeste, ele é o pior do Brasil. As mulheres nordestinas estão sendo mais prejudicadas, dedicam mais tempo ao trabalho doméstico, mas têm o pior rendimento”, completa.
No Brasil, esse trabalho feminino equivale a 8,5% do PIB, conforme dados de 2022. O estudo, no entanto, não contempla recorte de cor ou raça.
A economia do cuidado, que é essa extensa lista de atividades domésticas e de cuidados de dependentes, é um assunto complexo e estrutural por recair mais sobre as mulheres.
No último dia 5 de novembro, a problemática recebeu ênfase quando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) a abordou como tema da redação “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
O trabalho de cuidado pode forjar trajetórias
Para a dona de casa Cristina, citada no início desta reportagem, o trabalho de cuidado não foi uma escolha. Antes de ser mãe, ela trabalhava e estudava, mas notou a renda insuficiente para arcar com uma rede de apoio para poder trabalhar fora e continuar os estudos.
“Quando engravidei, também comecei a me preocupar com a questão financeira, o que eu ganhava não dava para pagar alguém para ficar com o meu filho, consumiria todo o meu salário. Além disso, eu tinha medo dele não ser bem tratado”, lembra.
Quando seu primeiro filho completou sete anos, veio a segunda filha, adiando os planos mais uma vez. “Como o meu ex-companheiro viajava muito, chegava a passar dois meses fora, era bem difícil”, diz.
“Eu precisava resolver tudo: fazer as compras, pagar as contas, ensinar a tarefa, fazer a comida, levar ao hospital, resolver problemas no colégio, era sozinha para tudo”, enumera, destacando ter “sentido falta” de alguém para dividir a carga.
Depois, vieram as demandas dos filhos na adolescência, fase complexa e marcada por descobertas e conflitos. Nesse contexto, voltar a trabalhar fora continuava um desafio.
“Também fui ficando com uma idade mais difícil para conseguir voltar ao mercado, mas senti muita falta, principalmente porque não consegui me aposentar. Não me arrependi de ter cuidado dos meus filhos, meus maiores bens, mas tudo isso prejudicou muito minha situação financeira”, lamenta.
No Brasil, as donas de casa podem contribuir voluntariamente para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas muitas não têm informações suficientes e/ou condições financeiras para isso. Essas mulheres acabam ficando desprotegidas financeiramente quando chegam na terceira idade.
Pelas regras, só tem direito à aposentadoria as mulheres que contribuem com 5% do salário mínimo (R$ 1.320), ou seja, R$ 66,00. Para se aposentar por idade (mínima de 62), é necessário contribuir por, pelo menos, 15 anos.
A ausência de reconhecimento e a desvalorização do trabalho de cuidado traz duras consequências, agravando as desigualdades de gênero e de renda. Elas, que muitas vezes têm a trajetória profissional e acadêmica interrompidas por essas questões estruturais, ajudam a mover a economia, apesar de seus esforços serem invisibilizados em indicadores econômicos.
Essa discussão já é mais avançada mundo afora. Na Argentina, por exemplo, houve um avanço em 2021, quando o país reconheceu a dedicação de mães com seus filhos como tempo de serviço para ter direito à aposentadoria.
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Diante dessa realidade no Brasil, para tentar garantir uma qualidade de vida quando chegar na terceira idade, Cristina começou a contribuir com o INSS. Além disso, com os filhos adultos, conseguiu um trabalho de cuidado — agora remunerado — por meio período, prestando assistência a um idoso.
Mas o abandono precoce da educação formal em razão de anos de uma rotina sobrecarregada deixou uma lacuna que ainda a aflige.
“Sinto falta de ter estudos para conseguir ter mais conhecimento. Por exemplo, quando participo de alguma atividade da igreja, tenho dificuldade de entender”, aponta, lembrando ter tido a trajetória educacional interrompida na 2ª série do Ensino Médio.