'É como se fosse uma irmã': o que explica o luto coletivo por Marília Mendonça

Reconhecimento com a expressão do amor e da figura feminina aproximam grande público, que agora compartilha a dor da perda da artista

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Marília
Legenda: Morte da personalidade talentosa e simples mexeu com o emocional dos cearenses
Foto: Thiago Gadelha

A confirmação da partida repentina da cantora Marília Mendonça, na sexta-feira (5), trouxe angústia difícil de assimilar devido à proximidade criada pelas trilhas sonoras e pelo que a artista representa. Ao interpretar uma canção sobre morte e despedida, Marília fala “enxugue esse rosto”, mas o luto coletivo ainda precisa ser expresso por quem enxergava nela alguém com quem se poderia dividir alegrias e tristezas em uma mesa de bar.

“A Marília, antes de ser famosa, ela era mãe, jovem e mulher. Através da sua arte, ela fala de dores reais, de situações vivenciadas por nós e isso traz uma aproximação com o coletivo”, resume a psicóloga hospitalar Mariana Kolb.

Veja também

O sentimento de luto, então, está ligado à vinculação criada com alguém, independente da proximidade física ou de laços sanguíneos. “O luto coletivo precisa ser expresso, acolhido e validado. Neste momento, faz muito sentido a existência dos fã clubes, porque é um espaço em que se pode dividir essa dor”.

A gente está mais vulnerável e sensível, porque desde o início da pandemia nós vivemos um luto coletivo. Ao mesmo tempo, esses artistas foram uma fuga para enfrentarmos melhor o isolamento e a gente vê uma dessas pessoas tão importantes agora partir
Mariana Kolb
Psicóloga

O sentimento, similar ao observado com a morte do ator Paulo Gustavo e Gabriel Diniz, pode gerar reações físicas, sociais e cognitivas. “É como uma montanha russa, cheio de altos e baixos, tudo misturado, desorganizado”, define Déborah Brito, psicóloga hospitalar e clínica.

Veja também

A especialista lembra do fato da cantora ter deixado um filho pequeno como outro fator que causa empatia. “A Marília Mendonça participava da vida das pessoas, dos momentos felizes e tristes, nas mesas de bares e residências. Possivelmente, isso se soma a outras perdas na pandemia, principalmente, quando se trata de algo inesperado”.

Som alto em memória

Essa soma de angústias e tristezas gera complexidade para expressar os sentimentos, como conta a estudante Jocielma Oliveira, de 26 anos, que sempre tem as canções de Marília nos fones de ouvido. “A gente está vivendo um momento tão difícil, na vida em geral, por causa da pandemia e de voltar para rotina com medo. Numa situação como essa, a gente extravasa tudo no luto, chora e externaliza tudo o que está sofrendo”

No sábado, a incredulidade sobre a morte, mesmo com as imagens impactantes televisão e a repercussão na internet, fez com que Jocielma e a irmã resolvessem processar as informações ouvindo música.

O trajeto da Maraponga à Beira Mar tinha como objetivo abstrair a tristeza da perda. “Quando tocou música da Marília a gente começou a chorar. Colocamos no máximo e também vimos muita gente ouvindo as músicas dela”, conta.

Carro
Legenda: Jocielma e a irmã encontraram no passeio pela cidade com o som alto a forma de processar a realidade
Foto: Arquivo pessoal

Ainda assim, “a ficha ainda não caiu”, pela proximidade da jovem com a artista que viu mais de perto no show em 2017. “Não é uma pessoa da minha família, mas é como se fosse uma irmã minha porque ela tinha minha idade. A música dela era (ouvida) do pobre ao rico, do policial ao cara que limpa a rua, todo mundo conhece”

De vez em quando a gente lembra que aquela pessoa, aquela voz, não está mais aqui e isso dá uma angústia muito grande. Uma coisa que eu não tinha vivenciado
Jocielma Oliveira
Estudante e Fã

Fases do luto

O processo do luto deve ser vivenciado de forma adequada para expressão dos sentimentos e manutenção da saúde mental.

“O público identificava valores de caridade, de família e o cuidado com a própria filha. Ela conseguiu ser mais próxima dos fãs do que os próprios parentes, numa ligação quase pessoal, pelo jeito mais espontâneo", acrescenta o psiquiatra Gláucio Fernandes Filho.

Gláucio destaca que o processo acontece em 5 etapas:

  • Negação: “será mesmo que ela morreu?”
  • Raiva: “a pessoa se sente injustiçada, ela tinha uma filha e estava no auge da carreira”
  • Barganha: “tenho de ter alguma forma de aliviar essa dor”
  • Depressão: “a gente sente a tristeza da morte, que é importantíssima”
  • Aceitação: “se não tiver, a pessoa pode tentar fingir e isso mantém a dor escondida”

Ouvir as músicas e conversar sobre a história da cantora são formas de aliviar a dor pela morte da cantora. “O luto vai além do sentimento de perda e de tristeza, depende da pessoa, pode acontecer pelo fim de um relacionamento, perda de um emprego”, acrescenta.

Como lidar com a perda

Quando o conjunto de sentimentos do luto persiste causando dor de forma intensa, o ideal é buscar ajuda especializada. “Uma forma de cuidar dessas emoções para que elas não se agravem é dedicar um espaço para si mesmo, tentando compreender os pensamentos e reações”, explica Déborah Brito.

Momentos como o da morte da cantora podem abrir espaço para pensar em situações temidas pelo coletivo, como acrescenta Mariana Kolb. “Também serve como gatilho para que a gente lembre da nossa finitude, que a morte está para todos independente da condição social e da idade”

Elaborar, ou seja, vivenciar o luto pela expressão dos sentimentos e ter acolhimento é importante para seguir a vida. “Uma forma de administrar esse sentimento de dor, tristeza e saudade é olhar para a perda como uma forma de melhor viver, de conviver com as pessoas que são importantes, com que se tem afeto”, conclui.