Psicopedagoga afirma que o uso da ferramenta tem pontos positivos e negativos. Comunidade escolar deve chegar a um acordo sobre situação
No contexto da pandemia, em que o isolamento social impõe limitações físicas, as salas de aula viraram videochamadas diárias. No entanto, a obrigatoridade do uso da câmera por alunos ainda gera divergências. Para o Conselho Estadual de Educação, a decisão cabe às escolas; enquanto a Ordem dos Advogados do Brasil do Ceará (OAB-CE) afirma que exigência fere "privacidade do aluno".
Discussão ganhou força com o retorno das aulas remotas, quando o contato entre estudantes e professores é feito por telas de computador e celular. Desafio está entre melhorar o desempenho de alunos nas aulas, incentivando maior participação com câmera ligada, e, ao mesmo tempo, evitar exposição.
No sentido jurídico, a presidente da Comissão de Educação e Cidadania da OAB-CE, Sônia Cavalcante, diz que a escola não tem o poder de obrigar o aluno a fazer o uso da câmera. “Essa imposição, por vezes, interfere na privacidade do aluno. Mas, tudo é uma questão de bom senso e diálogo. Se a escola conscientizar o aluno de que se faz necessário o uso para uma melhor interação entre a comunidade escolar, o estudante pode aceitar ou não. Em caso de negação, a escola não pode punir o aluno por essa decisão, até porque outra maneira de se mostrar ativo é fazendo o uso do chat”, considera.
A advogada cita que pode haver uma invasão de privacidade não só com o aluno, mas com a família que está em casa e acompanha o estudante.
“O contexto deve ser analisado. Em casos em que a escola prejudique o aluno, de alguma forma, pelo não uso da câmera, a família pode ver na Justiça os seus direitos com base no Código de Defesa do Consumidor e no direito de imagem, inserido no Código Civil”, detalha Sônia Cavalcante.
Decisão da escola
Conforme o Conselho Estadual de Educação do Ceará (CEE), o ensino remoto não consiste apenas no uso de câmeras, visto que devem ser levadas em conta quaisquer dificuldades enfrentadas pelos alunos, seja a falta de privacidade, de acesso à tecnologia, ou mesmo o desconforto gerado pela exposição. “O CEE avalia que o importante é gerar um ambiente confortável, entendendo o aluno como indivíduo e sem se afastar do propósito principal, que é o engajamento e a aprendizagem”, orienta.
Entretanto, segundo o órgão, a instituição de ensino detém a competência para definir quais são as obrigações dos estudantes para o correto desenvolvimento das atividades, dentre elas está o uso das câmeras.
O ideal é que, em caso de problemas, “a questão seja discutida entre aluno ou pais do aluno e professor ou escola, a fim de não prejudicar o aprendizado. Questões relativas ao ensino serão negociadas, sem perdas quanto ao conhecimento da matéria abordada e às práticas escolares”, complementa o CEE.
Como mediadores de ensino, neste momento, é necessária a máxima dedicação dos professores em relação à criatividade e estratégias para repassar o conhecimento.
“Além da qualidade do áudio e vídeo, alguns recursos importantes são o uso de vídeos, simuladores, jogos virtuais, adaptar o formato da aula ao meio virtual, pedir feedback dos alunos, estipular prazos, orientações claras por parte dos professores, disciplina e protagonismo por parte dos alunos, manutenção da rotina de aula, como se o isolamento social não existisse”, conclui a instituição.
Dois lados
Psicopedagoga e doutora em educação, Ticiana Santiago avalia que o uso da câmera durante a aula online tem dois lados: um positivo e um negativo. “As ferramentas em si apresentam potencialidade no sentido de aproximar o aluno do professor, como poder identificar as expressões faciais e os signos da interação com mais qualidade. Mas, no aspecto negativo, entra a questão da exposição. Muitas pessoas não estavam preparadas para tornar suas casas e ambientes de trabalho e aprendizagem públicos”, coloca.
Para a psicopedagoga, é necessário um acordo entre a comunidade escolar para o benefício geral. “É preciso adaptar a cada contexto. Têm alunos que assistem aulas no ônibus ou no trabalho que pedem para não ligar a câmera e apenas acompanham com a escuta para ter um pouco da privacidade resguardada”, cita Ticiane.
No entanto, na atuação de psicologia e psicopedagogia, Ticiane considera que a câmera se faz necessária. “Não tenho como fazer esses atendimentos específicos sem a câmera porque eu preciso avaliar as expressões faciais, as pausas, identificar tarefas de psicomotricidade, entre outros elementos”, diz.
O impacto da câmera em crianças que não estão acostumadas com a exposição afeta diretamente no emocional dela, conforme Ticiane. Em contrapartida, a profissional aponta que os adultos são os que mais sofrem com a questão.
“As crianças têm até administrado a situação com mais facilidade. Já os adultos sofrem mais com o julgamento moral durante a exposição, pois muitas vezes não estão trajadas ‘adequadamente’ ou estão realizando multitarefas, por exemplo”, detalha Ticiane Santiago.
“A câmera auxilia no entendimento quando o aluno passa por uma dificuldade maior, porque não existe essa história de novo normal, nós estamos atravessando uma pandemia. E, quem está em contato com os alunos ou trabalhadores da educação, precisa qualificar os vínculos. As pessoas estão em situação de vulnerabilidade e privação, logo, a câmera como mediadora desse vínculo é imprescindível. Já em outras situações, se vai colocar a pessoa em uma situação de vulnerabilidade e de exposição indesejada, o não uso da câmera há de ser respeitado”, menciona Ticiane.
Para além da exposição, a profissional lembra que nem todo estudante tem o recurso do aparelho, “às vezes é apenas o celular da mãe que ainda é dividido entre os irmãos”. Nesse sentido, “nenhuma instituição deve obrigar o uso de câmera, o ideal é entrar em consenso com o grupo”.
“Na educação, a gente não só produz conhecimento e artifícios, mas também produzimos a identidade das pessoas, a subjetividade. Então essa relação de trocas é permeada de tarefas, mas também de quem nós somos. Então, a gente não pode esquecer das questões de gênero, da desigualdade social, do acesso às tecnologias e das relações de poder que também estão interferindo na construção da personalidade desse indivíduo, tanto do estudante quanto dos profissionais”, finaliza Ticiane.
Uso diário
A estudante Letícia Coelho, 16, conta com o uso da câmera em oportunidades específicas, seja para tirar dúvidas com o professor ou em momentos de apresentação de trabalhos. Assistir às aulas com a webcam desligada, para ela, não é um problema. “Acho que não atrapalha, porque quando ligada, poderia acontecer de prestar mais atenção no seu colega do que no professor”, afirma.
No entanto, Letícia se diz aberta, caso ligar as câmeras vire uma obrigatoriedade. “Apenas não ligo porque não quero ficar só e às vezes não estou com a farda da escola. Aceitaria super bem, não seria um real problema para mim”, expressa a aluna do 3º ano do Ensino Médio.
Assistir às aulas remotas sem contato visual com os colegas e professores também é um hábito frequente de Mylena Raiane, 16, porém, a estudante acredita que a utilização da câmera é um método que colabora com a efetividade do processo de aprendizagem.
“Eu não acho que a aula flui do mesmo jeito porque eu acredito que, por estarmos passando por um momento difícil, o ensino remoto. Quando a gente está com a câmera desligada, às vezes a gente perde o foco da aula, chega mensagem e a gente vai olhar. Então se estivéssemos com a câmera ligada, a gente não ia poder fazer isso, então acredito que, de certa forma, não ligar a câmera acaba atrapalhando, sim, o aprendizado”, detalha.
A estudante divide a casa com o irmão, de 5 anos, e a mãe, Marilene Ferreira, 36. Segundo a agricultora, dessa forma, a filha conseguiria privacidade para assistir às aulas com a webcam ligada. “Eu acho que deveria ser obrigatório porque os alunos iam prestar mais atenção nas aulas e não iam entrar nas redes sociais. Não atrapalharia em nada se ligasse a câmera”, informa.