Nova suspensão das aulas presenciais gera danos psicológicos à comunidade escolar, diz especialista

Com o aumento da transmissão de Covid-19 no Ceará, Governo determinou o retorno às aulas 100% remotas até 28 de fevereiro. Para a psicopedagoga Eveline Câmara, mudança abrupta impacta na saúde mental de pais, alunos e professores

Legenda: Por seu caráter lúdico, o ensino na primeira infância é mais prejudicado com a suspensão das aulas presenciais, avalia psicopedagoga
Foto: Shutterstock

A suspensão das aulas presenciais em escolas e universidades públicas e privadas do Ceará até o dia 28 de fevereiro, prevista em decreto estadual publicado na última quarta (17), é uma medida que pode impactar de várias formas a vida de pais, estudantes e professores. 

Mais que demandar planejamento e infraestrutura mínima para acessar de casa as aulas remotas, o retorno a esse modelo de ensino pode gerar prejuízos psicológicos a todos os envolvidos, avalia a psicóloga e psicopedagoga Eveline Câmara.

Prazo de adaptação

A medida, adotada em meio ao aumento do contágio da Covid-19 no Estado, entrou em vigor somente nessa sexta (19) para que, assim, as instituições de ensino tivessem um prazo mínimo de adaptação. 

Ainda passou por uma flexibilização posterior: a suspensão não mais abrange o berçário e a educação infantil para crianças de até 3 anos das redes pública e privada. E nem as atividades práticas e laboratoriais para concludentes do ensino superior, inclusive de internato.

Sentimentos de frustração e de desorganização

De acordo com a especialista, a imposição da mudança, já vivida em um passado recente, e o tempo rápido para adaptação podem provocar sentimentos de frustração e de desorganização. E, assim, gerar prejuízos psicológicos. 

"É uma mudança necessária, mas que vai precisar de uma reorganização interna da pessoa. E, talvez, ela não consiga fazer nesse tempo hábil", diz.

Confira a entrevista completa com Eveline Câmara:

Mais uma vez, devido ao crescimento no número de casos de infecção por Covid-19, os alunos retornam para casa. Como essa inconstância na dinâmica escolar pode afetar essas pessoas, de diferentes faixas etárias?

Como as medidas são tomadas em caráter emergencial e, por isso, são colocadas de uma maneira a serem aplicadas abruptamente, talvez não haja um tempo, um “respeito” ao tempo lógico de cada um. É um tempo cronológico. Um decreto que precisa ser aplicado de uma semana pra outra. Existe uma justificativa pra isso, pro bem coletivo. Estamos num período muito atípico. Então, talvez essa seja a primeira dificuldade nessa situação. Dependendo da faixa etária, precisaria de um tempo maior para se adaptar. E aí eu falo da adaptação dos alunos, dos professores, das pessoas que se colocarão como facilitadoras desse processo educacional, sejam pais, responsáveis, enfim. Então, acho que o prejuízo psicológico se marca nessa imposição da mudança e de um tempo rápido para essa mudança. Uma mudança necessária, mas que vai precisar de uma reorganização interna da pessoa e que talvez a pessoa não consiga fazer nesse tempo hábil.

Além da necessidade de adequação rápida à mudança, existem outros fatores que também podem gerar danos à saúde mental?

Existe a expectativa. Cria-se uma expectativa em relação a um retorno, a um ano diferente. Essa questão do próximo ano ser completamente diferente é algo que é imposto socialmente e é por isso que tem tanta comemoração no Réveillon; é um marco social. Mas acredito que, pelo fato do ano passado ter sido um ano muito atípico, porque na grande maioria do tempo a gente estava vivendo nesse funcionamento da pandemia, e com o advento da vacina, o início do processo de vacinação, criou-se uma expectativa pautada em situações reais de que esse ano seria diferente. Isso gera uma expectativa e gera uma organização dentro dessa expectativa. E aí quando essa expectativa é frustrada vem uma desorganização e precisa haver uma reorganização. Existia uma expectativa de que esse ano poderia retomar um pouco mais da normalidade em relação a essa questão do ensino e aí essa expectativa vem a ser frustrada, necessariamente, justificadamente, por causa do momento em que estamos. Mas isso gera um impacto psicológico porque traz à tona novamente a sensação de que não conseguimos controlar nada, não conseguimos nos organizar para uma situação, porque a gente pode fazer uma organização e, daqui a uma semana, essa organização não valer mais. Por circunstâncias externas. 

Quais os prejuízos para o desenvolvimento socioemocional, principalmente, de crianças na primeira infância?

Nessa primeira infância, o ensino é muito pautado no trabalho coletivo e muito auxiliado pela socialização porque é na escola que se forma o nosso segundo grupo social, o primeiro que vamos fazer uma busca mais ativa porque o nosso primeiro grupo social, que é a família, teoricamente nos foi dado. Então, é na escola que isso vai acontecer, e nessa primeira infância, especificamente, que é onde é formada a base da personalidade, do funcionamento. É muito importante que esse desenvolvimento cognitivo esteja sendo trabalhado junto com o afetivo e o social, para que o indivíduo cresça como um indivíduo com o ego mais fortalecido. O primeiro prejuízo seria esse, a perda do contato social real. Porque, até pela questão da maturação cerebral da criança, a compreensão que ela tem em relação à tecnologia como um instrumento que pode possibilitar essa aproximação afetiva é muito diminuta ainda. Apesar dessas crianças que estão nesse momento da primeira infância serem crianças que nasceram dentro de uma geração muito tecnológica, que tem uma relação muito próxima com esses elementos. Mas daí a conseguir desenvolver afetivamente num contato, tentar trazer esse contato do virtual para o real é muito complexo para a criança. Ela precisaria ter uma capacidade de simbolização e de abstração que ela ainda não detém.

Existe uma metodologia, uma didática de ensino remoto própria para crianças?

Não. Por mais que o ensino remoto tenha sido imposto para todas as faixas etárias e de maneira abrupta, porque foi emergencial, e muitas vezes não dando tempo de se desenvolver essa metodologia diferente, essa didática diferente, para o infantil é inexistente. Porque nós temos situações em que adolescentes têm aula online, adultos têm aula online, isso existia até mesmo antes, mas não para crianças do Infantil. Existem conteúdos educativos, mas didática, aula mesmo, não existe. Os espaços escolares são espaços, também, não só de desenvolvimento cognitivo, mas de desenvolvimento emocional, afetivo, social, e essa parte também fica muito prejudicada quando a gente vai pro ensino remoto, porque é um funcionamento diferente.

Quais são as principais dificuldades envolvidas no planejamento das aulas remotas para crianças na primeira infância?

Pela pouca idade e pelo desenvolvimento, funcionamento cerebral que têm, a capacidade de concentração delas é diferente, é reduzida. É mais difícil para uma criança do infantil conseguir prestar atenção a uma aula que está sendo dada pelo computador, pela televisão, pelo celular, do que um adolescente, um adulto. Tem também a questão da socialização e o ensino na primeira infância é muito lúdico, se utiliza muito de objetos lúdicos. De instrumentos, brinquedos, manipulação. Isso também é perdido no ensino remoto. Assim como também, por ser uma faixa etária muito específica, exige um manejo muito específico, que dificulta pra quem está nesse lugar de auxiliar, facilitador educacional nesse momento de ensino remoto para primeira infância. Tem também algumas situações desse desenvolvimento socioemocional em que a criança vai precisar do grupo para ser trabalhado. A frustração, o controle da agressividade, o entender o papel dela dentro do coletivo, ela vai precisar desse grupo de iguais. O que não vai acontecer dentro desse ensino remoto porque a criança não vai conseguir entender. É um prejuízo considerável.

Como esse momento também afeta pais, professores e todos os que compõem a comunidade escolar?

Com os professores, acredito que um dos fatores estressores que essa inconstância traz é que cada mudança pede uma metodologia diferente deles. E os professores, como as outras pessoas, não tiveram um tempo lógico nem cronológico para se preparar. Então, esse é o primeiro fator estressor. Dar aula presencialmente é uma metodologia, no ensino remoto é outra, que, inclusive, necessita de instrumentos tecnológicos, que muitas vezes talvez o professor não tenha. Para os pais ou responsáveis, percebo que essa questão deles terem sido colocados de maneira emergencial, rápida, nesse lugar de facilitador do ensino, também os colocam numa situação para a qual não estavam preparados. E dentre todas as reorganizações que as pessoas estão precisando lidar, do funcionamento diferente em relação ao trabalho com o trabalho home office, do funcionamento em relação a esse espaço que agora é casa e trabalho ao mesmo tempo e também sala de aula. Como essa nova rotina que se impõe de estar com os filhos o tempo todo ou com os que são responsáveis o tempo todo, o fator estressor dos pais está aí. Como foi tudo muito rápido, talvez a própria escola não tenha tido tempo de preparar esses pais e um material didático mais voltado para essa realidade. Para a comunidade escolar, como um todo, acredito que essa questão da inconstância é inerente a esse momento que estamos vivendo, causa uma sensação de desorganização que parece ficar constante. É como se não desse tempo de completar ciclo, como se esse tempo não existisse. E também muitas situações que antes poderiam ser discutidas em grupo, por nova organização do tempo, isso também fica perdido. A comunidade escolar se desfaz um pouco nesse momento porque precisa se dividir. Muitas situações que poderiam ser coletivizadas não vão acontecer nem no presencial, porque não é possível, nem no virtual, porque não é possível por outra lógica.

Devido ao desgaste mental do último ano, esse retorno ao ensino remoto, hoje, é mais difícil? Ou mais fácil, considerando que muitos já passaram pela experiência?

Retornar a uma situação que já é conhecida, para alguns é mais confortável e para outros gera mal-estar. Talvez por essa questão da esperança e da expectativa de que o ano de 2021 seria diferente, o retorno a algumas situações talvez traga sensação de que está havendo uma involução, por conta da evolução da pandemia, do aumento dos casos, da descoberta dessas novas cepas. Talvez algumas pessoas se sintam mais seguras nesse momento, estando com esse estudo em casa, por mais que existam outros fatores estressores e por mais que entendam que existem prejuízos. Esse momento em que parecemos estar voltando uma casa talvez traga um mal-estar que se sobreponha, no sentido de que [a pandemia] não vai acabar tão cedo, que não estamos evoluindo, que esse ano não seja tão diferente. Ter que lidar com expectativas frustradas, de início, é difícil. Assim como a mudança, lidar com expectativas frustradas necessita se dar conta, olhar e entender esse mal-estar pra conseguir dar conta.

 


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