Especialistas situam a necessidade de flexibilização na dinâmica avaliativa e busca por instrumentos pedagógicos que favoreçam engajamento e interesse nos estudantes
Limitar a experiência educacional na pandemia à forma como as aulas podem ser realizadas por meio da internet é um equívoco. Esse processo, longe de ser simples, envolve toda uma cadeia de ações que atravessa escola, família e a própria condição e disposição do estudante.
Um dos pontos que merece destaque nesse panorama é o modo como as avaliações devem ser realizadas durante o ensino remoto, sobretudo neste momento de lockdown em todo o Estado, quando as escolas voltaram a fechar os portões. Até que ponto as cobranças e a rigidez por parte dos professores podem interferir na absorção de conhecimentos dos alunos?
Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação do Ceará (CEE) e doutora em Educação, Selene Penaforte situa que a avaliação de conteúdos é um instrumento pedagógico e institucional de grande importância e que deve ser levada em consideração sempre, independentemente do cenário.
Nesse sentido, ela elenca três aspectos possíveis de serem observados de modo a otimizar uma melhor compreensão dessa ferramenta educacional. “A primeira coisa a se destacar é o caráter diagnóstico da avaliação. Para ela ser real, honesta, tem que ter como intenção o diagnóstico do aluno e da turma, traçando, a partir daí, alguns objetivos de aprendizagem para exatamente melhorar esse processo”, diz.
Na sequência, sublinha o critério formativo do instrumento, cujo objetivo é auxiliar os estudantes a alcançar algumas competências esperadas na escalada do processo de absorção do conhecimento.
“Para essa intenção formativa, você deve utilizar todos os meios possíveis de modo a garantir os processos de formação, sem perder de vista que isso deve levar em conta, se for possível ou necessário, a revisão dos objetivos”, completa.
Não à toa, é relevante pensar: em um contexto de pandemia, as metas de aprendizagem de outrora se mantêm? O que é fundamental para o estudante nesse período que ele se encontra de seu desenvolvimento? “Aí entra a intenção somativa, que é pensar sobre como todo esse processo diagnóstico e formativo leva a um resultado final satisfatório, ou seja, o que foi de fato que o aluno aprendeu e se, dali, ele pode seguir em frente e atingir os objetivos”.
Considerar as singularidades
A escola, assim, de acordo com a estudiosa, precisa ter clareza acerca das metas de aprendizagem – sabendo que algumas delas são critérios comuns a todos os alunos, mas também percebendo que o fator da singularidade de cada estudante é fundamental.
“Tenho que ter alguns parâmetros coletivos para a turma toda, mas também um olhar para a subjetividade do aluno. Então, dentro do processo de avaliação, principalmente nesse modelo remoto, eu vou ter, por exemplo, alunos tímidos, que não vão conseguir se expressar como os outros; ou aqueles que não têm um ambiente favorável em casa, com relação à dinâmica familiar ou mesmo à estrutura onde estuda… Enfim, tudo pode contribuir para que ele não tenha o desempenho desejado como se fosse dentro de uma sala de aula”, dimensiona.
Como pontos cruciais, Selene enumera a parceria entre pais e estudantes – otimizando um maior acompanhamento na aprendizagem em casa – e a preocupação da escola em diversificar os instrumentos de avaliação e repasse dos conteúdos, despertando engajamento e interesse nas turmas.
“Isso dá ao professor uma condição maior de fazer uma avaliação baseada nessa diversificação de instrumentos, tendo em vista que, para realizar uma boa avaliação, é fundamental não utilizar apenas um ou dois instrumentos de exame do aluno”, pontua.
“Uma avaliação muito rígida, pode, sim, dependendo do contexto, levar o aluno ao desestímulo, evasão e ao próprio abandono escolar. Ele pode não se sentir apto a responder àquilo que a escola espera dele, já que não consegue atender a essa forma talvez tão rígida de um instrumento de avaliação que não permite as várias possibilidades de expressão do seu aprendizado”.
Estatísticas
Divulgado em janeiro e realizado em parceria com o Instituto Claro, um estudo do Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para Infância) trouxe dados alarmantes acerca da educação no Brasil durante a pandemia de Covid-19.
Intitulado “Enfrentamento da cultura do fracasso escolar", o levantamento mapeou que, no ano passado, cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes ficaram sem acesso à educação em todo o País.
Além disso, a quantidade de alunos, com idades entre 6 e 17 anos, que abandonaram as instituições de ensino foi de 1,38 milhão, o que representa 3,8% dos estudantes. A taxa é superior à média nacional de 2019, quando ficou em 2%, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.
Somada a essa estatística, está a situação de 4,12 milhões de alunos (11,2%) que, apesar de matriculados e sem estar em período de férias, não receberam nenhuma atividade escolar, resultado de uma má execução do ensino pautado pelas aulas on-line.
Ainda de acordo com o relatório, o perfil das crianças e adolescentes mais impactados pelo “fracasso escolar” se concentra nas regiões Norte e Nordeste, e são muitas vezes estudantes negros e indígenas ou com deficiências.
Cenário para as avaliações
Especialista em Educação, Rogers Mendes percebe que a avaliação diagnóstica no ano passado, quando todos ainda estavam aprendendo o movimento das atividades remotas, realmente foi comprometida em alguma medida, sobretudo devido à ausência das técnicas de como promover aulas à distância.
“Mas creio que foi um aprendizado. Os professores estão mais habilidosos hoje a dispor de plataformas eletrônicas, de formulários que possam dispor aos estudantes algum instrumento de avaliação. Então, para efeito de avaliação diagnóstica, a gente tem um cenário um pouco mais otimista. Hoje os professores têm mais elementos”, diz.
Por sua vez, a avaliação somativa, responsável por promover ou não o estudante à série seguinte, ainda é necessária de ser ponderada, conforme a visão do estudioso. “Isso no sentido de não colocar a força máxima, ter mais tolerância. Acho que o caráter da avaliação diagnóstica é que deve predominar. Não avaliar para punir, nem para promover ou não o estudante”.
Segundo Rogers, a dimensão da auto-avaliação talvez seja uma das mais importantes a se considerar agora. É preciso avançar em instrumentos nos quais o próprio estudante se sinta instigado a se perceber aprendendo, tendo em vista que não é possível, neste instante, aplicar um teste padronizado.
“Vamos precisar utilizar recursos diferenciados. Por exemplo, como é que o estudante consegue organizar uma ideia em um debate on-line nas aulas de Humanas? Isso é um parâmetro que eu acho que serve para o professor avaliar, mas deve também ser colocado na perspectiva da auto-avaliação do estudante. Logo, o professor deve orientar o aluno a identificar aquilo, se ele está satisfeito ou não com o que está aprendendo. Acredito que esse instrumento da auto-avaliação vai ganhar um peso importante”, analisa.
Ao mesmo tempo, no pós-pandemia, o especialista enxerga a necessidade de aprimorar na educação as plataformas adaptativas, aquelas que propõem um sistema de avaliação on-line no qual o estudante vai acompanhando seu desenvolvimento a partir do que conseguiu responder nesses instrumentos.
“Daí, a própria plataforma vai sugerir aulas pontuais a partir da identificação dos problemas de aprendizagem que o aluno tem identificado pelo instrumento. Esse é um ensinamento que a gente tem trabalhado hoje muito fortemente para aprimorar”.
Relações frágeis
Igualmente enfocando na temática da rigidez, por parte de docentes, durante a cobrança da absorção de conteúdos, Rogers diz que, se a avaliação possui um caráter de punição – muito associada ao critério se o aluno vai passar ou não de ano – ela complica o processo de aprendizagem.
“A gente precisa manter o aluno com a expectativa de que ele vai concluir o ano. Isso é válido principalmente para as escolas públicas. Às vezes, uma das razões que leva ao abandono é exatamente ele achar que não vai ser aprovado. Então, é muito importante que os professores deem tranquilidade ao estudante dizendo a ele que o que vale nesse momento é o vínculo com a escola, com o saber, e que o aprendizado é o essencial, mesmo no processo remoto”, aconselha.
Por conta da fragilidade das relações mediadas pelas telas, Rogers reitera a relevância do estímulo para o saber e que as avaliações não assumam um aspecto muito complexo.
“Exames assim, mais rígidos, talvez não sejam adequados para este momento. Além do quê, não é possível falar de avaliação sem antes definir que currículo é esse que está sendo definido para os estudantes. Ele deve priorizar quais são as competências essenciais, aquelas que a gente não pode abrir mão”, conclui.
Pesquisas na internet
Selene Penaforte também levanta outro ponto nesse panorama: como conduzir as pesquisas na internet de modo que elas não limitem a capacidade de aprendizagem dos estudantes? “O campo virtual pode ser só informativo, ele pode não cumprir um papel formativo, que são coisas diferentes”, explica.
“Então, acredito que o professor tem que buscar, primeiro, conhecer a sua turma e, especialmente, criar mecanismos de acompanhamento desse retorno das atividades. À medida em que ele faz isso, co-responsabiliza o aluno por aquilo que ele faz”, percebe.
Portanto, o desafio é fazer com que as turmas transformem o conhecimento encontrado na internet em um novo tipo de saber, ressignificando as pesquisas. “O saber está dado lá, mas ele só vai criar sentido se o estudante for capaz e se a escola conseguir criar mecanismos de fazer com que esse conhecimento, que não foi só copiado e colado, se transforme em um novo conhecimento para o estudante”, afirma Selene.
“Para isso, devem ser buscadas estratégias pedagógicas que levem o aluno a demonstrar aquilo que ele foi capaz de aprender nessas pesquisas, nas fontes diversas que estão à sua disposição”, complementa. “É importantíssimo que a escola deixe claro para a família os seus objetivos e que busque, com os pais, essa parceria de trocas e acompanhamento”.