Em entrevista ao Diário do Nordeste, Rogers Mendes, ex-secretário executivo de Ensino Médio e Profissional da Seduc, fala sobre os impactos da crise sanitária no ensino médio e as respostas da rede estadual
Não ter aula presencial, ter problemas para se conectar, estar distante de colegas e professores, não conseguir manter o ritmo de estudos. As dificuldades de milhares de estudantes país afora, frente à pandemia, são incontáveis. Em 2020, quando a suspensão das aulas presenciais foi um dos grandes efeitos da crise sanitária, um dos temores era o possível aumento do abandono escolar. No Ceará, a situação que, há anos, apesar do desafio permanente, apresentava melhoras, ficou ameaçada.
Os dados quanto à saída precoce dos alunos, referentes a 2020, ainda serão divulgados esse ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mas, conforme o ex-secretário executivo do Ensino Médio e Profissional da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), Rogers Mendes, em entrevista ao Diário do Nordeste, felizmente, “o índice de abandono escolar de 2020 não será maior do que em 2019”.
O professor, especialista em Educação, deixou, por motivos particulares, no dia 26 de fevereiro de 2021, a Seduc. Desde 2004, Rogers é servidor da educação. Por anos, esteve na gestão, e desde 2019, ocupava o cargo de secretário executivo. Ele é reconhecido pelas ações para a melhoria do processo educacional, feitos que têm colocado o Ceará como modelo para o Brasil.
Ao Diário do Nordeste, Rogers não revelou o índice exato do abandono escolar constatado nas escolas da rede pública estadual, em 2020. Mas, adiantou que “em termos de resultados de abandono, a pandemia não vai afetar a rede estadual”. Em 2019, o Ensino Médio público do Ceará teve a menor taxa de abandono da história, como 3,8%. Em 2018, era de 5%. Já em 2007, 16,4% dos alunos desta etapa e rede abandonaram os estudos.
O Ceará, sobretudo, nos últimos anos, tem tido muito êxito, tanto na implementação de ações na educação, como em resultados. O que você mais destaca, se falarmos em um cenário anterior à pandemia?
Destaco tudo o que gerou êxito na educação pública. Primeiramente, há uma política muito de continuação, acho que é o primeiro ponto. Em 2007, tinha um marco que eu diria, também, que foi importante, é o Programa de Alfabetização que contribuiu para criar esse índice de urgência para que houvesse maior investimento e atenção do poder executivo, principalmente do chefe do poder executivo. E de lá pra cá a gente tem melhorado o perfil dos estudantes que chegam ao Ensino Médio e por conseguinte também os resultados do Ensino Médio.
Então, eu acho que o que destaca o Ceará é esta política holística. Mais global que cuida da educação, da educação infantil até o ensino médio, em cooperação com os municípios. Eu acho que isso é o que nos diferencia dos outros estados brasileiros.
Mesmo com essa evolução, o que, pelo menos, até 2020 era visto com fragilidade?
O que a gente não conseguiu sanar é um problema histórico, que é a permanência do estudante no Ensino Médio. A conclusão do ensino médio melhorou muito os indicadores. Menos da metade há 15, 20 anos conseguiam concluir aos 19 anos o Ensino Médio. Esse número hoje é muito maior, chegando a 80%, de acordo com a Pnad.
A gente ainda precisa melhorar mais a rede de atenção para o estudante continuar vinculado à escola, mesmo que o contexto socioeconômico seja desfavorável. Isso nos desafia em todas as etapas, a partir do sexto ano do Ensino Fundamental até a conclusão do Ensino Médio.
Eu diria que este desafio ainda persiste. Porque é um processo pedagógico e ganha uma dimensão que vai para além da educação.
As redes de ensino são muito diferentes, por mais que tenham estruturas semelhantes. A gestão da Educação nota que a saída da escola, é um predomínio, por exemplo, nas áreas urbanas, ou ela é, talvez, mais difícil nas áreas rurais, mais distantes?
Hoje, o que a gente mais verifica como ponto de atenção são as grandes cidades. As regiões periféricas. Uma condição ainda muito desfavorável, que hoje tem menos contribuído para o acesso do estudante à escola. Na zona rural, historicamente, foram aperfeiçoando as escolas. Despertando para a matrícula e estão muito mais próximos ao estudante.
Quando chegamos em 2020, vem a pandemia, e a suspensão das aulas. O que se agravou ali? E o que já tínhamos de mérito e foi usado de legado na pandemia?
Bom, o que diferencia o Ceará, mais uma vez, foi a política de desenvolvimento das competências socioemocionais. O Ceará já é muito avançado nesse segmento, nessa dimensão da educação que está ganhando muita força, principalmente na Base Nacional Comum Curricular.
O Ceará foi prematuro em conceber uma política de trabalho pedagógico. Lá em 2008, por exemplo, com um projeto chamado Professor Diretor de Turma. Quer dizer, cuidar do estudante não somente no aspecto cognitivo, mas também trazer a história de vida, a pessoa por inteiro. Que é o conceito da educação integral.
No período da pandemia, então, como os estudantes já tinham um trabalho consolidado nessas dimensões socioemocionais, isso foi um trunfo muito bem utilizado para a permanência do vínculo do estudante com a escola.
Os dados estão ainda sendo consolidados, e devem ser divulgados quando o censo fechar, mas conseguimos manter uma parte muito significativa dos estudantes na escola. Praticamente, em termos de resultados de abandono, a pandemia não vai afetar a rede estadual, por conta da capacidade que a escola já tinha desenvolvido. Na rede municipal, ainda não sei ao certo como o efeito do abandono aconteceu.
Mas na rede estadual, por conta dessa competência socioemocional já incorporada nas práticas pedagógicas, a gente conseguiu manter os estudantes e não aumentou o número de alunos que historicamente abandonam. Tradicionalmente esses dados são divulgados no final de março ou em abril pelo o Inep, que é quem faz a gestão dos dados em todo o país.
No Ceará, pelo que temos acompanhado das informações das escolas, muito provavelmente, não vai ser maior do que foi em 2019. Nos últimos anos, a gente já vinha nessa evolução. Em 2019, o Estado estava comemorando o menor índice de abandono da história, que era 3,8%. O mérito talvez da política educacional cearense, em 2020, foi a assertividade em manter o vínculo. A gente sabe que a escola é o local da aprendizagem, mas é também o local da esperança. Não tem como você aprender fora da escola.
Esse já é um grande feito...
Agora, quando falo que o aluno permaneceu em um número muito parecido com os anos anteriores, isso não quer dizer, obviamente, que a aprendizagem aconteceu como nos anos anteriores. Foi diferente, claro. Mas, só em um aluno, ter se mantido, acho isso absolutamente importante de ser destacado.Você precisa ter atenção, saber quem é o pai, a mãe, o telefone de todas as pessoas.
O Professor Diretor de Turma tem uma espécie de um dossiê, um questionário, que ele consegue aplicar com estudantes e sabe qual é a atividade do pai, da mãe, como é que ele estuda em casa, se ele tem um ambiente, quais disciplinas ele mais gosta.
A gente tem um conjunto de informações. Já tínhamos e foram absolutamente necessárias para o momento da pandemia. Então, assim, de alguma forma, tínhamos uma conexão com o aluno, com a vida privada dele, que permitiu essa conectividade da escola enquanto um conceito físico e da casa dele.
Essa condição é específica do Ensino Médio?
Para o público com menor idade é mais desafiador. Os municípios tiveram muito mais dificuldade de continuar o processo de alfabetização. No Ensino Médio, com um perfil de estudante já mais autônomo, com o uso da tecnologia, um pouco mais familiarizado, tivemos resultados muito interessantes nesse aspecto. Então, o vínculo foi mantido.
O grande desafio, claro, é agora, consolidar o que aprendemos, como lidar com a tecnologia, com o ensino remoto e dar um passo adiante. Quer dizer, o vínculo agora, embora, ele ainda seja algo importante, mas não é mais a coisa primordial.
Agora, vamos poder cuidar da aprendizagem propriamente dita. A gente flexibilizou muito em 2020 a implementação do currículo, a quantidade de aulas dadas, tudo para criar um ambiente que o estudante tivesse dias mais confortáveis para continuar estudando. Uma vez que também as necessidades econômicas se agravaram, muitos precisaram se alocar precocemente no mundo do trabalho, ganhar alguma coisa para ajudar a família.
A discussão sobre a educação na pandemia, muitas vezes, parece restrita à volta presencial ou não das aulas. Mas, o que estava previsto para 2020 e está ainda no papel?
O primeiro ponto importante é dizer que principalmente no contexto da escola pública, aproximadamente 90% das matrículas de Ensino Médio estão em escola pública estadual. Temos uma diversidade incrível de pessoas, assim, de perfil socioeconômico matriculados nas escolas públicas. Então, a gente lida com um contexto de muita desigualdade de condições, de acesso a recursos materiais e acompanhamento. Às vezes, são filhos de pais não escolarizados.Estou falando porque o presencial faz falta e impacta mais a escola pública do que eu diria, a escola privada.
Não poder estar presencialmente tira a capacidade da gente reduzir os efeitos sociais na educação. O Ceará se orgulha muito porque somos o estado em que menos a renda do estudante e da família afeta no desempenho acadêmico.
Mas isso porque outras dimensões, para além do ensino, são trabalhadas na escola pública. As dimensões da identidade. Então, você precisa do professor estar ali naquele ambiente para criar uma conversa que não seja só do ensino. Que não seja só da exposição de conteúdo.
Essa dimensão não é trivial, ela é essencial para um modelo de escola que visa equidades. O que o remoto permite? A aula, né? Eu consigo transmitir? Consigo. Se for um conteúdo. Mas para o aluno da escola pública, embora seja importante, não é suficiente.
Temos concentrado toda nossa energia no básico, naquilo que é essencial para leitura de um texto, para a análise crítica de uma obra literária, para os cálculos de matemática. Hoje, todas as redes municipais e estadual estão lidando com o foco naquilo que a gente tem em cada componente curricular. Acho que em 2021 não vai mudar muito ainda da expectativa de currículo, pelo menos, na escola pública. É preciso que não se crie expectativas demais, no sentido assim, de esperar que tudo programado vai ser executado.
Retornando a 2020, entendemos que o cenário é de desigualdade, mas porque no começo do segundo semestre, a Seduc não deu às escolas a mesma autonomia que deu em 2021 para retomar ou não as aulas presenciais?
Até foi dito, mas talvez tenha sido dito já no final do ano. Quando estava na preparação para o Enem, já tinha sido autorizado as escolas a tomarem essa decisão. A secretaria estava acompanhando o que tava acontecendo no Brasil. Era muito sem saber. Havia uma preocupação muito grande. O que encorajou foram as pesquisas realizadas, não só no Brasil, mas em todo o mundo que as escolas acabavam sendo um lugar mais seguro do que as ruas. E o jovem, principalmente, que não estava na escola, estava na rua. Sem máscara, sem os cuidados devidos.
Então, de alguma forma e orientado pela Secretaria de Saúde do Estado, isso passou a ter uma visão mais positiva de encorajamento. Por isso, foi tomada essa decisão. Talvez tardia, mas muito mais por receio dos educadores e das famílias. Todo o levantamento que foi feito pra perguntar se a família achava importante, o percentual de alunos que aderiram era muito pequeno.
Então, a experiência foi abrir a escola, não para atividade curriculares, mas as escolas pudessem, caso achassem oportuno, para atividades extracurriculares. Essa foi a grande experiência necessária para a gente testar, inclusive, o protocolo de segurança sanitária. No começo do ano, acordado com o sindicato, foi dada essa prerrogativa à escola de tomar decisões de ser híbrido ou não.
Em 2020, se falava que levaríamos, pelo menos, 2 anos para recuperar o que se perdeu naquele ano. Hoje, é possível estimar um prazo para retomar esse equilíbrio na educação?
Eu acho que assim, tem duas dimensões nessa pergunta. A primeira é assim, olhando para o jovem, que está em conclusão da educação básica, está no Ensino Médio hoje, por exemplo, 3º, 2º ano, que vão sentir mais os efeitos dessa crise. Esse conceito de você aprender algo na escola pela memória, a educação ser medida por quantas informações você é capaz de memorizar, está absolutamente ultrapassado.
O que a gente precisa hoje é ensinar ao jovem como ele continua o processo de aprendizagem mesmo sem escola. Então, se a gente conseguir, nesse momento, ensinar para este jovem que já tem uma autonomia intelectual maior, que ele se aproprie dos mecanismos de busca, de pesquisa, de como continuar o processo de aprendizagem ao longo da vida, nós vamos tirar consideravelmente os efeitos.
Eu não estou dizendo que não tem um efeito negativo, tem algum efeito negativo, é claro, mas, pelo menos, a gente consegue dar a ele a oportunidade de aprender o básico da matemática, da língua portuguesa.
A minha preocupação é com os alunos que estão no processo de alfabetização. A gente ter tido aquela política de alfabetizar na idade certa gerou, ao longo do tempo, um efeito super positivo no perfil do aluno que chega ao Ensino Médio. Isso dá uma dinâmica diferente ao professor no desenvolvimento do currículo. Para este público, vamos precisar de muita atenção. Eu não sei mensurar um tempo. Espero que o Estado consiga, de novo, liderar esse movimento. Trazendo os municípios para dentro de uma ação coordenada e não cada um fazendo do seu jeito. Acho que o Estado tem a capacidade.
Quais outras dimensões podem ser destacadas em 2021 para esse cenário da educação?
Esse domínio da tecnologia por parte do professor. Isso vai gerar um efeito muito positivo. Principalmente quando a gente puder ter atividade presencial, ele volta e utiliza a plataforma remota como extensão do horário letivo. Isso pode ser utilizado como grande trunfo, inclusive, de geração de equidade, de poder chegar mais próximo do estudante, mesmo quando eles tão para além da sala de aula.
A política de distribuir chips pode se tornar permanente. O aluno entrou no Ensino Médio, recebeu um chip para ter um plano de conectividade à internet. Essa crise vai nos deixar com um uma maior capacidade de enxergar o potencial da tecnologia para a educação.
Obviamente, o ritmo da aprendizagem diminuiu. Mas os professores se aperfeiçoaram. Acho que hoje eles estão muito mais eloquentes na aula remota do que estavam no início de 2020. Então, são muitos fatores. Coisas que antes eram absolutamente tabus, passaram a ser vistas como grande oportunidade.
Você estava na Seduc há anos, quais cargos ocupou lá?
Bom, eu sou professor da rede estadual de ensino. Desde 2004. Daí eu já passei por muitos lugares. Desde a regional de desenvolvimento da educação, no caso da Crede Sobral, foi a minha aposta de entrada na gestão educacional e depois eu vim trabalhar, no final de 2008, Sefor (Superintendências das Escolas Estaduais de Fortaleza) que coordena as escolas da rede estadual na Capital.
Depois assumi a coordenadoria de gestão pedagógica que lida com o currículo de formação de professores, e de avaliação educacional, e, por último, a Secretaria do Ensino Médio Profissional.
Você pediu para deixar o cargo. O que vai fazer agora, segue em alguma outra esfera da gestão pública?
Eu tô maturando um pouquinho, né? Tenho uma pretensão de doutorado e com as atividades é muito difícil de conciliar. Então, eu vou me dar um tempo, nesses primeiros dias, para poder organizar projetos. Vou avaliar as oportunidades de formação acadêmica de outros trabalhos na área da educação.