Donas de si: mulheres refletem sobre objetificação do corpo no Carnaval

Especialista analisa a construção das relações do comportamento masculino e feminino

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Cartazes e faixas com frases de efeito ganham destaque no Carnaval
Foto: Yago Albuquerque

Carnaval e festa são quase sinônimos. A ocupação das ruas nesse período é uma manifestação cultural que acontece em todo o País. No entanto, essa liberdade é confundida com o direito sobre o corpo do outro. A época mais alegre é também a que tem mais casos de assédio ou importunação sexual, seja com um beijo forçado, um toque não consentido nas partes íntimas e até mesmo discursos disfarçados de piadas.

Esse comportamento se dá porque "historicamente, a rua sempre foi um espaço público dos homens, mulher é para ficar em casa, então quando ela está na rua é como se estivesse à disposição", conforme explica a professora Celecina Sales, do Curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Gênero, Idade e Família (Negif), vinculado à mesma instituição de ensino.

A professora define o conceito de assédio sexual como "qualquer conduta de natureza sexual que cerceie a liberdade do outro". Ressalta que esse fenômeno universal está presente em todos os lugares e em diversas épocas.

Cultural

Achar-se no direito sobre o corpo do outro, especialmente das mulheres - com as quais os casos são mais recorrentes, diz também respeito sobre como a roupa é usada para justificar tais ações. Um caso recente foi o da adolescente de 17 anos assediada por um motorista de aplicativos durante uma corrida, em Porto Alegre. Ao perceber a situação, a jovem gravou um vídeo que viralizou na web.

Em entrevista após prestar depoimento para a Polícia, o homem de 43 anos afirmou que a menina estava usando "um short tipo Anitta, uma miniblusa, com as pernas abertas no banco, me chamando atenção". Para Celecina Sales, a justificativa do motorista só reforça a relação de poder e de violência que foi criada em torno do corpo da mulher.

A pesquisadora explica que, historicamente, esse corpo era posse do homem, primeiro do pai, depois do marido. Com o movimento e a luta feminista, muitas mulheres tomaram consciência sobre si e hoje reivindicam pelo exercício dos direitos. Por que os homens podem sair nas ruas sem camisa?

"O tipo de roupa é uma desculpa que os homens acham para poder fazer esse tipo de violência, especialmente no Carnaval, quando se usa menos peças, mas isso não dá o direito de forma alguma. Não existe uma lei que a pessoa não pode usar short curto. O que faz alguém ter o direito de tocar no corpo da outra pessoa?", argumenta a professora.

A partir dessas vivências, um grupo de mulheres de Fortaleza se uniu para promover um local seguro para as foliãs. Da roda de samba, surgiu o bloco "Damas Cortejam". O nome é uma forma de questionar a posição do gênero na sociedade e dizer que elas também podem. As ações ocorrem por meio de discurso e campanhas de conscientização.

Thais Costa, uma das integrantes do bloco, conta que o repertório é todo pensado para não incluir músicas que objetifiquem a mulher e que não a coloquem numa posição inferior ao sexo oposto. "A gente tem falas durante as músicas, pega os ganchos das próprias letras e vai tentando conectar com o que acredita".

Legenda: O bloco Damas Cortejam usam discursos contra o assédio durante o período
Foto: Hiane Braun

A professora Celecina destaca como algumas composições refletem a naturalização de um comportamento machista, que pode ser identificado desde as marchinhas até as atuais músicas de brega funk. "Recentemente, ouvi alguém da Universidade falando que 'agora até quando canta essas marchinhas antigas, as pessoas estão dizendo que é violência contra a mulher'. Mas é violência, ela acontece de diversas formas, faz parte dessa cultura e a gente tem de romper com isso", explicita. "Para se ter ideia de como a nossa cultura é machista, coisas desse tipo são ditas no Congresso. É para a gente ver o nível em todos os espaços e como isso é reproduzido. É na rua, no Carnaval, e é feita pelo político do mais alto escalão", completa Celecina.

Denúncia

Apesar da gravidade do assunto, o assédio sexual só é criminalizado no Brasil em casos de relação de trabalho, por exemplo, entre chefe e subordinado, conforme consta no artigo 216 do Código Penal. No entanto, para as ocorrências rotineiras há a legislação quanto à importunação sexual, sancionada em setembro de 2018.

Tendo em vista o pouco conhecimento sobre a lei, a Defensoria Pública do Estado do Ceará lançou uma campanha nas redes sociais para conscientizar a população acerca do tema. Jeritza Braga, defensora pública e supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), explica que a importunação é "quando a pessoa pratica, sem consentimento de outra, atos libidinosos com o objetivo de satisfazer seu desejo sexual".

A defensora destaca ainda a importância de denunciar os casos. "Não pode deixar para lá. À medida que as pessoas denunciam, vão ter registro e estatísticas, vamos poder pedir por políticas públicas. Se a gente tem um número grande de pessoas reclamando sobre determinada situação, há maiores chances das atenções se voltarem para isso". A mensagem que fica é de que no Carnaval tudo vale, só não invadir o espaço do outro e sem consentimento.

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