Bloco Turma do Papelão: pessoas em situação de rua competirão pela primeira vez na Domingos Olímpio

Com o tema "Nenhum direito a menos", a agremiação estreia como competidora no tradicional desfile ao lado dos principais grupos do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza

Escrito por Redação ,
Legenda: A Turma do Papelão é primeiro bloco autenticamente formado por pessoas em situação de rua de Fortaleza
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

"Querem calar minha voz e privar os meus direitos/ Hoje eu sei meu lugar, disso eu não abro mão". Ao som dos tambores e do coro da música, a alegre Verinha, 40 anos, dança e rodopia descalça no chão da Praça do Ferreira, abraçada com a bandeira do Movimento População de Rua. Um largo sorriso se abre ao declarar a vontade de ser da comissão de frente do bloco Turma do Papelão no desfile de Carnaval, às 16h20 desta segunda-feira (24), para mostrar que "aqui não tem tristeza".

É noite de ensaio. A Turma do Papelão, primeiro bloco autenticamente formado por pessoas em situação de rua de Fortaleza, prepara-se para sair pelo terceiro ano consecutivo. Em 2020, porém, tem mais um motivo para comemorar.

Com o tema "Nenhum direito a menos", a agremiação estreia como competidora no tradicional desfile da Domingos Olímpio, ao lado dos principais grupos do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza.

Legenda: Verinha faz parte da comissão de frente do bloco Turma do Papelão
Foto: FOTO: CHICO GOMES

Durante o ensaio na Avenida, dezenas de pessoas assistem ao grupo repassar a batida, o ritmo e a letra do samba-enredo. No tambor, o paraibano José Arimateia, 34 anos, homem alto, negro e forte, toca com seriedade. Para ele, cada ensaio é um momento de emoção e de alegria em seu penoso cotidiano.

"Vamos descer a Avenida a todo vapor, com gosto", diz, animado. "Representar a rua é representar todos os moradores de rua. É falar da convivência e sofrimento que nós passa", explica em seguida.

Legenda: Para José Arimateia, cada ensaio é um momento de emoção e de alegria em seu penoso cotidiano
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Contemplada pelo Edital de Apoio da Prefeitura de Fortaleza, realizado por meio da Secretaria Municipal de Cultura (Secultfor), a Turma do Papelão é formada por cerca de 100 pessoas em situação de rua, em sua maioria homens jovens, de diferentes bairros da Capital cearense, unidos pelo desejo sincero de pular Carnaval e de protagonizar o retrato da própria história na Domingos Olímpio.

Guiando a turma está o arte-educador André Luís Foca, 31 anos, que dedicou mais da metade de sua vida a trabalhos culturais e assistenciais voltados para a população em situação de rua.

Parcerias

Projetos de capoeira e percussão desenvolvidos por ele com apoio do Instituto Compartilha e do Coletivo Arruaça foram protagonistas para o nascimento do bloco. André ressalta outras importantes parcerias para concretizar a agremiação e faz questão de citar cada uma delas, embora a lista seja robusta.

Fórum de Rua, Cia Estrelas da Rua, Instituto de Dança Goretti Quintela, Coletivo Niad, Pastoral do Povo da Rua, Casa da Sopa, Associação de Amparo ao Paciente com Tuberculose, Nosso Lar Francisco de Assis, Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza e Movimento Nacional da População de Rua.

A proposta da Turma do Papelão é gerar pertencimento dessas pessoas, a quem quase tudo foi negado, junto à maior festa popular do Brasil.

"É aquela coisa do 'estou sempre aqui, mas sempre do lado de fora", destaca André sobre o sentimento de invisibilidade compartilhado entre as pessoas em situação de rua. "A galera ama tocar. Esquece tudo e transcende quando faz aquilo. Por que não um bloco de Carnaval?", perguntou-se o arte-educador em 2017.

No ano seguinte, o bloco desfilou pela primeira vez, com 50 pessoas, fantasias improvisadas e poderosas mensagens sociais. "Entrar na avenida é muito forte, muito rico e gratificante. Será o momento de eles se sentirem parte dessa história", acredita.

No chão da Praça

"Vivi muitos anos em cima dessa praça", diz Janete da Silva de Jesus, 45 anos, uma mulher baixinha, com alguns dentes a menos no sorriso. Natural de Teresina, no Piauí, veio "fugida" com um namorado para Fortaleza. A maior parte de sua vida foi em situação de rua e, há um ano, conseguiu o benefício do aluguel social.

Legenda: Janete acredita que o bloco cumpre o objetivo de mostrar a trágica realidade de quem vive em situação de rua
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Janete é entusiasta da Turma do Papelão porque acredita que o bloco cumpre o objetivo de mostrar a trágica realidade de quem vive em situação de rua.

"É uma coisa que fala da nossa história e tudo isso talvez mexa na consciência de quem está assistindo", reflete. "Você passa e pergunta a uma pessoa qual a hora e tem gente que nem olha porque você tá mal trajado, com cabelo assanhado. Ela lhe ignora, como se a gente fosse nada. Como se esse banco tivesse perguntado a hora", indigna-se.

Otimismo

Escolhida para ser destaque no desfile, Loba Vion, 44 anos, uma travesti cheia de classe, prefere ver a vida com olhar mais otimista, mesmo diante dos problemas. Adepta à folia, afirma ter participado de muitos blocos de Carnaval na juventude e ressalta a Turma do Papelão como um dos mais animados. "A turma é ótima, maravilhosa. Me divirto muito. É uma coisa diferente na avenida".

Legenda: Loba Vion vive em situação de rua desde os 14 anos de idade, mas destaca otimismo acerca dos problemas que enfrenta
Foto: FOTO: CHICO GOMES

Ela abusa da palavra "maravilha" diversas vezes e diz que nada a abala, fora o mau relacionamento com a família, motivo para estar na rua desde os 14 anos de idade.

"Aqui o pessoal é maravilhoso. Tive que aprender muita coisa. Já correram atrás de mim com um facão, mas eu sempre volto. Acho bom aqui porque é onde tenho amigos. Minha história é maravilhosa, por pior que eu possa passar, eu vivo bem e me acho ótima", afirma.

Grito na Avenida

Como simbologia, a Turma do Papelão quer representar as nuances da vida de uma pessoa em situação de rua. O papelão é o ganha-pão, é o instrumento de trabalho, é onde dorme, e representa também o sentimento de resistência, explica o apoiador Antônio Teixeira, 42 anos, membro do Instituto Compartilha, que realiza atendimento assistencial e acompanhamento desse público.

Na prática, o primeiro bloco oficial de moradores de rua no Carnaval de Fortaleza deverá levantar voz de protesto por saúde, dignidade, moradia, cultura e cidadania, reivindicando a democracia que a festa diz pregar. Na Avenida, Antônio ressalta, "não vamos romantizar a situação, porque existe muita dor. Vamos carnavalizar algumas coisas".

Estima-se que em Fortaleza 1.718 pessoas vivam em situação de rua, estando concentradas em maior número no Centro e na Beira Mar. Para o desfile, são esperados cerca de 100 participantes, uma pequena representação, mas que promete fazer bonito ao apresentar o samba-enredo cujo trecho diz:

"Então me deixe passar, quero cantar com meu povo/ Por dignidade e respeito, escute essa canção/ Nenhum direito a menos pro meu povo".

Programação do Carnaval de Fortaleza

Domingos Olímpio
Desfiles por ordem de apresentação - Av. Domingos Olímpio, S/N - Gratuito

Domingo (23/02)
A partir das 19h - Maracatus Nação Baobab, Nação Fortaleza, Vozes da África, Pici, Az de Ouro e Rei do Congo. Show com Yane Caracas

Segunda-feira (24/02)
A partir das 16h40min - Bloco Turma do Papelão, Bloco Unidos da Vila, Bloco Império da Vila, Bloco Garotos do Benfica, Bloco Turma do Mamão, Bloco Doido é Tu, Cordão Vampiros da Princesa, Bloco Balakubaku Folia, Cordão Princesa do Frevo, Cordão As Bruxas, Bloco Amigos do Zé, Bloco Prova de Fogo e Bloco Zé Almir. Show com Renato Black

Terça-feira (25/02)
A partir das 17 horas - Afoxés Acabaca, Oxum Odolá, Omõrisá Odé, Filhos de Oyá e Obá Sá Rewá; Escolas de samba Corte do Samba, Unidos do Acaracuzinho, Imperadores da Parquelândia, Barão Folia, Girassol de Iracema, Império Ideal, Tradição da Bela Vista e Colibri

Aterrinho da Praia de Iracema
Av. Beira Mar, S/N - Meireles
Das 18h à 0h. Gratuito

Domingo (23/02)
Roberta Fiúza (18h), Luxo da Aldeia (19h30), Os Transacionais (21h), Gilberto Gil (22h30). Djs: DJ Bruna Queiroz e Maestro Mecânico e Bloco do Vinil

Segunda-feira (24/02)
Banda Dubaile (18h), Pedro Falcão e Sertônica (19h30), Camaleões Selvagens (21h), BaianaSystem (22h30). Djs: DJ Adrian Brasil e Bloco do Vinil

Terça-feira (25/02)
Renno (18h), Renato Black (19h30), Os Alfazemas (21h), Bloco do Silva (22h30). Djs: DJ Bruna Queiroz e Maestro Mecânico e Bloco do Vinil
Show da Banda Patrulha

Mais atrações
O Ciclo Carnavalesco de Fortaleza prossegue até a próxima terça-feira (25) com diversas atrações em vários polos da cidade. Confira programação completa no site.

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