O que estimula o hábito de maratonar séries?: “Já passei 14h seguidas assistindo episódios”

Pesquisador de ficção seriada aponta estratégias narrativas, afetivas e tecnológicas que atraem o público para as maratonas e os fãs de séries contam suas trajetórias até virarem maratonistas

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
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Legenda: Plataformas de streaming contribuem para o fortalecimento do hábito de maratonar séries
Foto: Shutterstock

Se você tem o hábito de maratonar séries, provavelmente já perdeu em algum momento a noção do tempo, emendando vários episódios seguidos até descobrir todos os desfechos da história. Com o lojista Robson Monteiro, 30 anos, por exemplo, essa prática é bastante comum, e ele chegou até mesmo a dedicar 14 horas do dia para finalizar uma temporada. 

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Este movimento o acompanha desde a adolescência, quando começou a frequentar as locadoras e a substituir as ofertas da TV aberta pelo conteúdo consolidado integral. “Geralmente alugava no final de semana e tinha que terminar tudo até acabar o domingo para devolver os DVDs”, lembra.

Segundo Robson, entre os fatores que impulsionam esse tipo de comportamento em seu cotidiano até hoje - pois dificilmente passa um dia sem ver uma série -, está a forma como cada episódio termina, deixando-o ansioso para ver o próximo e maratonar o mais rápido possível. 

“A minha maior maratona acredito ter sido a segunda temporada de 'Greys Anatomy'. São 27 episódios e assisti 20 no mesmo dia. Acho que isso dá umas 14 horas. A segunda temporada dessa série me encantou muito com a história e os episódios bem dramáticos. Me marcou tanto que fiz até uma tatuagem”, partilha.
Robson Monteiro

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Legenda: Robson tatuou uma frase em referência à série "Greys Anatomy"
Foto: Arquivo pessoal

As vantagens listadas por Robson incluem o entretenimento e a distração. “Ainda é bom que maratonando rápido consigo fugir de ‘spoilers’. Durante a quarentena, o que mais fiz em casa foi ver série e isso me acalmou em vários momentos que eu estava com muito medo. Foi uma válvula de escape”, aponta.

Conceito de maratonar

A definição de maratonar séries, conforme aponta Marcel Vieira, professor de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador do Grupo de Produção e Pesquisa em Ficção Seriada (Grufics), é um tema de “disputa” acadêmica.

Há aqueles que relacionam a uma certa quantidade de episódios, a partir do momento em que se assiste mais de dois em sequência, por exemplo, mas há os que defendem um conceito mais ligado à experiência do espectador, que é o caso do pesquisador entrevistado.

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Legenda: Elenco de "Greys Anatomy"

“Eu tendo a achar que o ‘Binge-Watching’, essa maratona de séries, é mais uma experiência ligada à própria dinâmica das plataformas e de uma certa lógica de programação que convida à assistência continuada. Então, mais do que quantidade de episódios, eu acho que a maratona de séries é uma experiência espectatorial. É você ser convidado a assistir uma certa programação quando quiser, na sequência que quiser, quantos episódios quiser, sequencialmente, sem estar limitado pela grade de programação da televisão linear”, argumenta.
Marcel Vieira
Professor de Cinema e Audiovisual da UFPB

Em resumo, de acordo com Marcel, não é só assistir muito ou assistir em sequência, mas  assistir dentro de um universo que convida você a permanecer naquele produto, sequencialmente, por meio dessa ideia de serialização.

Estratégias

Mas o que tem estimulado essa experiência, capaz de nos fazer perder noites de sono ou até deixar de lado algumas atividades sociais para ficar vidrado na telinha? Robson confessa já ter faltado aniversários para não perder uma estreia, e até ter assistido séries que não aprecia tanto, só para não perder o assunto nas rodinhas de amigos.

Robson
Legenda: Os gêneros preferidos de Robson são dramas intensos ou comédias escrachadas
Foto: Arquivo pessoal

Marcel Vieira cita uma pesquisa da professora Simone Rocha, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dedicada a estudar uma estratégia narrativa presente nas produções mais recentes. “Ela tem mostrado como a antecipação do incidente incitante em séries dramáticas tem se estabelecido como uma certa prática de produção - sobretudo nas séries nacionais, que é a amostragem da pesquisa - para um convite a permanecer naquele mundo ficcional. 

Ou seja, ao invés de você ter uma exposição inicial do conflito que vai dar num ponto de virada e em um incidente incitante mais na frente no episódio, várias séries começam com o momento já de crise, que faz com que você queira saber o que está acontecendo em sequência”, explica.
Marcel Vieira
Professor de Cinema e Audiovisual da UFPB

Porém, Marcel ressalta que isto não é um padrão, e, inclusive, acredita que não necessariamente são estratégias narrativas que convidam ao consumo continuado. “Às vezes são estratégias afetivas. Se você vê muitas séries que são supermaratonadas nas plataformas, são séries antigas. ‘Friends’, ‘The Office’, ‘Greys Anatomy’, que usavam estratégias narrativas da televisão linear, mas que convidam a uma experiência afetiva de consumo continuado”, destaca.

Telenovelas disponíveis nas plataformas de streaming, aliás, tiveram uma busca considerável durante a pandemia e isso também dialoga com essa proposição.

“Talvez, as estratégias que mesclem esse envolvimento afetivo, pessoal, sensorial com a história, e essas técnicas de envolver conceitualmente o espectador, de ele tentar descobrir o que está acontecendo, que é muito comum nesse tipo de narrativa, seja o mais recorrente”, pontua.
Marcel Vieira
Professor de Cinema e Audiovisual da UFPB

A cearense Danielle Souza, 43 anos, sempre foi noveleira e identifica semelhanças entre esse universo e o das séries. “Acho que série tem um pouco de novela, por um enredo que prende a gente. Mas a diferença de uma para a outra é poder assistir sempre que tem um tempo livre, sem ter que esperar o próximo capítulo, porque pense em uma pessoa ansiosa para saber o que vai acontecer sou eu”, afirma, em referência aos processos espaçados da TV aberta.

Danielle Souza
Legenda: Danielle Souza gosto das séries médicas, de investigação/advocacia, de família, de aventura, de comédia e de época
Foto: Arquivo pessoal

A primeira série que ela assistiu foi “Barrados no Baile”, em 1994. “Era na época da adolescência e, por ser uma série de adolescentes, sempre tinha uma coisa ou outra que parecia acontecer também comigo”, explica, sobre o sentimento de identificação.

O hábito de maratonar se instalou aos poucos. “Acho que a primeira série que maratonei  foi Prison Break. Assistia seis episódios por dia, de 18h à 0h. Uma série que prende a gente para saber como que sai de um presídio e fica foragido da polícia tão fácil. Eu gosto que tenha mais de três temporadas e mais de 14 capítulos”, evidencia Danielle, que costuma assistir os episódios com as três filhas, de 25, 13 e 7 anos.

Plataformas de streaming

Com a plataformização dos conteúdos, o pesquisador Marcel Vieira chama atenção para outra importante contribuição deste processo ao hábito de maratonar, tendo em vista a possibilidade de reorganização das experiências no tempo e no espaço. 

“Vários autores apontam que uma das estratégias tecnológicas, digamos assim, mais efetivas para estimular a maratona, foi a criação da lógica de você pular os créditos, né? Então, assim, acabou o episódio, você tem ali dois, três, quatro, cinco segundos para decidir se vai parar ou se ele já automaticamente pula para o próximo. É o que chamam de conveniência tecnológica. Você não precisa nem apertar nada. A própria plataforma já vai passando de um para o outro. Essas conveniências tecnológicas foram muito importantes para estimular essa cultura do consumo maratonado”, acrescenta o professor.

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Legenda: "O momento de assistir série me leva a desligar do mundo", afirma Danielle Souza
Foto: Arquivo pessoal

Se este comportamento provoca ganhos ou perdas para o consumidor, no fim das contas, é algo que Marcel também convida à reflexão sob uma ótica relativa. Para explicar isso, o pesquisador começa fazendo referência à teórica da televisão italiana Milly Buonanno, segundo a qual ver tudo em sequência tira do usuário a experiência de fabular entre os episódios.

“Esse consumo continuado claramente tira essa essa dimensão da experiência narrativa como a experiência do tempo, né? Por outro lado, as plataformas tendem a programar a sua distribuição de conteúdos a partir da dinâmica que convida a essa experiência. Então, muitas narrativas longas, na verdade, são narrativas de arco único, que funcionam quase como um filme longo, que é seccionado em episódios, e aí você não tem mais a experiências estética, inclusive, sensória, narrativa do episódio em si, ou seja, de ver um grande episódio”, observa.
Marcel Vieira
Professor de Cinema e Audiovisual da UFPB

No fim, como resume o pesquisador, são lógicas narrativas diferentes que convidam a experiências narrativas diferentes. E cada uma ao seu modo vai permitir ao espectador se relacionar com aquele mundo ficcional de um jeito ou de outro.


 

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