Entre paixões e prisões, contos sobre o universo feminino integram livro de escritor sobralense

“Dama Inversa” reúne histórias nas quais o advogado, escritor e professor Mendes Júnior se desafia a tentar escrever sob a perspectiva de uma mulher

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O escritor, advogado e professor Mendes Júnior: mergulho na complexidade do sentir das mulheres
Foto: Divulgação

Está lá, no texto de abertura de “Dama Inversa”, mais recente livro do escritor cearense Mendes Júnior: “Minha dama não é lilás, não é furta-cor, não é carnaval, não é novena; minha dama não é azeda, não cheira a manga, não tem gosto de ambrosia, não é castanha assada nem macaxeira cozida. (...) minha dama é silenciosa, transparente e proibida; ela é infatigável, sólida, valiosa e artista”.

A julgar pelo mosaico de características referentes ao perfil da personagem – que pode ser tantas e também uma só – é possível inferir a imersão no universo feminino empreendido pela obra em questão, publicada pela editora Chiado Books. Por meio de 18 contos, o exemplar rompe os véus do cotidiano tendo como ponto principal o sentir das mulheres, entre mistérios e paixões, volúpias e encarceramentos.

Legenda: Escritor sobralense aprecia narrativas curtas e tem buscado se aprofundar em diminuir cada vez mais o tamanho dos textos
Foto: Divulgação

“A ideia para o livro surgiu antes mesmo de eu percebê-la”, conta Mendes Júnior, natural do município de Sobral, interior cearense. “Sempre escrevi e guardei em gavetas e pastas textos desenvolvidos em lugares, sem qualquer pretensão inicial, meio sem compromisso, mas sabendo que um dia aquilo poderia virar algum parágrafo, uma página ou quem sabe seu destino fosse o esquecimento”. 

Virou livro. Mais: consolidou o desejo do autor de escrever sobre as dinâmicas intrínsecas às mulheres. Mendes explica que revisitou os contos e percebeu haver uma aproximação com o tema – ainda que o tempo de feitura dos textos se confunda na própria dobra dos ciclos. Alguns contos são antigos, nunca publicados; outros são recentes, construídos a partir de um projeto. 

“Sempre fui muito curioso acerca do universo feminino. Sinto-me mais à vontade escrevendo como mulher. Resolvi me desafiar, ou seja, tentar escrever no corpo de uma mulher. Falo de corpo pois o livro é, em parte, uma luta através do corpo, como uma bandeira”, contextualiza o escritor.
Mendes Júnior
Escritor

Os impulsos dos gestos

Tomando como referência essas escolhas conceituais, no plano narrativo merece destaque a lapidação vocabular realizada por Mendes e a construção das cenas. Todas as histórias prezam por uma ambientação em locais pequenos, fechados, onde se desenvolvem mínimos gestos e acontecimentos capazes de prover múltiplas reflexões. 

De acordo com o autor, a opção por esse recorte está sintonizada com o pensamento de que as mulheres vivem aprisionadas em muitos preconceitos. “Não de sua parte; ao contrário, elas já são maiores do que tudo isso. Contudo, o patriarcalismo ainda predomina em algumas ‘cabeças’, o que é péssimo”, lamenta.

“A literatura feminista nunca foi tão intensa; porém, será que os homens estão lendo e aprendendo com isso? Acho que a mulher continua, na cabeça de alguns – apesar de tanto avanço – naquele espaço limitado, por isso a representação”, completa. Não sem motivo, ele sublinha que o ponto fulcral do livro é percorrer paisagens cuja riqueza e intensidade substanciais dos diferentes femininos possam avolumar êxtases e movimentos.

Legenda: "A literatura feminista nunca foi tão intensa; porém, será que os homens estão lendo e aprendendo com isso?", questiona Mendes Júnior
Foto: Ilustração de Raisa Christina

“Sempre optei por tipos comuns, identifico mais neles aquilo que busco nos personagens. São pessoas que encontramos nas ruas, nas paradas de ônibus, nas praças... E tento alcançar suas dores, aflições e dúvidas”, dimensiona. “No caso da ‘Dama Inversa’, não há nada diferente disso, não há heróis. As mulheres como personagens principais têm suas dores exploradas, através de pequenos desvios sexuais, daí a natureza do título. Dama dá uma ideia de recatamento, e o inverso é o contraponto”.

Quanto a escrever sob a perspectiva feminina, Mendes diz ser interessante o fato de que somos tentados a nos aproximar das diferenças e descobertas. “Simplesmente eu queria me sentir fora do meu lugar. Foi estranho, mas aprendi muito. E – é bom que se diga – não consegui ser uma mulher, apesar de ter tentado”.

Essas possibilidades de experimentação são outro componente importante da obra. No conto “O Cio I: De quando em quando”, por exemplo, um dos primeiros da seleção, a narradora, em primeira pessoa, afirma que só consegue escrever se estiver no cio, tomada por uma pulsão sexual; por sua vez, em “Night in St. Cloud”, uma mulher imagina estar em um quadro do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944) e se apaixona pelo homem que nele se encontra, ambientando os pensamentos em Londres, mergulhando em suas próprias elucubrações.

No texto da orelha do livro, assinado pela escritora Ana Miranda, há o destaque para as demais histórias do material – atentando também para o fato de que é possível perceber nos contos, todos eles curtos em sua extensão, a repetida presença da mãe, bem como desavenças, indefinições, homens que são mulheres e mulheres que são homens.

Legenda: Ilustração presente no conto "O catador de poemas"
Foto: Ilustração de Raisa Christina

A romancista considera ainda que, “em linguagem refinadíssima, com ecos de uma dicção da advocacia e da literatura clássica, Mendes Júnior constrói um mundo irreverente, com um leve toque de irrealidade, feito de estranhamentos, hostilidades, incompreensão, desejo, repulsão, e abordando uma sexualidade crua, um amor inóspito”.

Processos de escrita

A respeito dessa “dicção da advocacia” sublinhada por Ana, o autor confessa que há tempos busca um distanciamento da linguagem jurídica. Contudo, conforme a própria escritora que assina a orelha do livro considera, ele não conseguiu abandonar completamente um vocabulário mais formal na obra. 

“Me penitencio por isso. No meu caso, tratando de tipos tão comuns, não há vantagem nenhuma. A influência que ela exerce é a incansável vontade de me distanciar dessa influência”, diz Mendes. 
Mendes Júnior
Escritor

Quanto ao processo de escrita do material – que pode ser adquirido, em Fortaleza e autografado, na Livraria Lamarca; em Sobral, no Café Jaíbaras, no Becco do Cotovelo; e nas livrarias virtuais Amazon, Martins Fontes, Submarino e Chiado Books – o autor julga este ser mais confortável quando apenas colhemos “pedaços” de amigos, conhecidos ou amores. 

Nessa dinâmica, há três contos que foram pensados para mulheres específicas, quando apenas a uma delas foi possível dedicar. “Estes são mais difíceis. E como são contos curtos, as palavras precisam ser muito bem escolhidas”.

A obra ainda apresenta um bem-vindo diálogo entre textos e ilustrações, a partir dos desenhos da artista visual Raisa Christina. Em cada um deles, é marcante sobretudo o trabalho de representação da sexualidade, com traços capazes de evocar lascívia, doçura e paixão.

Legenda: O conto "Rosita de Cañas", presente na obra, ganhou esta ilustração da artista visual cearense Raisa Christina
Foto: Ilustração de Raisa Christina

“A Raisa Christina é uma talentosa artística plástica, com traços inconfundíveis. Consegue abordar uma sexualidade incomum na sua obra. Convidei-a para participar do projeto, mas já imaginava os contos ilustrados por ela antes de nos conhecermos. Sempre gostei dessa relação entre escrita e imagem, algo me toca quanto a isso. E ela não só é sensível, mas também uma escritora linda. Imaginei os contos orais e estéticos”, comenta Mendes Júnior.

Leitor de muitos contistas – embora, para “Dama Inversa”, as maiores influências tenham sido o romancista Nelson Rodrigues (1912-1980) e a poeta e dramaturga Hilda Hilst (1930-2004) – o sobralense ainda sublinha o gosto por narrativas curtas. Não à toa, o primeiro livro assinado por ele, “O engraxate e outros suicidas”,  também seguiu esse mesmo rastro, igualmente reunindo contos. “Tenho buscado me aprofundar em diminuir cada vez mais o tamanho. Estou criando nesse momento algo assim”, adianta.

 


Dama Inversa
Mendes Júnior

Chiado Books
2020, 156 páginas
R$ 33

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Sahmaroni Rodrigues

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