Artistas e gestores cearenses traçam expectativas e estratégias para a Cultura em 2020

O equilíbrio entre otimismo e desconfiança é realidade comum aos trabalhadores da arte

Escrito por Antonio Laudenir e Diego Barbosa , laudenir.oliveira@svm.com.br diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Representantes de diferentes segmentos da cultura no Estado tecem reflexões

A extinção do Ministério da Cultura (MinC) inaugurou a série de dilemas enfrentados pelos trabalhadores da cultura brasileira em 2019. A ofensiva contra uma arte dita "degenerada" revelou cenário no qual os artistas foram alçados à categoria de inimigos. Promessa de campanha, o desmonte protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro traduz a decadência do diálogo e a exaltação da intolerância como moeda das relações.

Cenário horripilante, o mesmo País que testemunhou em janeiro o extermínio de um importante ministério encerra dezembro em meio às cinzas do atentado à bomba direcionado ao grupo Porta dos Fundos.

Qualquer diálogo básico com quem sobrevive diretamente na área evidencia um misto de preocupação, revolta e até mesmo esperança. Enquanto os escombros do MinC sobrevivem como "puxadinho" do Ministério do Turismo, censura e cortes no investimento sinalizam pessimismo.

Paradoxalmente, produções nacionais eclipsaram a crise com reconhecimento internacional. Em maio, o cinema deu exemplo. A indústria cinematográfica foi destaque com as premiações de "Bacurau" (Kleber Mendonça) e "A Vida Invisível" (Karim Aïnouz), no Festival de Cannes.

Inédito, o feito em terras estrangeiras iluminou um segmento que movimenta mais de 25 bilhões de reais por ano e representa 0,46% do PIB brasileiro. O crescimento é de 8,8% ao ano e emprega mais de 330 mil pessoas. Os dados são da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Legenda: "Pacarrete", do diretor Allan Deberton, ganhou oito prêmios no 47º Festival de Cinema de Gramado

O diretor cearense Allan Deberton protagonizou dias de revolta e glória. Também produtor, teve o projeto "Transversais" (série inscrita num edital de TV Pública) boicotado por Bolsonaro. Praticamente na mesma semana do caso de censura, seu novo filme, "Pacarrete", consagrou o cinema nordestino e cearense ao levar oito prêmios no 47º Festival de Cinema de Gramado.

Segundo Deberton, o filme dialoga com o Brasil de agora. A protagonista, vivida por Marcélia Cartaxo, retrata, ao mesmo tempo, uma personagem que sempre reclamou, em vida, a falta de valorização do artista, o respeito à mulher, aos nossos artistas que envelhecem e são esquecidos.

"É importante falar destes temas pois precisamos, mais do que nunca, nos manter otimistas e perseverantes. Nunca o Brasil foi tão respeitado cinematograficamente, com obras a todo instante fazendo parte de grandes festivais internacionais. É esta ingestão de autoestima que precisamos dar para nosso povo, para que tenhamos orgulho de nós mesmos", descreve.

"Pacarrete" será lançado no primeiro semestre de 2020 e Deberton aponta outros desafios como filmar a versão longa-metragem de seu premiado curta, "O Melhor Amigo" (2013). Outra perspectiva é "Feito Pipa", cujo roteiro assinado por André Araújo foi desenvolvido no Porto Iracema das Artes.

"Ter melhor compreensão da importância cultural e econômica do setor, discutir as fragilidades e tentar recuperar o tempo perdido. Para isso acontecer, só se for uma reviravolta muito grande. A boa notícia é que encerramos o ano com André Sturm como Secretário do Audiovisual. Então vamos torcer", projeta Deberton.

Ter voz

Na contramão de outras regiões brasileiras, o Ceará sediou elogiadas experiências no âmbito da criatividade artística. Particularmente, a cantora Luiza Nobel destaca, de 2019, as participações no Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes e no Festival da Juventude.

Outra alegria foi a vitória no Festival "Elas por Elas", organizado no Rio Grande do Norte. A presença no espetáculo "Inflamável", promovido pela Bienal Internacional de Dança também é orgulho.

Legenda: A cantora Luiza Nobel contempla no coletivismo a força para superar adversidades

Do ponto de vista do âmbito local, Luiza divide a existência de forte movimentação entre artistas negros e mulheres. Há 10 anos na labuta dos palcos, a cantora encara, em 2020, o lançamento de um single com o cantor Assun e mais uma parceria com Lorena Nunes, Jeff Pereira e Caiô no "Show Preto". Não estar sozinha na luta é uma arma.

"O coletivo é muito importante, para nos conhecermos e compartilhar trabalhos. Eu vim muito dessa ideia do coletivo. Como o 'Nós, Vós, Elas', o 'Negra Voz', o 'Samba Delas' e o 'Pérolas Negras'. O 'Show Preto' se propõe a ter quatro artistas negros dentro desse processo totalmente novo. Será mais uma oportunidade de atuar coletivamente e isso só tende a crescer", completa Luiza Nobel.

Se a música cearense contempla no coletivismo a força para superar adversidades, a literatura também enfrenta carências históricas com a união de forças. A observação é do escritor Talles Azigon. Coordenador do eixo "Literatura, Juventude e Periferia" na última Bienal Internacional do Livro do Ceará, o autor foi confirmado como um dos curadores da edição de 2021.

Para ele, "2019 foi uma espécie de apogeu de uma literatura que se esquiva de uma crise". Azigon reforça o quanto a presença de saraus, slams, clubes de leitura, feiras, encontros, bibliotecas comunitárias e editoras independentes acentuam a criatividade e uma luta mais forte do que qualquer mercado. São iniciativas feitas na raça, porém alvo de exclusão durante décadas. Não começaram em 2019 e tampouco acabarão em 2020.

"A censura chama atenção dos meios de comunicação, sempre, mas o silenciamento também deveria chamar. Esses grupos existem e resistem ao silenciamento de todos os dias e de todos os anos, a literatura de mulheres negras, de pessoas das periferias, LGBTQI+, os saraus e atividades de arte na periferia perseguidos e criminalizados nessa e em todas as gestões não começaram hoje", argumenta. Quer apoiar uma literatura viva e atuante no Ceará? A estratégia é participar e chegar junto desses movimentos artísticos e culturais.

O apoio a essas demandas independestes é um caminho. Ganha fôlego maior quando a situação dos equipamentos públicos destinados à leitura no Estado entra no debate.

Legenda: O escritor Talles Azigon é coordenador do eixo "Literatura, Juventude e Periferia"

Azigon critica a situação da Biblioteca Municipal Dolor Barreira e espera que os cinco anos de fechamento para reformas da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel não sejam em vão.

"Só inaugurá-la não será suficiente, vamos ter que torcer para que ela não caia nas garras do Instituto Dragão do Mar que centraliza quase todos os equipamentos culturais do Estado hoje, e que sua administração faça jus a todos os anos de espera que nos privou de uma biblioteca de grande porte no Ceará, uma administração que entenda que a literatura é outra, totalmente diferente da literatura de quando a biblioteca foi fechada para reforma, e que até o conceito e o para quê serve uma biblioteca são muito diferentes", assevera.

Azigon segue nos estudos e na escrita de três novas publicações (sem previsão de lançamento) e destaca para 2020 as realizações da Bienal Itinerante de Poesia (BIP) e o 4º Encontro de Saraus do Ceará.

Enfrentamentos

A descontinuidade das políticas públicas voltadas à cultura no Brasil afeta igualmente as artes cênicas, compreende o teatrólogo Hiroldo Serra. Numa instância mais íntima, a passagem de 2019 significou um baque pesado para o realizador.

Se o teatro cearense ainda amarga a partida de uma referência, com a morte do dramaturgo, ator e diretor Haroldo Serra (1934-2019) em junho, o entrevistado perdeu o pai e um exemplo de criatividade e dedicação.

A existência da companhia Comédia Cearense traduz essa trajetória luminosa. Completou 62 anos e, mesmo sem a presença de Haroldo ou qualquer aporte de editais públicos, produziu cinco espetáculos infantis e um adulto. Girou por três cidades do interior e fez temporada (com casa cheia) no Arena aos domingos, com a peça "A Psicanalista Surda".

Legenda: A companhia Comédia Cearense fez temporada aos domingos com a peça "A Psicanalista Surda"

O depoimento é de quem hoje cuida de um legado que resistiu à Ditadura Militar Brasileira (1939-1945) e às inúmeras mudanças nas políticas públicas voltadas ao teatro no Ceará. "Tenho impressão, que, em 2020, deve-se sofrer muito com essa questão desses editais federais (...) Em nível estadual e municipal, eu penso que talvez se mantenham as mesmas políticas, embora sentimos: elas nunca são suficientes, não conseguem atingir a maioria dos grupos", alerta o produtor cearense.

Diante de tal contexto, é necessário diálogo. "Alguma secretaria oferece o edital, você ganha, mas não tem um outro apoio de mídia, ou outro suporte de ir buscar o recurso junto ao grupo (...) Tenho ouvido da maioria das pessoas que ninguém consegue captar nada. Então, não é só fazer o edital e dizer, 'toma, vai captar'. Não temos acesso. Tem que haver uma interlocução entre secretarias e empresários para que, quando você for contemplado, já exista aí uma ponte para o que você vai captar", sugere.

Dois poderes

Gilvan Paiva e Fabiano dos Santos Piúba, respectivamente secretários de Cultura das esferas municipal e estadual, reforçam as incertezas e ausência de debate com a gestão federal. A fala dos gestores, entretanto, reserva otimismo para 2020.

Ambos lideram Pastas em situações antagônicas. À frente da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) desde 2018, Gilvan adentra o último ano da era Roberto Cláudio. Por sua vez, Piúba encara o segundo ano, do segundo mandato, de Camilo Santana. Em comum, o discurso dos dois políticos aponta um 2019 atípico no percurso da cultura no Brasil.

Gilvan compreende que a política voltada à cultura no município foi encontrando caminho próprio ao longo dos oito anos de gestão. "Consideramos que temos um calendário consolidado, com eventos, projetos e editais regulares. Festival de Teatro, Edital das Artes. Há um fomento maior".

De 2019, o mandatário destaca a força do Carnaval. A população abraçou o calendário, mesmo com as ruas de Fortaleza sofrendo com os ataques das facções. A Virada Cultural foi outra ação elogiada. O lema do novo ano é não desacelerar.

"Estamos numa fase de maior protagonismo dessa articulação. Maior sintonia com a classe artística. Quando temos dificuldade, sentamos, vemos e retomamos. Vivemos cenário dos melhores com atividades, reconhecimento. Isso dá um ânimo para entramos nesse último ano de gestão com a disposição renovada", defende.

As radicais mudanças nos destinos da cultura por parte de Brasília são minuciosamente refletidos por Fabiano dos Santos Piúba. Ex-diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do extinto MinC (2009-2011 e no ano de 2014), o historiador e educador é voz oportuna para se depreender os rumos das artes nos próximos meses.

A ausência de debate com a União é impasse. "Uma coisa são nossas posições políticas e visão de política cultural, a outra é a relação institucional que ela é respeitosa. Independentemente de quem está no Governo, nós, Governo Estadual do Ceará ou outros governos municipais e estaduais temos relações institucionais por conta de convênios importantes", explora o secretário.

A fala de Piúba ressalta a articulação por meio do Consórcio Nordeste. A empreitada nascida em julho firma parceria jurídica entre as nove unidades federativas da região. A ideia é facilitar o desenvolvimento e execução de políticas públicas. A cultura também estará presente.

Piúba comemora a consolidação do "Plano de Gestão 2019-2022" da Secult. O documento reserva duas importantes frentes de ação. Chamada de "Carta de Navegação" pelo gestor, o plano revela todas as próximas atividades da Pasta nos próximos anos.

A realização do inédito concurso público voltado à Secretaria, abertura de centros culturais no interior, caso do Centro Cultural Regional do Cariri, que segue em processo de licitação, são conquistas citadas. "2019 é um ano muito difícil. Pessoalmente, tenho que fazer alguns exercícios para refletir, não me deixar abater. Porque a cultura hoje é, e a arte em especial, o lugar de resistência", defende Fabiano dos Santos Piúba.

>> Saiba mais: O que esperar de 2020

Datas

- 100 anos de nascimento de João Cabral de Melo Neto (9 de janeiro)
- 110 anos de fundação do Theatro José de Alencar (17 de junho)
- 100 anos de morte do músico Alberto Nepomuceno (16 de outubro)
- 110 anos de nascimento da escritora Rachel de Queiroz (17 de novembro)
- 100 anos de nascimento da escritora Clarice Lispector (10 de dezembro)

Projetos 

- Entrega da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel
- Secult -Ceará (primeiro semestre)
- Ampliação do número de Mestres da Cultura reconhecidos pela Secult-Ceará - Projeto "Cinema nos Terminais" (primeiro semestre)
- Secultfor - Lançamento do Memorial Frei Tito de Alencar (sem data prevista) - Secultfor

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