'Foi racismo com ela e foi racismo comigo': estudante testemunha contra Zara em caso de delegada

Ela comentou publicação das redes sociais do Diário do Nordeste e foi chamada pela Polícia Civil para prestar depoimento no caso da delegada Ana Paula Barroso. Relato apontou, segundo investigação, padrão de discriminação da loja

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
gerente zara racismo
Legenda: O gerente da loja foi indiciado pelo crime de racismo
Foto: Divulgação/PCCE

Quando a delegada Ana Paula Barroso denunciou ter sido vítima de racismo na loja Zara, em um shopping do bairro Edson Queiroz, em Fortaleza, aquilo chamou a atenção da estudante Jaqueline (nome fictício). Foi como se naquele momento ela se enxergasse também como uma vítima, de episódio similar, no mesmo local, há poucas semanas.

A universitária foi ao Instagram do Diário do Nordeste e relatou o que vivenciou: "já fui destratada nesta loja também". Seu comentário não passou despercebido. A mulher, de identidade preservada, foi chamada pela Polícia Civil do Ceará para prestar depoimento na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Fortaleza. 

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Legenda: O comentário foi feito pela outra vítima nas redes sociais do Diário do Nordeste

Para os investigadores, a fala da estudante foi um dos passos principais até a Polícia concluir que nesta Zara era ofertado tratamento diferente aos consumidores conforme a raça e o que a delegada passou se tratou de fato de um caso de racismo. A universitária optou por não abrir Boletim de Ocorrência para que a PC instaurasse outro inquérito, e sim entrou como testemunha no fato contra a delegada Ana Paula.

Nessa terça-feira (19), horas após a PCCE divulgar a conclusão do inquérito e indiciamento do gerente português Bruno Filipe Simões Antônio, Jaqueline conversou com a reportagem e detalhou a sensação de ser julgada pela aparência.

"A MINHA COR FOI A ÚLTIMA COISA QUE PENSEI"

Jaqueline conta que esteve na Zara do shopping no bairro Edson Queiroz há pouco mais de dois meses, na companhia de uma amiga. Ela tomava um sorvete de casquinha e decidiu entrar para olhar algumas roupas. "Dei três passos dentro da loja e um homem me pediu para sair dizendo que eu não podia ficar ali porque eu não utilizava a máscara. Então eu pedi desculpa e voltei para a porta", relembra.

Ficou com a amiga olhando a vitrine. A ideia era terminar o sorvete, recolocar a máscara por completo e tentar ir até lá novamente. Neste meio tempo, a estudante conta que viu um grupo de meninas entrando na loja. Elas estavam com roupas de marca, eram loiras e com cabelo liso, o oposto das características físicas que tem a universitária entrevistada. 

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"Elas entraram sem máscara, passaram pelo mesmo funcionário e ficou tudo bem. Então aí eu reparei algo estranho. Brinquei com a minha amiga: só pode estar escrito na minha testa que sou pobre, será se eu tenho cara de quem não vou comprar nada? Fiquei assustada e aquilo ficou martelando na minha cabeça. Então a gente nem quis mais entrar ali", disse.

Meses depois, quando o ocorrido com a delegada veio à tona, Jaqueline diz ter caído em si: "foi racismo com ela e foi racismo comigo também. Antes, a última coisa que pensei foi sobre a minha cor".

Eu já tinha sofrido racismo outras vezes. A primeira vez aconteceu quando eu era criança. De vez em quando recebo olhares de quem desacredita que eu consiga comprar alguma coisa, mas eu sempre tive na cabeça que isso não me define. Não é minha cor que define se eu vou roubar ou não"

Quando a estudante optou por relatar sua vivência nas redes sociais e recebeu uma carta de intimação, ela disse ter ficado assustada: "Me pediram para ir na Delegacia da Mulher e eu pensei: nunca fui agredida. Mas fui e lá fiquei sabendo o que era. Eles me acolheram muito bem e eu percebi que precisava expor a situação porque já vinha virando algo banal". 

Responsabilidade 

O gerente da unidade foi indiciado por racismo com base no artigo 5º da Lei de Crimes Raciais por recusar, impedir acesso a estabelecimento comercial e negar a prestação do serviço à delegada. Conforme a Polícia Civil, a loja também poderá ser responsabilizada na esfera civil por danos morais. 

'ZARA ZEROU'

A investigação da PCCE ainda apontou que o estabelecimento tem um código para discriminar clientes e alertar funcionários. Nessa terça-feira (19), o delegado geral, Sérgio Pereira, relatou que testemunhas contaram em depoimentos sobre o código 'Zara Zerou'.

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Quando um cliente fora do padrão desejado pela loja e que, para eles, poderia colocar a segurança em risco, entrava no local, era disparado um alto-falante dentre os funcionários para que redobrassem a atenção. Conforme as investigações, eram alvos do alerta "Zara zerou" pessoas negras e julgadas como "mal vestidas". 

Por nota, a Zara Brasil comunicou que não teve acesso ao relatório da autoridade policial de forma oficial e que a atuação da loja durante a pandemia se fundamenta na aplicação dos protocolos de proteção à saúde.

Nesta quarta-feira (20), a Zara enviou uma nova nota informando que "nega a existência de um suposto código para discriminar clientes".

A empresa alega que o decreto governamental em vigor estabelece a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes públicos: "Qualquer outra interpretação não somente se afasta da realidade como também não reflete a política da empresa".

Ainda de acordo com a Zara Brasil, a empresa não tolera nenhum tipo de discriminação e para a qual a diversidade, a multiculturalidade e o respeito são valores inerentes e inseparáveis da cultura corporativa. "A Zara rechaça qualquer forma de racismo, que deve ser combatido com a máxima seriedade em todos os aspectos", disseram. 

 

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