'Quando me falarem de preconceito, agora vou entender', diz delegada vítima de racismo em Fortaleza
Para Ana Paula Barroso, protetora de grupos vulneráveis, se ver na posição oposta reforçou o propósito da profissão escolhida na adolescência
A postura muda, os ombros contraem, o olhar foge e a respiração se agita. Já faz mais de uma semana, mas o corpo da delegada Ana Paula Barroso, 38, ainda reage ao ouvir sobre o dia em que teve o racismo empurrado goela abaixo. É provável que a digestão nunca aconteça.
“Como a senhora tá, doutora?", pergunto, e os ombros de baixa estatura, mas altivos sobre os sapatos de salto, relaxam. “Tô há uma semana sem dormir nem comer direito, minha filha. Tô exausta”, ela desabafa, num misto de cansaço e alívio por não ter de descrever, de novo, o fatídico dia 14 de setembro.
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Desde que foi barrada de entrar na loja Zara, em Fortaleza, sem justificativa aceitável do segurança ou da gerência, Ana Paula viu a rotina relativamente pacata virar ao avesso. Tímida, ela não gosta de dar entrevistas, mas precisou se expor para não ser desacreditada.
O medo que eu estou vivenciando é o de muitas vítimas: medo da impunidade, porque tô lutando pra provar que o outro errou; da revitimização, porque falar é sofrer o mesmo dano; medo do descrédito. Às vezes, a vítima acha melhor ‘deixar pra lá’. E é por isso que essas ações estão sendo perpetuadas.
O episódio no shopping não foi o primeiro em que a cor da pele passou à frente da delegada – Ana Paula já foi confrontada, na própria casa, com as formas cínicas, sujas e “veladas” que o racismo assume.
“No condomínio, a pessoa chegou e ‘você trabalha aqui?’, como se a casa fosse incompatível pra mim. Numa promotoria onde fui estagiar, uma servidora me abordou e disse ‘vou logo te explicar como é o trabalho: é só limpar as salas e servir café aos promotores’”, relembra.
Não preciso andar com uma placa de ‘policial’ na testa pra ser respeitada.
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“Sonho em ser delegada desde a 8ª série”
A profissão de delegada é, além de missão, um sonho realizado todos os dias, meta conhecida desde que Ana Paula enviou uma carta a um programa de televisão revelando o que queria ser quando crescesse: “quero fazer Psicologia, Letras e Direito”.
“Eu nutria esse sonho desde a 8ª série, e não foi fácil conseguir. Foi uma faculdade que terminei com muita dificuldade, com minha avó buscando ajuda, pedindo descontos pra conseguir pagar”, relembra a delegada.
Natural de Juazeiro do Norte, a cearense iniciou os estudos na Universidade Regional do Cariri (URCA), mas veio a Fortaleza perseguindo o cargo que já almejava ocupar. A aprovação no concurso público para inspetora da Polícia Civil (PCCE) veio em 2006 – e 7 anos depois, Ana Paula sentaria à cadeira de titular da Delegacia de Ipu, no interior.
Já em 2021, três meses atrás, a delegada assumiu o cargo de diretora adjunta do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis da PCCE – o que enxerga hoje, após se tornar vítima, como “irônico e divino”.
Tenho um afeto, um entusiasmo muito grande com essas pautas, porque essas pessoas não são ouvidas. E precisamos dar voz. O holofote não é a Ana Paula, a delegada – é a causa.
“Paz sem voz não é paz, é medo”
O jeito sereno e os sorrisos escassos soltos ao longo da entrevista expuseram que, por trás do turbilhão que tem vivido, vive alguém gosta de “andar de chinelo e despenteada, tomando um sorvete” no shopping – mas que, pelo simples conforto, teve a paz arrancada de si.
“Infelizmente, é difícil dizer que vai acabar”, reconhece, sem nunca mencionar a palavra “racismo”. “Seria muito bom saber que será erradicado. Mas hoje fui eu, amanhã pode ser você, e tantas outras pessoas que vivenciam isso”, lamenta.
Nas redes sociais, se multiplicam julgamentos sobre a reação de Ana Paula ao episódio racista. “Por que não reagiu?”, “Por que não deu voz de prisão?”, “Estava sem máscara, por isso foi barrada, né?” A justificativa é óbvia.
Fui criticada por não ter uma atitude reativa, mas percebi a sutileza do comportamento, da fala e da abordagem preconceituosa. Preferi ter cautela, agir com prudência, não me identificar. Para conseguir ter provas.
A dificuldade de provar a violência, segundo a delegada, é o principal motivo para a impunidade – mas o que mais a motiva, hoje, a continuar ajudando outros tantos na busca por justiça.
“Quando alguém vier falar de preconceito comigo, vou entender. É uma questão cultural, mas precisamos falar. Porque é como diz a canção do Rappa: paz sem voz não é paz, é medo.”