'Pra andar de bicicleta, tenho que estar com a nota fiscal': cearenses relatam racismo diário

Acusações de roubo, perseguição em shoppings e abordagens pela polícia em lojas não são casos isolados, mas cotidianos para população negra

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Diana Melo, cearense de 26 anos, relata episódios de racismo que vivenciou
Legenda: Diana Melo, cearense de 26 anos, relata os diversos episódios de racismo que vivenciou
Foto: Natinho Rodrigues

Imagine ser assaltado, ter todos os pertences e materiais de trabalho levados, e, ao narrar o crime à polícia, ouvir: “isso tudo era seu mesmo?” Ou ser demitido porque reagiu a meses de zombaria sobre seu cabelo. Ou ser expulso de um shopping enquanto aguardava uma loja abrir. É o dia a dia da população negra do Ceará.

Na última terça-feira (14), um desses casos não-isolados atingiu a delegada Ana Paula Barroso, impedida de permanecer numa loja de Fortaleza “por questões de segurança”, segundo ouviu do funcionário do local. 

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O episódio não é novidade para a estudante Diana Melo, 26, expulsa de um shopping no Centro de Fortaleza junto à família. Ela, a irmã e o pai aguardavam, sentados, pela abertura de uma loja de perfumes, quando foram abordados pelo segurança.

Ele chegou perto da gente e disse que não podia ficar sentada ali. Quando respondi que a gente tava esperando a loja abrir, ele perguntou: ‘esperando pra que?’ Disse que era suspeito estarmos ali.
Diana Melo
Estudante

O episódio discriminatório não foi o primeiro. Diana relembra que, certo dia, estava no ponto de ônibus, à espera do transporte para casa, quando foi acusada de roubo por uma mulher que havia perdido o “passcard”.

“Tive que tirar tudo da minha bolsa e mostrar que não tinha feito. As pessoas só se assustam com quem é preto, sempre rotulam como se a gente não tivesse condição de comprar, só roubar. Como se todos fossem bandidos”, lamenta a estudante.

Diana Melo, cearense de 26 anos, narra episódios de racismo
Legenda: Diana pontua que ter pessoas negras em posições de poder é "via de esperança"
Foto: Natinho Rodrigues

Até quando foi vítima Diana vivenciou o estigma de ser “suspeita”. “Fui assaltada, e na hora que tava pedindo socorro, me acabando de chorar, dizendo o que tinha sido levado, o policial perguntou ‘isso tudo era seu?’ Até pra andar de bicicleta, preciso estar com a nota fiscal”, narra.

O irmão de Diana, aliás, já foi parado pela polícia, na periferia de Fortaleza, “enquanto andava na bicicleta bonitona de um amigo. O rapaz teve que ir lá com a nota fiscal, pra liberarem meu irmão. Agora, sempre temos a nota no celular”.

“A cor da pele sempre chega primeiro”

Sobre o caso da delegada da PCCE, Diana é categórica: “antes de ser delegada, ela é preta, a cor dela chegou na loja primeiro. Mas a existência dela nos dá esperança de que podemos ocupar espaços de poder e proteger os nossos”.

A capacidade de “proteger os seus” chegou para Patrícia Bittencourt, 41, após tomar consciência das formas que o racismo toma para atingir a população negra. “Na minha época, isso não era ensinado. Hoje, consigo ensinar pros meus filhos”, pontua.

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Os episódios mais fortes de discriminação que lembra ter sofrido foram, coincidentemente ou não, num shopping.

Na adolescência, eu morava na comunidade do Dendê, em Fortaleza, e nosso lazer era andar no shopping. Sempre éramos perseguidos pelos seguranças.
Patrícia Bittencourt
Empreendedora

Segundo Patrícia, “muitos dos seguranças eram até moradores da comunidade, conhecidos”, mas reproduziam a atitude de desconfiança. “É tão estrutural que isso acontece. Como pode? Eles conheciam a gente!”, exclama.

Patrícia Bittencourt, cearense de 41 anos, relata episódios de racismo que sofreu
Legenda: Patrícia afirma que reconhecer as formas que o racismo assume é fundamental para negros se protegerem
Foto: Arquivo pessoal

A empreendedora relembra de quando a discriminação racial resultou na perda do próprio emprego. “Eu trabalhava numa loja e uma gerente implicou, falou do meu cabelo por meses, até que respondi, disse que meu cabelo não influenciava no meu trabalho. Menos de 15 dias depois, recebi a carta de demissão”, diz.

As filhas gêmeas, também pretas, vivenciaram o racismo ainda bebês, quando uma médica se recusou a examiná-las. Anos depois, na escola, os colegas zombaram dos cabelos crespos. 

“O Brasil não assume essa ferida”

Para Patrícia, a solução para ceifar o preconceito e a discriminação racial está em expor as feridas da escravidão, para que a sociedade entenda a dívida histórica que possui junto ao povo negro.

Países que sofreram tragédias mostram, trazem à tona o que aconteceu para não ser repetido. No Brasil, nos escondem, nos calam. Precisamos abrir essa ferida: não somos coitadinhos, mas queremos viver nossa liberdade de ir e vir. O Brasil não consegue assumir essa ferida.

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De janeiro a julho de 2021, o Ceará somou 55 denúncias por crime de racismo, 77% a mais do que as 31 registradas no mesmo período do ano passado. Além disso, 51 casos de injúria racial chegaram aos registros policiais neste ano, ante 34 formalizados em 2020.

Os dados são da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), fornecidos ao Diário do Nordeste pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS/CE).

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