Justiça ‘indica’ erro em processo de 2016 que resultou em prisão injusta de torcedor no Castelão
Pedido de liberdade feito em 2016 mostrou que torcedor preso no Castelão não era o réu no processo que gerou sua prisão

Uma sucessão de erros levou o torcedor Daniel da Silva, de 39 anos, a ser preso injustamente na Arena Castelão, durante a partida de futebol entre Fortaleza e Ceará (primeiro jogo da final do Campeonato Cearense 2025), no último dia 15. Ele foi solto no dia seguinte com tornozeleira e teve o equipamento retirado no último dia 20.
Foi um pedido de liberdade feito pela Defensoria Pública do Ceará, em 2016, ano do crime cometido por um homônimo, que começou a revelar que o torcedor não era o réu no processo que resultou na prisão dele.
Conforme documentos obtidos pela reportagem, o acusado do crime Daniel da Silva, de 37 anos, nasceu no dia 21/12/1988, em Fortaleza. Ele é filho de Maria das Graças da Silva e pai não declarado.
Apesar de compartilharem do mesmo nome e nome da mãe, as coincidências param por aí. Os dois têm idades diferentes.
O Daniel da Silva preso em 2016 nasceu em Fortaleza. O CPF dele também é diferente do CPF do Daniel da Silva, preso na Arena Castelão, em 2025, que é natural de Quixadá. Daniel da Silva, torcedor do Fortaleza, nasceu no dia 16/07/1984.
O CRIME
A denúncia do Ministério Público do Ceará (MPCE) aponta que Daniel da Silva, natural de Fortaleza, e um adolescente foram capturados após a dupla colidir uma motocicleta roubada com um carro, durante a fuga, na Avenida Leste-Oeste, na capital cearense, no dia 10 de novembro de 2016.
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O adolescente teria roubado a motocicleta no Centro de Fortaleza. Ao colidir o veículo, a arma de fogo utilizada no crime caiu e disparou um tiro que atingiu Daniel da Silva, na perna. Ele foi levado ao hospital Instituto Doutor José Frota (IJF).
No auto de prisão em flagrante, no entanto, a qualificação do preso, ou seja, o nome que consta no documento redigido pela Polícia Civil, a qual a reportagem teve acesso, passou a constar o nome e os dados de Daniel da Silva, o torcedor do Fortaleza, nascido em Quixadá.


Não sabemos o motivo de isso ter acontecido. A reportagem questionou a Polícia Civil do Ceará (PCCE), o Ministério Público do Ceará (MPCE) e o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) sobre as falhas na qualificação do preso em 2016.
Por nota o TJ disse que: "diante da possibilidade de existência de homônimo, o Judiciário estadual suspendeu a execução da pena (regime semiaberto) para que seja verificada, no processo de origem, a qualificação do apenado. O procedimento está sendo executado judicialmente e, por ser objeto em trâmite, o Judiciário se manifestará nos autos. O Tribunal informa ainda que, uma vez constatado o homônimo, serão tomadas as devidas providências legais e procedimentais".
MP e Polícia Civil não responderam até a publicação desta matéria.
Podemos supor que o fato de terem nomes iguais e o nome da mãe tenha gerado “a confusão”. Daniel da Silva, o torcedor, não soube naquele momento e nem durante todo o processo que a Polícia Civil, o Ministério Público e a Justiça trabalhavam em uma ação em que ele era o autor dos crimes de porte ilegal de arma, receptação e corrupção de menores.
Já o homem preso e identificado como Daniel da Silva foi solto pela Justiça Estadual, com aplicação de medidas cautelares, no dia 15 de dezembro de 2016. Essa decisão ocorreu depois de um pedido da Defensoria Pública do Ceará.
Nesse pedido, o defensor anexa os documentos do homem que estava preso. E ele não era, e nunca foi, o Daniel da Silva, torcedor do Fortaleza, preso na Arena Castelão, no último dia 15, por ser considerado foragido.
A Justiça mandou soltar o verdadeiro autor do crime, Daniel da Silva, nascido em Fortaleza, conforme o pedido de liberdade e os documentos nele inseridos. No entanto, mesmo com essa documentação, o processo criminal continuou a tramitar com os dados do Daniel, natural de Quixadá.
O Daniel, natural de Fortaleza, foi solto e não compareceu às audiências de instrução do processo. Pudera, não era o nome dele que constava na ação penal.
Já o homem preso na Arena Castelão, que não havia cometido crime algum, foi condenado à revelia (por não apresentar defesa) pela 6ª Vara Criminal de Fortaleza a 4 anos e 8 meses de prisão, pelos crimes de receptação, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de menores, em sentença datada de 22 de abril de 2020.

Em outros documentos que o Diário do Nordeste teve acesso, consta que o juiz da 6ª Vara Criminal disse que "todos os expedientes constantes na ação penal foram expedidos com base na qualificação acima (se referindo à qualificação da PCCE) inclusive os mandados de prisão e a guia de execução da pena".
O juiz também esclareceu que no pedido de revogação da prisão preventiva consta a documentação do 'verdadeiro' réu
RETIRADA DA TORNOZELEIRA ELETRÔNICA
No ofício expedido pelo juiz Raynes Viana de Vasconcelos, da 1ª Vara de Execução Penal, nessa quinta-feira (20), ordenando a retirada da tornozeleira eletrônica que monitorava o torcedor, após analisar os autos, o magistrado chega a conclusão que “havendo dúvida razoável sobre a pessoa do verdadeiro apenado, inclusive porque o suposto homônimo também apresenta antecedentes criminais nos processos nºs (...), é de se exigir esclarecimentos por parte do Juízo da Condenação”.

A qualificação errada pela Polícia Civil não foi percebida e foi mantida pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), que denunciou erroneamente o homônimo. Quando os autos chegaram ao Judiciário, o Juízo da 6ª Vara Criminal aceitou a acusação.
E foi além. Ao analisar o pedido de liberdade em 2016, que tramitou apenso ao processo principal, o Poder Judiciário mandou soltar o autor do crime. Contudo, não verificou que, na ação penal, os dados do réu eram diferentes, o que resultou na condenação de um inocente.
Agora, a Justiça começou a rever o erro processual iniciado há quase 10 anos, em 2016, analisando o documento de identidade apresentado pela Defensoria naquela época, em nome do verdadeiro réu, com data de nascimento e CPF diferentes: "sendo o alvará de soltura expedido com os mesmos dados, o que, ao que tudo indica, evidencia o erro de qualificação pela polícia judiciária, mantido pelo Ministério Público", diz trecho da decisão para retirar a tornozeleira do torcedor.
'UM ERRO GROSSEIRO, CRUEL'
Ainda nos dias seguintes à prisão, Daniel disse nas redes sociais que “foi confundido” e “detido por engano". Daniel sustentou desde o momento da prisão que não cometeu os crimes de receptação, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de menores em 2016, como aponta o mandado de prisão cumprido pela Polícia Militar do Ceará (PMCE) contra ele, no estádio.
Ao ter a tornozeleira retirada, o torcedor disse que "é um peso que sai da minha consciência... é complicado. Prestem atenção para não cometer mais um erro desse grosseiro, cruel".
Ele acrescentou que nos últimos dias não pode trabalhar: "Um pai de família que estava trabalhando e não podia mais sair, não pude ir comprar o pão... falta de respeito com o cidadão. (...) Tiveram vários erros, não foi só um, dois, três, quatro".
“Que não deseja a ninguém": "é ruim demais, já chorei, não consigo comer direito. Tenho trabalho pra fazer, mas não consigo. Eu trabalho, sou pai de família e tenho que pagar minhas contas. Tô só atrás do meu direito. Deus sabe que não fui eu".
Sobre a prisão na Arena Castelão, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) disse que "o cumprimento do mandado de prisão foi realizado de forma correta e não houve erro no reconhecimento facial. Os dados constantes do mandado de prisão, expedido pela 1ª Vara de Execuções da Comarca de Fortaleza, em outubro de 2023, estavam em concordância com as informações da pessoa conduzida, confirmando o correto cumprimento do mandado expedido pela justiça".
Ainda no início desta semana, o TJ falou que “no mandado de prisão em desfavor de Daniel da Silva, expedido pela 1ª Vara de Execuções Penais da Comarca de Fortaleza, constava a determinação de que, quando houvesse a prisão dele, o juiz que realizasse a custódia deveria expedir o alvará de soltura mediante tornozelamento eletrônico, com advertência sobre as condições da pena que ele deveria cumprir. E assim foi feito durante o plantão”.
FURTO
Daniel tem uma pequena empresa de retífica de motores de veículos, há cinco anos. Ele reconhece que respondeu a um crime de furto, ocorrido em 2003, que prescreveu em 2019. E, desde então, não tinha conhecimento de pendências na Justiça. Ele conta que é sócio-torcedor do Fortaleza há 3 anos, que costuma ir ao estádio, que vendeu um carro no fim de janeiro - tendo repassado a documentação formalmente - e ainda que recebeu uma abordagem policial há 3 semanas e foi liberado, e nunca havia sido informado sobre processo criminal.
O empreendedor detalha que fez o cadastro no novo sistema de reconhecimento facial da Arena Castelão, antes do jogo do último sábado. Porém, no setor onde ele foi assistir ao jogo, Inferior Sul, não era obrigatório o cadastro. Pouco tempo depois de ingressar no estádio, ele foi surpreendido pela abordagem de policiais militares na arquibancada, que o levaram preso para a delegacia.
A prisão durou cerca de 24 horas. Ao passar pela audiência de custódia, Daniel da Silva foi informado que poderia cumprir a pena de quatro anos e oito meses de prisão em regime semiaberto, com uso de tornozeleira eletrônica.
Agora, resta saber quando, finalmente, o nome dele ficará limpo dessa condenação por um crime que ele não cometeu. E se vão procurar o verdadeiro foragido da Justiça.
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