'Vi racismo, mas não quis acreditar', diz adolescente negra barrada de acessar padaria de Fortaleza

Mel, de 16 anos, é filha de defensor público da área da infância e juventude; caso ocorreu nessa quarta-feira (22), na área nobre da cidade

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Mel Campos, adolescente de 16 anos que sofreu racismo em padaria de Fortaleza
Legenda: Mel frequenta desde criança a padaria na qual foi barrada
Foto: Reprodução/G1 Ceará

“Pode entrar: a casa é sua.” O letreiro estampado na fachada da padaria Portugália, no bairro Cocó, em Fortaleza, contrasta com o episódio vivenciado pela adolescente Mel Campos, 16: ela foi barrada de entrar no local após ser “confundida com pedinte” por uma segurança do shopping onde fica o estabelecimento.

O caso aconteceu na noite de quarta-feira (22), oito dias depois de a delegada Ana Paula Barroso ser impedida de permanecer na loja Zara, em shopping de bairro vizinho, sem justificativa plausível por parte dos funcionários.

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De acordo com o pai da garota, o defensor público estadual Adriano Leitinho, Mel estava retornando do jiu-jitsu e, por ter esquecido a chave de casa, se dirigiu à padaria em frente à residência para comer enquanto aguardava a chegada dele. 

“Antes disso, ela tentou ir a um posto de combustíveis para sacar dinheiro, e quando retornou, foi abordada logo na entrada pela segurança, ouvindo que não poderia ficar ali ‘pedindo’. Então a Mel disse ‘não tô pedindo nada, sou cliente’”, narra Adriano.

Após perceber o equívoco, a funcionária pediu desculpas à adolescente e permitiu a entrada. Por ficar em frente à residência da família, a padaria é frequentada por Mel desde que era pequena, como relembra o pai.

Em nenhum momento ela viu a minha filha pedindo nada a ninguém. E mesmo que ela fosse pedinte, a abordagem não justifica. Foi um ato de racismo, crime grave, inafiançável.
Adriano Leitinho
Defensor público e pai de Mel

“Constrangida e com vergonha”

O defensor público só soube do que havia acontecido com a filha quando ambos estavam saindo do estabelecimento. Segundo ele, Mel estava “muito constrangida e com vergonha”. “Chamei a gerente, a segurança, e perguntei desde quando cor da pele retrata que a pessoa é pobre ou rica”, relata Adriano.

A adolescente diz que percebeu, no momento, que a situação representava um ato racista, mas que “não tava acreditando”. “Fui percebendo aos poucos. Não tem uma palavra pra descrever o que eu senti na hora”, confessa.

Mel relata que os últimos episódios de racismo que lembra ter vivido foram na infância, e que enfrentar o preconceito agora, “grande”, a fez relembrar a necessidade de discutir causas sociais, como a discrimiminação racial.

Isso me fez ver que não é porque o preconceito não aconteceu comigo que não ocorre todo dia. Abriu meus olhos pra voltar a falar desse assunto. Tô me sentindo bem, consegui segurar a barra.
Mel Campos
Estudante

Segundo Adriano Leitinho, a padaria não contatou a família depois do episódio, que foi denunciado em notícia-crime registrada na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). “A Mel agora está empoderada, e resolvemos não calar”, finaliza.

Como história que se repete na vida de pessoas negras, o racismo não é inédito para Mel. Adriano Leitinho narra que, quando criança, a menina “foi confundida com a babá do meu afilhado”.

Associação de defensores repudiou ato racista

A Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Ceará (ADPEC) publicou nota em repúdio aos casos de racismo noticiados recentemente em Fortaleza "e todas as outras que acontecem fora dos holofotes da imprensa".

A entidade reforçou que são exigidas de "todos nós medidas urgentes e necessárias para frear todas as formas de violência de raça, gênero e de classe".

A ADPEC prestou solidariedade às vítimas e frisou a necessidade de combater o racismo "todos os dias, como tarefa estruturante de uma sociedade que pretende livrar-se, em definitivo, das amarras do colonialismo e do preconceito étnico/racial".

Resposta da padaria

Em nota publicada nas redes sociais, a padaria afirmou ser “totalmente contra todo e qualquer tipo de preconceito dentro e fora da loja”, e que “as providências estão sendo tomadas para que não se repita”.

O estabelecimento pontuou que a segurança responsável por barrar a entrada de Mel não pertence ao quadro de funcionários da Portugália, mas sim do shopping, e que não tem gerência sobre o treinamento de profissionais. “Esse comportamento não está dentro de nossa conduta”, acrescenta a padaria.

Leia nota da padaria na íntegra

"A Padaria Portugália informa que a profissional de segurança que tentou impedir a entrada da adolescente no estabelecimento na última quarta-feira, 22, não pertence ao seu quadro de pessoas. A profissional, que fica na área externa da loja, é contratada do centro comercial do qual a padaria é apenas lojista. Não temos qualquer conhecimento ou ingerência sobre a contratação e treinamento dos profissionais que atuam no centro comercial. Reforçamos que somos contra qualquer tipo de discriminação ou preconceito e apoiamos a adolescente e sua família na defesa de seus direitos".

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