Eu que sou preto imagino e quase sinto a exaustão dessa delegada, no que respeita ao episódio de racismo e seus desdobramentos.
Matéria muito próxima do sublime, de Theyse Viana, dá conta de que ela, além de vítima, passou socialmente à condição de acusada, tendo que explicar cada detalhe, justificar sua reação e confrontar versões, ademais de ser novamente importunada em seu local de trabalho pelos advogados da loja, e de expor a própria imagem.
A exaustão dos que não podem denunciar
Há também a exaustão daquela vítima que cala e deixa o tempo passar. Há pelo menos dois motivos para não falar nada:
- a vítima de racismo não tem meios de prova, acesso à informação ou tempo para procurar uma delegacia, ou
- a vítima de racismo considera que denunciar é viver novamente a humilhação, experimentá-la de novo toda vez que ela é rememorada, colocar-se na posição de acusado que precisa explicar, como a delegada, e... correr o risco da impunidade.
Ora, se mesmo uma delegada sentiu tais dificuldades, imagine a imensa maioria dos pretos brasileiros. Esses têm uma exaustão que se acumula a cada episódio silenciado, e que não para de acontecer.
Um novo componente cruel
Há um componente cruel, atualmente, a se levar em conta: estimo que no mínimo 20% da população sente-se muito à vontade para usar os vocábulos “mimimi” e “lacre” quando comentam, na internet, uma denúncia de racismo. Quando não, dizem que “não há racismo no Brasil”.
Nesse caso específico, de quando a vítima é rechaçada em rede sociais, é vítima pela terceira vez. A primeira vez, no evento de racismo; a segunda, quando precisa se justificar; a terceira, quando é humilhada na rede de computadores.
Não se engane: essa dor a gente leva conosco, se transforma em medo de parecer frágil ou “chorão” - quando, na verdade, você só está sendo corajoso – e naturaliza a violência.
Saudações a quem tem coragem
Graças a Deus Ana Paula é delegada, corajosa, e conseguiu manter a fleugma para obter as provas necessárias à demonstração do delito.
Tenho outro amigo negro que, detido apenas por tirar fotos do Palácio da Abolição, usou a cultura, a coragem e a condição de diplomata para mover ação contra os ofensores.
Essas pessoas pretas, aquinhoadas com meios e informação, é que conseguem, a custo da própria paz, manter o debate vivo. Sem elas, os satisfeitos (ou ignorantes) com o estado de coisas atualmente poderiam dizer, sem qualquer contestação, que vivemos num país sem racismo.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.