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Redes sociais e milhas aéreas como herança? Novo Código Civil propõe a criação de patrimônio digital

Em tramitação no Senado Federal, proposta também estabelece livro específico para direito digital

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
(Atualizado às 11:13)
Tela de celular com ícones de redes sociais famosas, como Instagram, Facebook e Whatsapp, que entram na discussão do Novo Código Civil
Legenda: Projeto de lei que altera o Código Civil traz capítulo inédito sobre direito digital, que coloca redes sociais como herança e cria regras para IA
Foto: Agência Brasil

Com uma inserção cada vez maior na vida cotidiana dos brasileiros, o ‘mundo virtual’ também pode passar a ter regras específicas no Código Civil. Com projeto de alterações de autoria do ex-presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o novo Código Civil propõe mudanças no regramento que regula a vida das pessoas desde antes do nascimento até depois da morte. 

Dentre as novidades, está a definição de patrimônio digital como algo a ser herdado e descrito em testamento. Estão enquadradas no conceito perfis e senhas de redes sociais, milhas aéreas, dados financeiros e mesmo contas de games ou jogos cibernéticos. Além disso, o novo Código Civil também estabelece os direitos e a proteção de pessoas no ambiente virtual, além da responsabilidade civil de plataformas digitais. Temas como a Inteligência Artificial (IA) e identidade e assinatura digital também são regulamentados pelo texto. 

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O projeto de lei 4/2025 aguarda despacho da presidência do Senado Federal para iniciar a tramitação nas comissões na Casa. O texto é baseado em anteprojeto elaborado por juristas que integraram a Comissão responsável pela revisão e atualização do Código Civil, finalizado em 2024. 

Na época da conclusão, o presidente da comissão, ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pontuou a criação de regras específicas para o ambiente virtual como a "grande inovação" do novo Código Civil.

"A nossa grande inovação é a criação de normas gerais, criando um livro próprio sobre direito digital. (...) A ideia é fazer uma regulamentação geral, sem amarrar. Ninguém vai segurar a evolução das tecnologias", disse. 
Luis Felipe Salomão
Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

O Diário do Nordeste elenca algumas das principais mudanças trazidas pelo novo Código Civil quanto ao ambiente virtual:

Conceito de direito digital

O novo Código Civil trará, pela primeira vez, um livro específico para tratar de direito digital. Com isso, ele inclui diversos novos conceitos no regramento, como direito civil digital, ambiente virtual e de plataforma digital — diferenciando, inclusive, aquelas que são usadas para a "difusão de informações ao público", como as redes sociais. 

A proposta também estabelece direitos específicos dos cidadãos brasileiros no ambiente digital, embora outros direitos previstos na legislação brasileira também sejam aplicados nesse contexto. 

Entre os direitos no ambiente digital estão: 

  • O reconhecimento de sua identidade, presença e liberdade no ambiente digital; 
  • A proteção de dados e informações pessoais; 
  • A garantia dos direitos de personalidade, em todas as suas expressões, como a de dignidade, de honra, de privacidade e de seu livre desenvolvimento; 
  • A liberdade de expressão, de imprensa, de comunicação e de associação no ambiente digital; 
  • O acesso a mecanismos de justa composição e de reparação integral dos danos em casos de violação de direitos no ambiente digital. 

O novo Código Civil define ainda o que é uma "situação jurídica digital", prevendo que ela pode ser estabelecida entre pessoas naturais e pessoas jurídicas, mas também entidades virtuais — como "robôs, assistentes virtuais, inteligências artificiais, sistemas automatizados e outros". 

Essas situações jurídicas ficam submetidas a outras regras do Código Civil, como direito contratual, direito do consumidor e direitos autorais. 

Patrimônio digital como herança

A proposta define o conceito de patrimônio digital como o "conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital".

Entre os exemplos citados como "herança digital", estão:

  • Senhas e dados financeiros;
  • perfis de mídias digitais;
  • criptomoedas;
  • milhas aéreas;
  • contas de games ou jogos cibernéticos;
  • e conteúdos digitais, como fotos, vídeos e textos. 

Com isso, o patrimônio digital poderá ser herança, em caso de morte do titular, com dados e informações, assim como senhas ou códigos de acesso, podendo ser transmitidos a herdeiros por meio de testamento. Caso o titular do patrimônio digital tenha, em vida, compartilhado a senha de acesso a contas pessoais, isso será equiparado a "disposições contratuais ou testamentárias". 

"Diante da ausência de declaração de vontade do titular, os sucessores ou representantes legais do falecido poderão pleitear a exclusão ou a manutenção da sua conta, bem como sua conversão em memorial", determina o texto da proposta. 

Em caso de ausência de herdeiros ou de representantes legais, as contas públicas de brasileiros em plataformas virtuais devem ser excluídas até 6 meses após a morte do titular. 

Identidade e assinatura digital

O novo Código Civil reconhece a identidade digital como meio oficial para identificação dos cidadãos brasileiros em ambientes digitais. Para isso, esse documento deve ser emitido pelo Poder Público e conter as mesmas informações da identificação civil da pessoa.

A regulamentação sobre o uso e a gestão da identidade digital deve ser feita em lei específica. 

O texto define ainda a assinatura digital dos cidadãos, separando entre aquelas consideradas simples e avançadas. Apenas esta última poderá ser utilizada para comprovar a autoria do documento. 

"A validade de documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante terceiros depende de assinatura qualificada", diz o texto.

Responsabilização das plataformas digitais 

A proposta amplia a responsabilidade das plataformas digitais. Uma das principais mudanças é a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as plataformas de responsabilidade civil por conteúdos publicados por ela, salvo em caso de decisão judicial.

O trecho pode ter impacto, por exemplo, na disseminação de notícias falsas, as fake news, no ambiente virtual. 

Além disso, o texto define responsabilidade civil e administrativa e civil desses provedores:

  • Pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade da plataforma; 
  • Por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, quando houver descumprimento sistemático dos deveres e das obrigações previstas neste Código, aplicando-se o sistema de responsabilidade civil nele previsto. 

O novo Código Civil determina ainda uma série de medidas que devem ser adotadas pelas plataformas para reduzir os riscos de circulação de conteúdos ilícitos nestas plataformas, inclusive com canais "de reclamação e de reparação integral de danos". 

Como forma de avaliar os "riscos sistêmicos" da plataforma, são estabelecidas ainda a realização de avaliação anual sobre eventuais problemas, além de auditorias independentes realizadas também uma vez a cada ano — neste caso, é estabelecido inclusive prazo para que as plataformas cumpram as recomendações da auditoria.  

Inteligência artificial

O uso de inteligência artificial na prestação de serviço precisa "ser identificada de forma clara e seguir os padrões éticos necessários", determina o novo Código Civil. Além disso, o desenvolvimento desses sistemas devem seguir princípios como a não descriminação e a garantia de supervisão humana. 

O texto garante ainda que pessoas que sofreram danos ou apenas interagiram com IAs possam solicitar o conteúdo sobre essas interações, quando essas interfaces foram usadas para o acesso ou exercício de direitos. 

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Deep fakes

A proposta também estabelece regras para o desenvolvimento de deep fakes — imagens, em fotografia ou vídeo, de pessoas vivas ou falecidas criadas por meio de IA. Para serem desenvolvidas, as imagens precisam de autorização da pessoa ou de herdeiros e representantes legais. 

Elas não podem, no entanto, ser usadas de forma difamatória, discriminatória e contrária "ao seu modo de ser ou de pensar, conforme externado em vida, por seus escritos ou comportamentos". 

Neurodireitos

Um campo novo também é abordado no texto do novo Código Civil: o neurodireito. Nele, a perspectiva é de proteger a integridade mental e a privacidade cerebral das pessoas diante do avanço das neurotecnologias — como interfaces cérebro-máquina, inteligência artificial e dispositivos de leitura neural. 

Segundo a proposta, os neurodireitos não podem ser transmitidos, renunciados ou limitados. Ficam garantidos aos brasileiros:

  • Direito à liberdade cognitiva, vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento; Direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial; 
  • Direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento; 
  • Direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais;
  • Direito ao acesso equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas, segundo os princípios da justiça e da equidade; 
  • Direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais. 

Proteção a crianças e adolescentes 

É definido um capítulo específico apenas para elencar regras para a presença e identidade de crianças e adolescentes no ambiente virtual, ressaltando o seu "melhor e superior interesse". 

O texto da plataforma determina que sejam implementados sistemas eficazes para verificar a idade do usuário e mecanismos para que pais e responsáveis possam monitorar e limitar o acesso de crianças e adolescentes aos conteúdos digitais. 

As plataformas também são responsáveis por proteger os dados pessoais e a privacidade de crianças e adolescentes, além de garantir a segurança deles no ambiente digital. São proibidas ainda a veiculação de publicidade de produtos ou serviços de tecnologia voltada a esse público. 

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Direito ao esquecimento e a desindexação

O novo Código Civil estabelece que os cidadãos têm direito ao esquecimento e à desindexação no ambiente virtual. O que isso significa? O "esquecimento", que já foi foco de ações do Supremo Tribunal Federal (STF), seria impedir a divulgação de informações irrelevantes, ainda que verdadeiras, ou desatualizadas sobre uma pessoa, retirando o conteúdo do site de origem. 

No caso da desindexação, há apenas a remoção do link com essa informação dos sites de busca, como o Google. O texto estabelece, contudo, critérios específicos para que pessoas tenham acesso ao esquecimento ou à desindexação. 

Poderá ser solicitado à remoção permanente das informações em caso de "ausência de interesse público ou histórico", o intervalo de tempo transcorrido desde a publicação do conteúdo, o risco de dano à pessoa ou a seus representantes ou "abuso no exercício da liberdade de expressão ou informação".

A solicitação para a remoção de link pode ser feito caso envolvam a exposição de: 

  • Imagens pessoais explícitas ou íntimas; 
  • A pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; Informações de identificação pessoal dos resultados da pesquisa; e
  • Conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes. 

Novo Código Civil

No Senado, o projeto de lei que modifica o Código Civil ainda aguarda despacho do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-PA) para ser encaminhado para as comissões e, assim, ser analisado pelos senadores. 

Caso aprovado, o texto segue para a Câmara dos Deputados e, em caso de aceitação dos deputados federais, irá para a sanção do presidente Lula (PT). 

A proposta altera mais de mil artigos do atual Código Civil. Essa será apenas a segunda modificação feita no regramento. A primeira versão, de 1916, foi alterada pela primeira vez quase 100 anos depois, em 2002 — texto que segue em vigor. 

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