Fim da criminalização das fake news: qual o impacto para as eleições municipais de 2024
Veto do ex-presidente Jair Bolsonaro em que ele derrubava o trecho da lei que tratava do assunto foi mantido pelo Congresso Nacional
Qual a melhor forma de combater a disseminação de informações falsas? Ou, no termo em inglês comumente adotado, qual a melhor saída para o combate às fake news? A criminalização da conduta foi um caminho aprovado pelo Congresso Nacional ainda em 2021 — com uma punição que poderia ir de 1 a 5 anos de reclusão.
Contudo, apenas três anos depois — e em um ano eleitoral —, os parlamentares federais resolveram derrubar, de forma definitiva, a tipificação da disseminação de fake news. Eles mantiveram o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) quanto ao trecho que tratava, especificamente, da tipificação da "comunicação enganosa em massa" que fosse capaz de "comprometer a higidez do processo eleitoral".
A manutenção do veto foi considerada uma derrota do Governo Lula (PT). A base aliada tentava manter a tipificação da conduta, mas acabou sendo vencida, no último dia 28 de maio, com 317 votos pelo fim da criminalização e 139 contrários, na Câmara Federal,. Como foi mantido por deputados federais, os senadores não precisaram analisar o veto presidencial.
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Na prática, não vai ocorrer nenhuma mudança efetiva para as eleições municipais de 2024. Como havia sido vetada em 2021, a criminalização da conduta não chegou a ser aplicada nas eleições de 2022.
Para especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, a derrubada do trecho da Lei 14.197/2021 — legislação na qual são tipificados crimes contra o Estado democrático — não deve ser o fim da discussão de mecanismos para o combate à desinformação. E se o Direito Penal — ou seja, a possibilidade de transformar de uma conduta em crime —, não deve ser excluído do debate, eles apontam alternativas que podem ser adotadas antes para combater a difusão de fake news — principalmente em um contexto eleitoral —, mas com menos riscos a outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão.
Riscos da criminalização
No veto, a argumentação usada para derrubar o trecho que tipificava a "comunicação em massa enganosa" é de que a proposição contraria o interesse público "por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização".
"Se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível", justifica o veto presidencial.
Professor de Direito Civil da FGV Direito Rio e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), Filipe Medon admite que a redação da proposição poderia gerar "confusão" quanto a quem poderia ser punido.
"É a questão da eventual ausência de clareza em relação a qual é a pessoa que vai ser afetada por aquela norma. Somente a pessoa que cria? Porque o dispositivo falava em promover. Mas será que promover também significa compartilhar? Então, havia essa diferenciação entre quem cria e quem compartilha", detalha.
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Especialista em Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Marcos Rafael Coelho também cita a ausência de uma definição sobre a quem caberia definir o que é uma informação falsa.
"Quem teria o direito quem está dizendo a verdade ou não? Ou seja, vai se criar um órgão da verdade? Você vai atribuir a quem? À Justiça Eleitoral?", diz ao citar as justificativas elencadas pelo então presidente Jair Bolsonaro. Ele fala ainda que há uma "dicotomia" na discussão sobre a criminalização da conduta.
"Quando se fala em combate à desinformação, tem por um lado o que a Justiça Eleitoral, principalmente em contextos eleitorais, tem que fazer para combater a desinformação quando ela afeta o processo eleitoral e, por outro lado, a liberdade de expressão, porque ela tem uma posição preferencial. A liberdade de expressão tem que ter uma garantia mais forte, é um direito fundamental e é previsto na nossa Constituição", pontua.
Um debate que precisa ser "ponderado" e feito com "bastante cuidado", ressalta. Algo difícil de ser feito em um cenário de polarização política cada vez mais acentuada. "Talvez por isso não tenha sido gerado um consenso no Congresso, porque existe ainda uma polarização política muito forte, que dividiu as bancadas nessa votação específica da derrubada do veto", acrescenta Medon.
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Quais instrumentos de combate à desinformação para as eleições 2024?
Resolução eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que foi atualizada para as eleições municipais deste ano, trata da adoção de medidas para o controle da desinformação. Em um dos artigos, por exemplo, ela proíbe a utilização, em propagandas eleitorais, de "conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral".
O ilícito configura abuso de utilização dos meios de comunicação e pode acarretar em cassação do registro de candidatura e mesmo do mandato. Também é proibida, de forma absoluta, a utilização de deepfake, além de haver a responsabilização de provedores quando estes não deixarem indisponíveis os conteúdos e contas que propagaram desinformação.
Na Lei das Eleições, existe ainda uma previsão de pagamento de multa — entre R$ 5 mil e R$ 30 mil — para quem replicar propaganda eleitoral apócrifas ou ofensivas com conteúdo de desinformação.
"Então, uma pessoa que recebe um vídeo ofensivo contra um candidato A e pega esse vídeo, que a gente nem sabe quem fez, que está ofendendo e está caluniando, está difamando um candidato ou um grupo político, e simplesmente compartilha isso em um grupo, por exemplo, (...) está sujeito a receber uma representação perante a Justiça Eleitoral", explica Marcos Rafael Coelho.
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Ele considera que os instrumentos previstos na legislação eleitoral e, mais especificamente, na Lei de Eleições são "a melhor forma, hoje, de combate à desinformação". "É uma forma de não pegar todo mundo, mas mostrar que toda ação pode ter uma consequência, não importa se candidato ou não", argumenta.
Para Filipe Medon, no entanto, existe uma "limitação". "Essa atualização da resolução do TSE se destina, sobretudo, aos candidatos. Então, acaba gerando também ali uma sensação de limitação do seu alcance, porque ela não atinge, como regra, as pessoas comuns, os eleitores que porventura disseminem aquele conteúdo falso", contrapõe.
Professor do curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), João Araújo Monteiro Neto pontua que há "uma certa estrutura tanto na legislação de forma geral, (tanto) na legislação cível como na legislação penal, que podem responsabilizar as pessoas pela divulgação de informações falsas".
"Do ponto de vista da responsabilização penal, quando isso envolve, por exemplo, a prática de uma calúnia, de uma injúria ou de uma difamação contra pessoas como também se ficar comprovado um abalo tanto moral como material, que permitiria a responsabilização cível. De forma geral, o Código Civil já permite que aquele que, de qualquer forma, causa um prejuízo a uma pessoa, por meio de uma atividade ilícita, seja responsável por reparar os prejuízos materiais e morais decorrentes daquela atividade", detalha.
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A busca por caminhos no combate às fake news
No entanto, João Araújo Monteiro Neto pontua que estes processos "acabam sendo mais lentos e demorados". "E o que se buscaria com a criminalização seria uma espécie de utilização do Direito Penal para tentar refrear, frear, de certa forma, essas práticas de alteração ou de falseamento da realidade", acrescenta.
Para Filipe Medon, a primeira questão é "saber se o Direito Penal, se a criminalização da conduta é, de fato, o melhor caminho para se coibir a desinformação". "Porque existem, em tese, outras formas de se atuar. O Direito Penal é sempre visto como a última instância", argumenta.
"Será que eventualmente responsabilização civil não seria um caminho primeiro, prioritário, a ser adotado? A pessoa ser responsabilizada financeiramente em vez de ser presa. Eu acho que é um debate que precisa ser melhor trabalhado", diz.
João Araújo Monteiro Neto vai por uma linha argumentativa semelhante. "O ideal é que você tivesse mecanismos cíveis de responsabilização dura por meio de indenizações e, ao mesmo tempo, de retirada, remoção desse conteúdo das plataformas ou de circulação, quando possível, porque a gente sabe que muitas vezes é praticamente impossível", reforça. "E pela educação. Criar um processo de educação de forma muito robusta nesse sentido".
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Uma discussão que passa também, continua Medon, pela regulação das plataformas digitais. Apesar de ter um projeto de lei sobre o assunto tramitando na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), instalou um Grupo de Trabalho sobre o assunto, cujo objetivo é apresentar um texto mais "maduro".
"Então, a gente retrocede nossa discussão, que é uma discussão que também envolve as plataformas, porque, afinal de contas, essa desinformação se veicula primordialmente por meio das plataformas", critica o professor da FGV Direito Rio. Para as eleições municipais, o professor considera que a derrubada da legislação que previa a criminalização das fake news "não piora o cenário, mas também impede uma melhora".
João Araújo Monteiro Neto tem uma visão mais otimista, apesar de defender um aprimoramento da legislação para termos punições mais severas para a propagação de fake news. "O sistema eleitoral brasileiro aprendeu nos últimos (anos), principalmente na última eleição. Como se comportar ou, pelo menos, estabelecer uma rede de proteção mínima (contra) a disseminação de fake news e como isso pode ser utilizado em campanhas eleitorais", pontua.
"Talvez criminalizar não seja o caminho mais adequado no âmbito eleitoral, mas, por exemplo, a partir do momento em que tem a caracterização da utilização de fake news como uma prática irregular de propaganda — que se enquadra nas regras já existentes da própria legislação eleitoral, com os ajustes necessários a lesividade do uso dessas tecnologias, a potencialidade e que isso gere, por exemplo, a inelegibilidade dos candidatos que utilizarem esses mecanismos, isso por si só já seria algo que levaria a inibir a utilização destas ferramentas", acrescenta o professor da Unifor.
"Agora, o que eu acho importante, me parece a questão principal, é que precisa sim ser discutida uma legislação específica para isso. Seja a nível civil, seja a nível criminal. O Brasil precisa legislar sobre isso, também impactando as plataformas. Mas esse é um debate muito difícil de ser pautado no Congresso, especialmente por conta da polarização que ainda persiste", completa Medon.