‘Do purgatório ao paraíso’: o relato de quem viu as eleições passarem da cédula para urna eletrônica

Juíza eleitoral há quase três décadas, Maria Lúcia Vieira conta como era a experiência do voto antes da implementação da urna eletrônica no Brasil

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
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Foto: Arte / Louise Eugênio

No primeiro domingo de outubro de cada ano eleitoral, o eleitor já sabe: uma vez fechada a última urna eletrônica, logo ali pelo final da tarde, a soma de votos começa. A segunda-feira nunca amanhece sem que já se saiba quem irá assumir - nos próximos quatro ou oito anos - os cargos em disputa. 

Nem sempre foi assim, no entanto. Antes, a manhã da segunda-feira pós-eleições raiava sobre galpões e salas cheias de cédulas onde dezenas de pessoas se revezavam - com poucos intervalos - para contar - e decifrar - os votos escritos pelos eleitores.

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O "Baú da Política" traz um pouco da história de quem participou das eleições antes da urna eletrônica, com experiência em como era feito o processo de totalização dos votos em um período em que os eleitores escolhiam seus candidatos de forma manual em cédulas. Além da vivência na transição entre este modelo de votação e a urna eletrônica. Esta reportagem faz parte da série "Baú da Política: Especial Urnas Eletrônicas".

'Cédulas-voto'

Em Santana do Cariri, na região sul do Ceará, o prédio escolhido para a contagem ficava exatamente em frente ao Fórum do município. Era 1998, e a juíza Maria Lúcia Vieira se preparava para presidir, pela primeira vez, uma eleição como magistrada. 

A votação ocorreria no dia 4 de outubro, mas, mesmo antes desta data chegar, a montagem da estrutura já estava a todo vapor. Diversas mesas de ferro foram dispostas no espaço até que formassem um grande quadrado. 

Na parte de fora, cadeiras foram colocadas para acomodar quem iria contar as 'cédula-voto'. No centro, o local reservado para os juízes eleitorais responsáveis por tomar quaisquer decisões que se impusessem - a principal delas tentar entender "verdadeiros hieróglifos" escritos nas cédulas, como define Maria Lúcia.

Com as urnas - de lona - fechadas, um batalhão também chegava ao galpão para acompanhar a soma - manual - dos votos de três cidades. Além de Santana do Cariri, também estavam ali as cédulas preenchidas por eleitores de Nova Olinda e Altaneira, todos municípios localizados no Cariri cearense.

Promotor eleitoral, fiscais dos partidos, advogados e a imprensa rodeavam os contadores de votos. A contagem era lenta e não apenas porque era feita de forma manual. A todo momento, os juízes eram chamados para identificar o voto escrito - ou marcado - nas cédulas. 

De 'hieróglifos' a cartas de amor (ou de ódio)

Nem sempre o que estava nas cédulas era compreensível. Em alguns casos, nem votos eram. "Muita gente fazia o que queria", ri Maria Lúcia, antes de acrescentar: "brasileiro é muito gozador mesmo". 

A definição foi feita logo depois de relembrar quando animais foram eleitos "país afora" - um rinoceronte em São Paulo, um macaco no Rio de Janeiro - exatamente pela liberdade de anotar o nome que o eleitor quisesse no papel - seja alguém que não era candidato, seja mesmo um animal. 

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As lembranças das cédulas contadas em Santana do Cariri, no entanto, não envolvem votos em candidaturas do reino animal. 

Na cidade cearense, teve quem usasse o espaço da cédula para enviar bilhetes de amor para os candidatos. Em outros casos, os recados eram de ódio para quem disputava aquela eleição. Também havia quem protestasse ou mesmo colocasse nomes de quem nem candidato era. 

Inclusive, vale a explicação sobre como funcionavam essas cédulas que os eleitores tiveram à disposição em 1998. "Elas tinham o nome dos candidatos ao cargo majoritário e tinham o quadradinho para o eleitor marcar. Para deputado ou senador, escrevia o nome ou o número em outra cédula", descreve Maria Lúcia. 

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Com orientações específicas sobre como os votos deveriam ser preenchidos, qualquer transgressão a isso, poderia anular o voto. "Tinha o quadradinho para marcar o X. Se o eleitor marcasse dois X, nulo. Perdia o voto", relata a magistrada.

A anulação dos votos não era incomum. Muitas vezes, a escrita na cédula era incompreensível seja para quem estava contando, seja para o juiz eleitoral. Quem acompanhava, como promotores eleitorais, eram chamados pelos magistrados para opinar. Fiscais de partido e candidatos também acompanhavam e tentavam convencer os magistrados da validade daquela cédula.

"Eu nunca tinha me deparado com ânimos tão acirrados. Nunca pensei que pudessem brigar tanto por uma cédula. Vinha candidato, o sogro, o genro, a mulher. Mas normalmente, o voto era nulo, (porque) era muito difícil atribuir o voto. Ninguém conseguia decifrar". 
Maria Lúcia Vieira
Juíza eleitoral

Retrato da vontade do eleitor

A anulação de votos 'indecifráveis' - ou que não obedeciam as orientações sobre como votar - eram rotina no processo de totalização. Algo que a juíza Maria Lúcia Vieira aponta como o principal problema da época, já que assim a eleição "não retratava a vontade do eleitor como hoje, com a urna". 

"É completamente diferente da urna eletrônica", compara a magistrada. Ela cita que, mesmo eventuais problemas técnicos no equipamento, não influenciam na vontade do eleitor. Nestes casos, a urna é substituída, e a votação continua normalmente. 

"A possibilidade de anular é dele, eleitor. Não por falha do equipamento ou por decisão do juiz", ressaltou a juíza. "É o eleitor, porque é o eleitor que é soberano". 

O argumento levantado pela magistrada coaduna com dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral que indicam que o número de votos inválidos diminuiu em 82% após a implementação total das urnas, no ano 2000. 

Os números são de artigo publicado pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco, Marcus André Melo. Segundo o estudo, os votos inválidos recuaram de 41% para 7,6% - o que representa a diminuição de 82%. No mesmo artigo, o docente argumenta ainda que o ataque às urnas eletrônicas acaba por ser também um ataque ao voto dos eleitores analfabetos ou com baixa alfabetização, já que estes acabavam cometendo mais erros na hora de preencher as cédulas. 

"Imagina o eleitor de poucas letras com aquela gama de informações. Então, ficava difícil expressar a sua vontade, escolher o seu candidato. E era difícil para o candidato, que fez todo o trabalho de convencimento, o eleitor quer votar nele, mas no dia é difícil". 
Maria Lúcia Vieira
Juíza Eleitoral

Para ela, a mudança proporcionada pela urna é "extraordinária". "A urna eletrônica é uma engenho que veio para facilitar, dar transparência e lisura à escolha do eleitor, à vontade do eleitor", ressalta. 

Eleições sempre marcadas pela tensão

Enquanto relembra as histórias que presenciou na primeira eleição como magistrada - e também quando ainda era servidora do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), em 1992 -, a juíza Maria Lúcia se diverte. As risadas, no entanto, só são mesmo possíveis mesmo "depois que passa", ressalta. 

Ela cita que, em 1998, o clima, já desde a preparação da eleição, era de permanente tensão. Um sentimento que aumentava com o início da contagem dos votos, devido às inúmeras possibilidades de falhas naquele processo de totalização. 

Contagem de votos
Legenda: A contagem dos votos ocorria de forma manual, em salas ou galpões, durante dias e noites depois do dia de votação
Foto: André Lima/ Arquivo SVM

Naquele ano, foram necessários dias para contar todos os votos de Santana do Cariri, Altaneira e Nova Olinda, lembra Maria Lúcia. A contagem começou ainda na noite do domingo de votação e só foi encerrada na quarta pela manhã. Na época, Maria Lúcia contou com o auxílio do então juiz eleitoral Inácio Cortez - hoje, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE). 

"Ainda hoje eu brinco com ele dizendo que, se ele não tivesse vindo me ajudar, eu ainda hoje estaria contando as cédulas. Porque eram três municípios e eu era uma juíza de primeira viagem", afirma a magistrada. 

Neste ano, ela não teve experiências de falhas mais graves - e relativamente comuns - na votação por meio da cédula. Uma delas, era o sumiço das urnas de lona que continham os votos. Apesar disso, cada hora do processo era carregada de tensão. Tinha o risco, por exemplo, de uma falha na energia elétrica do prédio escolhido para a contagem - o que poderia não só atrapalhar a totalização como abrir margem para eventuais fraudes. 

"Tinha que pedir a Deus que não faltasse energia", afirma a magistrada. Também havia o risco de outros problemas durante o processo, como a possibilidade de uma das mesas de ferro onde ficavam os votos virar - "por um acidente ou mesmo por uma pessoa mal intencionada" - alongando um já difícil processo manual de contagem.

Cédula de voto
Legenda: Até o final da década de 1990, eleitores votavam em cédulas, nas quais escreviam nome ou número dos candidatos
Foto: Evaldo Ferreira/ Arquivo SVM

O cansaço era outro problema. Apesar de não contar votos, a juíza eleitoral era responsável por supervisionar todo o processo que "durava noites e dias". O descanso era pouco, apenas "umas horinhas, um pingo". "Fechava os olhos, mas a tensão era tão grande, a adrenalina era tão alta", relembra Maria Lúcia a dificuldade para dormir. 

Do purgatório para o paraíso

A primeira eleição com urna eletrônica ocorreu em 1996, no entanto, apenas quatro anos depois, o equipamento foi utilizado na totalidade dos locais de votação e computou o voto de todos os eleitores brasileiros a partir de então. 

"Saímos do purgatório, nas eleições por cédula, para o paraíso", resume a juíza Maria Lúcia Vieira. Para a magistrada, "não tem comparação na segurança para os candidatos, para os eleitores e para a democracia". 

"A segurança da urna eletrônica é incomparável ao sistema anterior. A segurança é absoluta, não há possibilidade de falha, fraude, brincadeira na eleição, nada", ressalta. "Questionar a lisura da eleição, da urna eletrônica ou é falta de inteligência ou é má fé".

A segurança das urnas eletrônicas tem sido, nos últimos anos, alvo de frequentes ataques, inclusive do presidente Jair Bolsonaro (PL). Contudo, o equipamento nunca teve falha ou fraude comprovada nos 26 anos em que foi utilizado durante as eleições brasileiras. 

Como forma de garantir a seguridade das urnas, a Justiça Eleitoral realiza série de testes e de auditorias. É o que explica o coordenador de Tecnologia Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rafael Azevedo. 

Urna Eletronica em 1990
Legenda: As urnas eletrônicas começaram a ser usadas em 1996 e em 2002 foi implementada para todo o eleitorado
Foto: Felipe Abud/ Arquivo SVM

Ele cita, por exemplo, o teste público, realizado nos anos não-eleitorais, nos quais qualquer brasileiro acima de 18 anos pode elaborar planos de ataque às urnas eletrônicas, tanto para tentar quebrar o sigilo do voto como para tentar acrescentar ou diminuir o número de votos. 

Caso seja encontrada alguma falha, é possível sugerir modificações. "Nos testes de segurança nunca conseguiram quebrar o sigilo do voto ou mudar o voto. Já houve um sequenciamento dos votos, mas isso já foi corrigido", ressalta Azevedo.

Além disso, os códigos-fonte do equipamento eleitoral também são disponibilizados para entidades fiscalizadoras um ano antes das eleições. Em 2021, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade de Campinas (Unicamp) também tiveram acesso aos códigos para "verificar se algum ataque é exitoso". 

Segurança 'por si só'

Azevedo ressalta que estes testes são feitos com as urnas abertas e com os possíveis hackers tendo acesso a mídia destes equipamentos. "Mas, ele não teria como burlar ela (no dia da votação). Nós projetamos a urna para poder ser segura por si só, sem ninguém vigiando", ressalta. 

Com mais de 460 mil locais de votação no Brasil e mais de 557 urnas previstas para serem usadas na eleição de 2022, essa garantia da segurança física da urna é feita tanto por meio de lacres físicos como por medidas internas, como criptografia . 

Além disso, ele ressalta, não existe conexão entre a urna eletrônica e nenhum dispositivo externo. A urna não é, por exemplo, conectada à internet. “Ninguém pode fazer um ataque à distância", ressalta.

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“O pessoal conhece pouco e acaba não participando da fiscalização como deveria. (...) O mais importante é que as entidades fiscalizadoras participassem mais do processo: partidos políticos, OAB, Forças Armadas, todos os departamentos de tecnologia da informação de faculdades”, completa.

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